Clínica é uma sala ou é um gesto? Ou: A musicalidade na formação dos alunos em Musicoterapia 1 Gregório Pereira de Queiroz 2 PALAVRAS CHAVE: setting, musicoterapia didática, formação do musicoterapeuta Quero aqui contar o causo que se passou comigo neste primeiro semestre de 2004, enquanto professor na graduação de Musicoterapia, na Unaerp, em Ribeirão Preto. Causo é a pronúncia caipira 3, vocês devem saber, do interior de São Paulo e Minas para a palavra caso. Pronúncia esta que vem a calhar no relato em uma mesa como esta, já que causo casa com o caso que causa. Este causo causou a confirmação de certas idéias junto aos alunos para sua formação enquanto musicoterapeutas; idéias estas sobre as quais estava me debruçando antes de começar a dar aula na graduação. Parti para a prática das aulas e da formação dos alunos com uma visão do que deveria levar para eles. A atuação prática corroborou a teoria, confirmando a verossimilhança com a realidade, o que toda teoria necessita para ser ferramenta útil ao desenvolvimento do conhecimento. Assim, em uma mesa cujo tema é a construção teórica a partir da clínica, venho trazer um exemplo de teoria que é re-construída a partir da aplicação na clínica. Mas, em primeiro lugar, se estamos a falar de clínica, por que estou trazendo o exemplo de atuação enquanto professor junto a alunos? Qual a pertinência ou similaridade do trabalho clínico musicoterapêutico com o trabalho de formação de musicoterapeutas? Entendo que o papel de um professor nas matérias em que atuei junto aos alunos a saber, Supervisão de Estágio Clínico no segundo ano, e Teorias e Técnicas Musicoterapeuticas e Atividades Criativas no quarto e último ano é um trabalho primordialmente de formação humana e psicológica, assim como de formação da ética e da técnica do profissional musicoterapeuta, muito 1 Trabalho apresentado no X Fórum Estadual de Musicoterapia do Rio de Janeiro, "E por falar em ESCUTA, DIFERENÇA E ARTE... CLÍNICA, onde anda você?", na Mesa Redonda Quando o caso causa: a construção teórica a partir da clínica, Rio de Janeiro, 26 junho 2004 2 Gregório Pereira de Queiroz Arquiteto, formado pela FAUUSP; especialista em Educação Musical com área de concentração em Musicoterapia, pela Faculdade de Música Carlos Gomes; especialista em Musicoterapia, pela Faculdade Paulista de Artes; professor da Faculdade de Musicoterapia da UNAERP, Ribeirão Preto, SP. E-mail: gregorio@qairoz.com.br. 3 Retiro aqui qualquer conotação pejorativa que esta palavra venha a ter, nas associações que os leitores possam fazer, pois que, infelizmente, esta palavra que designa uma cultura e um modo de vida serve também para desmerecer os valores dessa cultura uma prática comum em nosso país, na qual nossos traços culturais são mal-vistos, primeira e preponderantemente, por nós próprios.
2 mais do que o de professor que acrescenta dados informativos, elementos técnicos e saberes acadêmicos aos alunos. Assim, nesta visão, o papel de professor é indissociável do papel de terapeuta, ou mais precisamente, de musicoterapeuta. O professor-terapeuta se relaciona com o aluno visando o desenvolvimento do aluno a partir de dentro, para que sua personalidade e psique se desenvolvam de modo a se tornarem aptas a cuidar de outros seres humanos; lida com as questões trazidos pelos alunos não apenas do ponto de vista técnico de sua matéria específica, mas lida com a pessoa humana que habita o aluno; incentiva o aluno a desabrochar seus talentos naturais e a se transformar quanto às possíveis deficiências de sua formação prévia ou de seu temperamento com relação à prática clínica. Este é um trabalho, a meu ver, bastante semelhante ao trabalho clínico, no qual o paciente desenvolve seus potenciais com a finalidade de superar limitações e deficiências, tornando-se alguém melhor; assim também, o aluno se forma enquanto ser humano e musicoterapeuta, transformando-se e se aperfeiçoando enquanto tal, e não apenas por acrescentar informações a uma estrutura psíquica que permanece a mesma ao longo do tempo de seus estudos o que seria uma incongruência em relação ao papel que um terapeuta ou musicoterapeuta irá assumir na atuação profissional. É com esta visão, ainda sob a forma de esboço impreciso, que ingressei no corpo docente da Faculdade de Musicoterapia. É esta visão que foi re-construída ao longo do semestre, ganhando os contornos mais definidos com os quais estou apresentando-a a vocês neste momento. Trago um exemplo da situação que encontrei, no primeiro dia de aula deste primeiro semestre de 2004, no relato escrito, o qual guardo comigo, que me foi entregue pelos alunos de uma das classes, ao serem perguntados o que esperavam do professor: Questões levantadas pelo grupo: - muita informação, pouca formação; - falha na supervisão dos estágios: pouca relação entre o teórico e o prático; - as experiências musicoterápicas que realizamos foram poucas e não houve retorno ou fundamentação destas vivências. Este relato não é trazido aqui como crítica à faculdade. Considero que a situação detectada por esse grupo de alunos é bastante idêntica à de outros cursos de graduação e pós-graduação em musicoterapia digo isto a partir de minha própria experiência recente enquanto estudante e do convívio com estudantes e professores de outras faculdades. Trata-se de uma avaliação de características gerais do ensino de musicoterapia, apesar de feita por alunos que estão em contato apenas com sua situação particular.
3 Pouca formação, pouca relação entre teoria e prática, vivências não fundamentadas... tais colocações caracterizam bastante bem, a meu ver, a necessidade do professor ter como centro e foco de seu trabalho, não este ou aquele aspecto da matéria a ser ensinada, mas o ser humano para o qual está sendo dada a matéria. Teoria e prática, esta divisão didática dos dois extremos de um ensinamento (didática pois que organiza o pensamento sobre o assunto), só é unificada quando a pessoa que está em relação com tal ensinamento absorve-o completamente, isto é, quando tal ensinamento se desenvolve e se enraíza no aluno, o que se dá no momento da atuação clínica. A atuação clínica é o momento de convergência entre teoria e prática, é o momento em que o aluno está se formando musicoterapeuta. Ou, melhor, a clínica deveria ser o centro unificador, o lugar no qual o aluno, ao desempenhar o papel de musicoterapeuta, vê surgirem e são trabalhadas todas as características, talentos, dificuldades, incompletações e deficiências, não apenas do que deveria ter aprendido até então, mas de sua própria pessoa. Os cursos de graduação reconhecem o papel fundamental da atuação clínica para a formação dos alunos; e por isso mesmo não medem esforços para abrir suas clínicas e mantê-las funcionando. O espaço para atuação clínica do aluno é um ponto em comum nos currículos de graduação, não obstante as diferenças que possam ter em muitos outros aspectos. Tendo aquele grupo de alunos o espaço clínico para atuação, onde estaria o motivo para levantarem as questões que levantam? Se a clínica funciona na faculdade, se eles atuam na clínica, por que exatamente estariam sentindo falta da devida atuação clinica? Mais uma vez, a resposta a estas questões não é resposta restrita à situação desse curso de graduação. A questão ganha contornos amplos quando olhamos para o conceito de clínica como é considerado no meio musicoterapêutico brasileiro. O papel fundamentador dos trabalhos e do pensamento do Dr. Benenzon na musicoterapia brasileira é bastante conhecido. No livro La Nueva Musicoterapia, das 150 páginas escritas por ele apresentando a nova versão de seu método, há 30 páginas dedicadas à descrição da clínica enquanto lugar (capítulos 3, 4 e 5, descrevendo setting e instrumentos musicais) e 4 páginas dedicadas à descrição da formação do musicoterapeuta, isto é, de como se desenvolve o gesto clínico, como alguém se torna musicoterapeuta ou seja, descrição da clínica enquanto gesto 4. Como termo de comparação: nas duas monografias de Helen Bonny apresentando o método Imagens Guiadas e Música (GIM), das 116 páginas no total, apenas a metade de uma página está dedicada a descrever o setting (página 10, primeiro parágrafo, na primeira monografia), isto é, descrever a clínica enquanto lugar, ao passo que o segundo e o quarto capítulos (em um total de 28 4 Os termos clínica enquanto lugar e clínica enquanto gesto surgiram em meio às muitas conversas com a musicoterapeuta Kelly Adriane de Campos, no início de 2004, quando começava a esboçar esta visão sobre o ensino e a formação em Musicoterapia. A ela deve ser dada a devida co-autoria destes termos.
4 páginas) descrevem especificamente como alguém se prepara para ser um musicoterapeuta GIM, descrevem o gesto do musicoterapeuta GIM, descrevem a clínica enquanto gesto. No livro Creative Music Therapy, importante fundamentação da abordagem Nordoff- Robbins, escrito por seus criadores, não há descrição do setting; mas lá estão descritos extensamente, ao longo de 240 páginas, técnicas e procedimentos clínicos, e o desenvolvimento de recursos musicais para a atuação musicoterapêutica. A comparação quantitativa do quanto estas três obras, capitais em suas linhas de atuação, dedicam à clinica enquanto lugar físico e à clinica enquanto gesto do musicoterapeuta deverá evidenciar o tipo de ênfase dada à clínica na musicoterapia brasileira: clínica tende a ser sinônimo de setting; mesmo que isso não seja intelectualmente considerado assim, nem nunca afirmado explicitamente, existe uma série de caracterizações subterrâneas afirmando esta sinonímia. Com esta comparação não quero dizer que a linha proposta pelo Dr. Benenzon desconsidere a formação do musicoterapeuta, muito pelo contrário, até porque este pioneiro partiu da formação médica e psicanalítica, as quais sabidamente têm métodos para a formação de seus profissionais. A questão é que a ênfase dada nos textos seminais, e conseqüentemente nos currículos e na formação dos musicoterapeutas brasileiros, leva em seu cerne inconfessadamente uma visão: a da clínica enquanto espaço físico. A questão que se apresenta aqui não é teórica; nenhum musicoterapeuta, creio, defenderia a idéia da clínica ser um lugar. Não obstante, observei em inúmeros casos e em particular na formação prévia dos alunos com os quais trabalhei neste semestre, a ausência de ênfase no desenvolvimento do gesto musicoterapêutico, isto é, daquilo que o musicoterapeuta faz dentro do espaço clínico, o gesto que caracteriza um musicoterapeuta e o distingue de qualquer outro profissional (e temos aqui a convergência com uma outra grande questão de nossa área: o que exatamente nos distingue de outros profissionais de áreas próximas? Será que uma resposta a essa pergunta não seria também a resposta à colocação daqueles alunos?). Pela ausência da definição e da ênfase desse gesto, que unifica teoria e prática, os alunos da graduação trouxeram a questão da ausência de clínica. Como podemos ser musicoterapeutas com o que nos é ensinado, mostrado e apoiado quanto a gestuar musicoterapeuticamente? Talvez esta pudesse ser uma reformulação da questão colocada por eles, com o sentido de caminhar em direção a uma resposta. Não pretendo aqui apresentar uma resposta abrangente, mas apenas o modo como conduzi a solução particular àquela situação apresentada pelos alunos. Até porque cada profissional, método ou linha de trabalho terá a sua maneira de conduzir e formar musicoterapeutas.
5 Já havia desenvolvido anteriormente o conceito de musicalidade, tanto em meus estudos na especialização e em seu estágio clínico, quanto em obra publicada 5 e em minha atuação profissional. Este conceito foi levado à prática com os alunos, e não apenas mostrou ser uma possível pedra de toque para o nascimento do gesto musicoterapêutico, quanto o próprio conceito foi redimensionado ou, como afirmei antes, foi re-construído. No estágio de observação foi enfatizada a percepção do fluxo da sessão, o fluxo dos aconteceres objetivos e da interioridade subjetiva de paciente e terapeuta observados; no estágio de atuação em recreação, os alunos foram orientados a estimular a expressão re-criativa isto é, recreativa das crianças por meio de canções e jogos musicais; na prática de teorias e técnicas, estimulou-se o uso da música e da musicalidade na improvisação clínica; constitui com os alunos um grupo de estudo, denominado estudo de si através do fazer musical, no qual o jeito de fazer música de cada participante era trabalhado com vistas à própria pessoa se desenvolver psicologicamente; na matéria de atividades criativas, foi estimulada a utilização da canção, da voz e da expressão dramática teatral, tudo dentro dos parâmetros do conceito de musicalidade, como desenvolvido por mim: percepção em fluxo, criação orgânica, significado expressivo da forma musical, movimento articulado organicamente, dinâmica pura enquanto elemento comum à psique e à música, o sentido de proporção na música e na relação humana. Por meio das diversas faces da musicalidade a eles apresentadas, alguns alunos encontraram ao longo do semestre o caminho para desenvolver um gesto musicoterapêutico próprio. Este gesto teve por característica, em todos aqueles que o desenvolveram, uma atuação musical na clínica mais em proporção ao paciente, obtendo-se resultados considerados significativos pelos alunos e por mim. Isto é o que denomino musicoterapia pela musicalidade, a atuação musicoterapêutica que se dá por meio da interação das musicalidades de terapeuta e cliente. Há outras maneiras de desenvolver o gesto musicoterapêutico, e as diferentes linhas de trabalho o fazem a seu modo, de acordo com seus objetivos, fundamentações, métodos e técnicas. Utilizei-me da musicalidade na formação dos alunos por um motivo bastante óbvio: é minha maneira de trabalhar, é o modo de trabalhar que desenvolvi nestes anos de estudo e atuação profissional. E se estamos aqui falando da prática clínica que leva à construção teórica, é pertinente dizer que o próprio conceito de musicalidade tem ele próprio se desenvolvido através de extenso diálogo entre teoria e prática. Este conceito é apresentado pelo filósofo da música Zuckerkandl 6. Não obstante, este apresenta o conceito retirando-o diretamente da observação da prática musical. Tal conceito é adotado por Paul Nordoff e Clive Robbins, os quais, contudo, partiram também da 5 Aspectos da Musicalidade e da Música de Paul Nordoff e suas implicações não prática clínica musicoterapêutica, Apontamentos, 2003. 6 Zuckerkandl, Man the Musician, capítulo 1.
6 constatação na prática clínica da existência de algo musical em toda criança, ao que denominaram music child: O conceito de Music Child apresentou-se como um modo de resumir a profundidade, a intensidade, a variedade e a inteligência das respostas de algumas centenas de crianças deficientes na interação musical. Foi sendo desenvolvido no decurso de quatorze anos passados experimentando as respostas musicais das crianças em doze países e foi se cristalizando durante os últimos anos de ensinamento e nos estudos e pesquisas para este livro. 7 Partindo do conceito de musicalidade de Zuckerkandl e de music child de Nordoff-Robbins re-elaborei o conceito de musicalidade que apresento em meu livro. Parti deste conceito para a prática clínica com os alunos neste semestre. O resultado foi, além da musicalidade de alguns alunos tornar-se o cerne semeador do seu gesto musicoterapêutico, o redimensionamento do conceito de musicalidade quanto a um aspecto específico: o sentido de proporção entre a musicalidade do terapeuta e do cliente, aquela qualidade específica da musicalidade que favorece ou proporciona ao cliente seu processo terapêutico e/ou de desenvolvimento pessoal. Não posso mais conceber musicalidade clínica sem proporcionalidade, no duplo sentido de proporção ou justa medida em relação ao cliente e de proporcionar ou dar algo que favoreça, por sua proporção musical ao cliente, o processo do cliente. Este é o estudo de caso que vim apresentar. Não é tipicamente um caso clínico, embora creia encaixar-se bastante pertinentemente ao que estava proposto por esta mesa. O diagnóstico e o encaminhamento da cura deverão estar claros: a carência quanto a um aspecto específico da formação, a do gesto musicoterapêutico, e o desenvolvimento da musicalidade dos alunos, sob diversas formas, enquanto meio formador desse gesto. Ao final da experiência, não saberia dizer se o início está na prática ou na teoria, e, afinal, talvez isso importe menos do que haver um fluxo dinâmico entre ambos, isto é, haver uma proporção viva entre atuação clínica e construção teórica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENENZON, Rolando. La Nueva Musicoterapia. Buenos Aires: Editorial Lúmen, 1998. BONNY, Helen. Facilitating GIM Sessions e The Role of Taped Music Programs in the GIM processes: theory and product. Baltimore: ICM Books, 1978. 7 Nordoff e Robbins, Creative Music Therapy, p. 1.
7 NORDOFF, Paul & ROBBINS, Clive. Creative Music Therapy. New York: The John Day Company, 1977. PEREIRA DE QUEIROZ, Gregório. Aspectos da Musicalidade e da Música de Paul Nordoff e suas implicações na prática clínica musicoterapêutica. São Paulo: Apontamentos, 2003. ZUCKERKANDL, Victor. Man the Musician. Princeton, EUA: Princeton University Press, 1976.