Caracterização do articulador mas no discurso pela Teoria da Argumentação na Língua 1

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Transcrição:

ARTIGO Letrônica v. 1, n. 1, p. 82-95, dezembro 2008 Caracterização do articulador mas no discurso pela Teoria da Argumentação na Língua 1 Marcela Cristiane Nesello * 1 Introdução Será realizada nesta pesquisa uma análise do articulador mas no discurso tendo como base a Teoria da Argumentação na Língua (ANL). Tal análise será efetuada através da fase atual da ANL de Oswald Ducrot, a Teoria dos Blocos Semânticos (TBS), desenvolvida por ele e Marion Carel. 2 Pressupostos Teóricos 2.1 Teoria da Argumentação na Língua Desenvolvida por Oswald Ducrot e Jean Claude Anscombre em 1983, a Teoria da Argumentação na Língua tem raízes estruturalistas e foi concebida inicialmente sobre fundamentos da lógica, que predominam nas primeiras obras lançadas sobre o tema. Logo em seguida passou a ser fundamentada pela Pragmática, e, finalmente, tomou o formato conhecido atualmente. A teoria tem por base o estruturalismo saussuriano, especificamente a dicotomia língua X fala, o conceito de signo lingüístico e a noção de relação entre os signos. Ducrot faz uma leitura própria desses conceitos. Enquanto Saussure separa língua de fala, sendo a primeira o sistema, o aspecto social da linguagem, e a segunda o uso do 1 Trabalho apresentado no XV Congreso Internacional de la Asociación de Lingüística y Filología de América Latina (ALFAL) em Montevidéu de 18 a 21 de agosto de 2008. * Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGE) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e bolsista CAPES.

sistema pelos falantes, o aspecto individual, Ducrot afirma que não é possível separá-las, já que não se pode ter acesso à língua senão pela fala. Outro conceito estruturalista muito importante na Teoria da Argumentação na Língua é o de signo lingüístico e a relação entre os signos. Saussure explica que o signo contém um significante, a imagem acústica do som, e um significado, o conceito. Oswald Ducrot entende que o significado não tem relação nenhuma com seu referente no mundo, tampouco com o conceito psicológico que os falantes poderiam ter dele, ou com as coisas e as idéias, mas está relacionado com os outros signos. Sendo assim, conclui-se que esta relação não é feita com o mundo, mas apenas lingüisticamente. Saussure explica que é a relação de um signo com outro que os define (um signo é o que o outro não é). Na Teoria da Argumentação na Língua é a relação entre palavras que constrói o sentido. Segundo Ducrot, essa relação estritamente lingüística é argumentativa, ou seja, ao emitir um enunciado, o locutor está argumentando para o interlocutor e dando seu ponto de vista sobre o mundo. Para o autor, onde há língua, há argumentação. Sendo assim, a argumentação está na língua, não no mundo real. Oswald Ducrot, na ANL, utiliza o conceito de fala individual para explicar que o falante, ao emitir um enunciado, deixa nele características próprias e sua própria visão de mundo. Assim, na ANL, o locutor, quando emite um enunciado, está noticiando como vê o mundo. Por isso, a língua não é representação, e sim o modo de ver o mundo, já que não há como relatar o mundo do modo como ele realmente é porque o locutor sempre o verá de acordo com seu ponto de vista e isto estará marcado na linguagem que utiliza esse locutor. 2.1.1 Objetividade, Subjetividade e Intersubjetividade A Teoria da Argumentação na Língua se opõe à concepção tradicional de sentido. A concepção tradicional de sentido sugere que há três tipos de indicação em um enunciado: a objetiva, a subjetiva e a intersubjetiva. Como explica Oswald Ducrot na primeira conferência da obra Polifonía y Argumentación, de 1988, as indicações objetivas seriam uma representação da realidade, as subjetivas indicam as atitudes do locutor diante da realidade e as intersubjetivas se referem às relações do locutor com as pessoas a quem se dirige. Oswald Ducrot, na mesma obra citada acima, exemplifica com o enunciado: (1) Pedro é inteligente. Letrônica, Porto Alegre v.1, n.1, p. 83, dez. 2008.

A semântica tradicional dirá que o aspecto objetivo ocorre no momento em que é feita uma descrição de Pedro. A subjetiva ocorre quando há uma certa admiração do locutor do enunciado por Pedro e a intersubjetiva quando o locutor pede ao seu destinatário um comportamento específico em relação a Pedro, por exemplo, que confie nele, ou, pelo contrário, que desconfie dele. A ANL critica essa análise no momento em que questiona o aspecto objetivo da linguagem. Para Ducrot, ao enunciar que Pedro é inteligente, o locutor dará, sim, uma descrição dele. No entanto, essa descrição estará ligada à admiração subjetiva do locutor por Pedro, já que ele emitirá tal enunciado a partir de sua opinião sobre Pedro e sobre sua inteligência. O mesmo ocorre com o aspecto intersubjetivo. Ao enunciar que Pedro é inteligente, necessariamente se argumenta para que o interlocutor aja desta ou daquela maneira em relação a Pedro. Por isso, Ducrot afirma que não há objetividade na linguagem, já que não é possível falar sem colocar seu ponto de vista. Logo, se não há como falar sem apresentar seu ponto de vista, a linguagem é subjetiva e não representacional, sendo seus únicos aspectos o subjetivo e o intersubjetivo. Ducrot ainda explica que a união desses dois aspectos resulta no valor argumentativo. O valor argumentativo é a orientação que a palavra dá ao discurso. O valor argumentativo que a palavra carrega exige que o enunciado continue desta ou daquela maneira. Retomando o exemplo fornecido por Ducrot na obra Polifonía y Argumentación, a palavra inteligente tem valor de capaz, de possuidor de conhecimento. Por isso, quando se diz que Pedro é inteligente, não se poderia continuar o discurso com logo não poderá resolver o problema. É necessário dizer Pedro é inteligente, logo poderá resolver o problema. Se for o caso de o locutor crer que mesmo sendo inteligente Pedro não conseguirá resolver o problema, não poderá utilizar logo. Deverá utilizar mas. Assim, Pedro é inteligente, mas não poderá resolver o problema. 2.1.2 Conceitos de frase e enunciado, significação e sentido, texto e discurso A fim de compreender a Teoria da Argumentação na Língua, o esclarecimento de alguns conceitos-chave utilizados por Ducrot se torna essencial. Letrônica, Porto Alegre v.1, n.1, p. 84, dez. 2008.

Iniciemos por frase e enunciado. Para o autor, a frase é uma entidade teórica. Por isso, ela não pode ser observada. Ela serve para explicar a infinidade de enunciados, que é o que ouvimos e vemos. Como explicam Flores e Teixeira (2005, p.65), a frase é um objeto teórico do domínio do gramático, não observável ao lingüista. Já o enunciado é uma realidade empírica que pode ser observada quando escutamos alguém falar. Novamente citando Flores e Teixeira (2005, p.65), o enunciado é a ocorrência histórica da frase. Na primeira conferência da obra Polifonía y Argumentación (1988), Oswald Ducrot dá um exemplo que torna bastante clara a diferença entre frase e enunciado: Suponhamos que alguém diga três vezes seguidas hace buen tiempo. Direi que neste caso teremos três enunciados sucessivos de somente uma frase do espanhol. Isso significa que o enunciado é, para mim, uma das múltiplas realizações possíveis de uma frase. (DUCROT, 1988, p. 53). Tanto a frase quanto o enunciado contêm um valor semântico. São eles a significação e o sentido. Segundo Ducrot (1988), a significação é o valor semântico da frase e o sentido é o valor semântico do enunciado. A diferença entre significação e sentido, como explica o autor, é quantitativa e de natureza. É quantitativa porque o enunciado diz muito mais que a frase. Por isso se diz que o enunciado está sobre determinado em relação à frase. É também de natureza porque a significação consiste em um conjunto de instruções que permitem interpretar os enunciados da frase. A instrução é essencialmente aberta e diz o que se deve fazer para encontrar o sentido do enunciado. Ducrot diz que o sentido do enunciado se produz quando se obedecem às indicações dadas pela significação (DUCROT, 1988). Este sentido, para Ducrot, é polifônico. Assim, há no enunciado a presença de um determinado número de pontos de vista, cujas origens são chamadas enunciadores. Já o texto e o discurso operam em nível diferenciado do da frase e do enunciado. Enquanto a frase e o enunciado são de nível elementar, o texto e o discurso são de nível complexo. O texto é composto de frases e o discurso é composto de enunciados interrelacionados. Portanto, uma mera sucessão de frases e enunciados não compõem um texto e um discurso. Eles devem estar conectados entre si, porque somente assim construirão o sentido. 2.1.3 O sujeito empírico, o locutor, o enunciador e a polifonia Letrônica, Porto Alegre v.1, n.1, p. 85, dez. 2008.

Para a Teoria da Argumentação na Língua é importante diferenciar o sujeito empírico, o locutor e o enunciador. O sujeito empírico é o sujeito no mundo, o autor efetivo do enunciado. Entretanto, identificar o autor efetivo do enunciado não é uma tarefa simples, e é muito mais preocupação dos sociolingüistas, psicolingüistas e sociólogos. Isso porque pode-se dizer que todos os discursos que emitimos são, de uma maneira ou de outra, repetição. Assim, questiona-se quem emitiu o enunciado. Um exemplo dado por Ducrot é o de uma peça de teatro. A quem remeteremos o que é dito em uma peça? Ao personagem? Ao ator? Ao escritor da obra? Por isso, não importa para o lingüista da enunciação quem é o sujeito empírico, já que dificilmente ele será identificado. O que interessa ao lingüista da enunciação é o produto da enunciação, ou seja, o enunciado. Falando agora sobre o locutor, ele é o verdadeiro responsável pela enunciação no próprio enunciado. Referem-se ao locutor as marcas de primeira pessoa (eu, meu, me, etc.) no discurso. Além do mais, o sujeito empírico não é locutor até não estar emitindo um enunciado. Portanto, o locutor é o produtor do discurso e só será locutor enquanto estiver produzindo discurso. Em relação aos enunciadores, Ducrot diz que eles são as origens dos diversos pontos de vista que se apresentam no enunciado. Assim, os enunciadores não são pessoas, mas pontos de perspectiva abstratos. Para Ducrot, o sentido é polifônico, ou seja, no enunciado haverá a possibilidade de um certo número de enunciadores, de pontos de vista. Vejamos o exemplo: (2) Marcos deixou de praticar esportes. A polifonia ocorre em (2) no momento em que há um não dito. Esse não dito são os seres de fala (E) que, como vimos anteriormente são argumentadores, possíveis pontos de vista. Estes pontos de vista não são ditos, mas pressupostos no discurso do locutor. Assim: (3) Marcos deixou de praticar esportes. E1: Marcos praticava esportes. E2: Marcos não pratica esportes agora. Letrônica, Porto Alegre v.1, n.1, p. 86, dez. 2008.

Com isso, se pode analisar (3) da seguinte maneira: na função de sujeito empírico está o sujeito no mundo, na função de locutor está o responsável pelo enunciado (3) e na função de enunciador estão os diferentes pontos de vista que aparecem no enunciado. No enunciado (3) há duas indicações: o pressuposto Marcos praticava esportes e o posto, Marcos não pratica esportes hoje. Portanto, a polifonia segundo Ducrot é um diálogo entre discursos que pode ser esquematizado da seguinte forma: Locutor (L) Marcos deixou de praticar esportes. Interlocutor (I) E1: Marcos praticava esportes. E2: Marcos não pratica esportes agora. 2.2 A Teoria dos Blocos Semânticos A Teoria dos Blocos Semânticos foi proposta por Marion Carel em sua tese de 1992 e busca ampliar a Teoria da Argumentação na Língua. Nessa teoria, Carel reformula um conceito anterior de Ducrot que diz que o argumento e a conclusão podem ser interpretados isoladamente. Na primeira conferência da obra La Semántica Argumentativa: una introducción a la teoría de los bloques semánticos, de 2005, Ducrot explica como antes tratava o enunciado. Para ele, os encadeamentos argumentativos se baseavam em princípios gerais chamados topoi. Os topoi permitiam a passagem entre o argumento e a conclusão e apresentavam-se, segundo o autor, na forma quanto mais verdadeiro é o que se diz no argumento, mais verdadeiro será o que se diz na conclusão (DUCROT, 2005). Assim, utilizando um exemplo dado por Ducrot na mesma obra citada acima: ARGUMENTO conector CONCLUSÃO (4) O hotel é perto logo é fácil de chegar. E1: Marcos praticava esportes. E2: Marcos não pratica esportes No exemplo, o topos conecta o argumento com a conclusão. Assim, ele é um princípio que permite a passagem do argumento para a conclusão. O que ocorre é que, para a teoria de Letrônica, Porto Alegre v.1, n.1, p. 87, dez. 2008.

topos, o argumento e a conclusão teriam significados independentes um do outro, o que não é verdade, pois os dois juntos construirão o sentido. Ducrot afirmava que o topos é social e está fora da linguagem, assim, o enunciado acima baseia-se no fato de que quanto mais perto, mais fácil de chegar. O que ocorre é que Ducrot, para fazer tal afirmação, baseava as relações argumentativas em princípios nãolingüísticos, em princípios da realidade. Isso estaria afrontando o princípio saussuriano de que a língua só pode ser estudada nela mesma. 2.2.1 Encadeamentos normativos e encadeamentos transgressivos Já sabendo que o argumento e a conclusão de um encadeamento não podem ser interpretados independentemente um do outro, Oswald Ducrot juntamente com Marion Carel desenvolve para a Teoria dos Blocos Semânticos os conceitos de Encadeamento Normativo e Encadeamento Transgressivo. Antes de apresentá-los, porém, se faz necessária a explanação do que é um encadeamento. Quando temos perto portanto fácil de chegar temos um encadeamento argumentativo formalizado no seguinte esquema geral: X conector Y Assim, encadeamentos argumentativos são discursos que o sentido de uma entidade lingüística evoca, e são constituídos de dois segmentos (X e Y) unidos por um conector. Na Teoria dos Blocos Semânticos, Ducrot e Carel aceitam somente dois tipos de encadeamentos: os normativos e os transgressivos. Nos encadeamentos normativos há conectores do tipo donc (fr. portanto) e nos transgressivos pourtant (fr. no entanto). Assim, a esquematização será: encadeamento normativo X DC Y Letrônica, Porto Alegre v.1, n.1, p. 88, dez. 2008.

encadeamento transgressivo X PT Y Analisemos o mesmo exemplo (4) dado por Ducrot, aplicando-o nos dois encadeamentos: (5) O hotel é perto DC fácil de chegar. (6) O hotel é perto PT difícil de chegar. Em (5) temos no segmento X a palavra perto que carrega o valor semântico de proximidade, logo, facilidade de chegar. Ao aplicar DC é fácil de chegar, se está obedecendo à norma, logo, é um encadeamento normativo. Entretanto, em (6) tem-se a mesma palavra perto, com seu valor de proximidade, logo, facilidade, mas o uso de PT e da palavra difícil caracteriza que, mesmo sendo perto, o acesso não é fácil. Assim, ocorre uma transgressão da regra, ou seja, um encadeamento transgressivo. A razão por que Ducrot e Carel aceitam apenas estes dois tipos de encadeamento é que cada um dos dois segmentos encadeados pode ter somente um sentido em relação ao outro. Além disso, eles podem representar outros conectores, assim, DC pode ser portanto, logo, então etc. e PT pode ser entretanto, contudo, mas etc. 2.3 O mas na Teoria da Argumentação na Língua O articulador mas já foi estudado por Oswald Ducrot em diversas situações, e uma das mais significativas para a teoria está na obra Polifonía y Argumentación (Cali, 1988). Nesta obra, Ducrot apresenta as instruções de mas, em outras palavras, a generalização do uso de mas. Iniciemos explicando porque Ducrot chama o mas de articulador, e não de conector ou conjunção, como diversas outras teorias. Já sabemos que um conector liga dois segmentos de um enunciado, como no esquema X conector Y, que pode ser exemplificado por rico DC feliz. O que ocorre é que, no caso de mas, teremos um elemento ligando dois enunciados, por isso um articulador. Sendo assim, o esquema é X conector Y articulador X conector Y, como no exemplo faz bom tempo mas me doem os pés. Estudando as instruções de mas dadas por Ducrot, e para isso ainda utilizando o exemplo faz bom tempo mas me doem os pés. Pois, bem, as instruções dirão o seguinte: Letrônica, Porto Alegre v.1, n.1, p. 89, dez. 2008.

construa quatro enunciadores, sendo que E1 contém o ponto de vista X, E2 tira uma conclusão r a partir de X, E3 contém o ponto de vista Y e E4, a partir de Y, conclui que não r. Quanto às posições do locutor L em relação aos enunciadores, ocorre que L rejeita E2, se identifica com E4 (conclui que não r), e, quanto aos enunciadores E1 e E3 sabe-se que L não os rejeita, e dependendo do caso pode concordar ou identificar-se com eles. Aplicando essas instruções ao exemplo acima, encontraremos o seguinte: E1: faz bom tempo; E2: vamos passear; E3: me doem os pés; E4: não vamos passear. Formalizando teremos faz bom tempo DC vamos passear mas me doem os pés DC não vamos passear. Fica claro nessa formalização que temos dois enunciados ligados pelo articulador mas, e que em cada um há uma conclusão diferente (vamos passear e não vamos passear). Sendo assim, o locutor concorda que faz bom tempo (E1), rejeita o passeio (E2), mesmo concordando que o tempo esteja propício para tal, e se identifica com os enunciadores que aparecem depois do articulador (E3 e E4), assumindo que lhe doem os pés, por isso não vai passear. 3 Análises 3.1 Corpus Para compor o corpus desta pesquisa, foi selecionado um texto oral, sendo ele uma entrevista de um informante do projeto VARSUL da PUCRS. A análise será baseada nas instruções do articulador mas. 3.2 Análises 3.2.1 Trecho 0121 0135 Neste trecho, o entrevistado fala da construção e inauguração de alguns prédios antigos de Porto Alegre. Em seu relato, ele constrói dois enunciados com o articulador mas. O primeiro é: (1) Olha, eu aí já não era nascido, mas tem uma bibliografia que fala aqui... Sendo assim, os encadeamentos serão da seguinte maneira: Eu não era nascido DC não sei MAS tem uma bibliografia DC sei. Letrônica, Porto Alegre v.1, n.1, p. 90, dez. 2008.

E1: eu não era nascido E2: não sei E3: tem uma bibliografia E4: sei O locutor concorda com o enunciador que diz que ele não era nascido. Ele rejeita o enunciador que diz que ele não sabe e assume os que estão depois do mas, que dizem que há uma bibliografia, e que, por isso, ele sabe. Logo em seguida ele utilizará um enunciado similar para dizer que, sobre o prédio dos Correios, ouviu histórias contadas por seus pais. (2) O antigo Departamento dos Correios e Telégrafo, aquele prédio também foi construído em mil novecentos e quatro, quer dizer, eu não era nascido, né? Mas conheci, né? Por esses tempos que nos falavam meus pais, né? Se formalizarmos a fala do locutor, teremos: Eu não era nascido DC não conheci MAS meus pais falavam DC conheci. E1: eu não era nascido E2: não conheci E3: Meus pais falavam E4: conheci Novamente, o locutor concordará com o E1, rejeitará o E2 e assumirá o E3 e o E4. 3.2.2 Trecho 0436 0465 Nesta parte da entrevista, o entrevistado fala de sua educação e dos diplomas que conquistou. A certa altura ele diz: (3) Agora, minha filha, eu não tive diploma de escola, o mundo e a rua foram que me ensinaram, e hoje eu tenho diversos diplomas, que na qual eu participei de seminários em diversos países, mas tudo foi à minha custa, foi meu próprio. Letrônica, Porto Alegre v.1, n.1, p. 91, dez. 2008.

Notemos que, nesse caso, o e funciona como mas, já que opõe duas idéias, e o mas funciona como e, já que adiciona duas idéias. Montemos o encadeamento com mas: Não tive diploma de escola DC não tenho estudo MAS tenho diversos diplomas de seminários em diversos países DC tenho estudo. E1: não tive diploma de escola E2: não tenho estudo E3: tenho diplomas de seminários em diversos países E4: tenho estudo Em seguida, o entrevistador questiona sobre a experiência com a língua espanhola do respondente, que devolve a pergunta nós aqui estamos criados aonde?. O entrevistador lhe responde na América Latina. E o entrevistado na América Latina, mas estamos na fronteira com quem?, e prontamente o entrevistador diz com o Uruguai e com a Argentina. Nesse caso a situação é diferente porque temos não um monólogo, mas um diálogo. E, além de ser um diálogo, há uma pergunta que não é respondida imediatamente por haver outra pergunta entre ela e a resposta. Assim, teremos dois encadeamentos: Nós somos criados na América Latina DC somos criados dentro do continente MAS nós somos criados na América Latina PT somos criados na fronteira com o Uruguai e a Argentina. E1: Nós somos criados na América Latina E2: somos criados dentro do continente E3: nós somos criados na América Latina E4: somos criados na fronteira com o Uruguai e a Argentina Somos criados na fronteira com o Uruguai e a Argentina DC falamos espanhol. Assim, o primeiro encadeamento resulta no segundo, já que, se somos criados na fronteira com o Uruguai e com a Argentina, falamos espanhol, e foi através da segunda pergunta que o locutor induziu seu interlocutor a chegar a essa conclusão. Letrônica, Porto Alegre v.1, n.1, p. 92, dez. 2008.

3.2.3 Trecho 0812 0825 Nesta parte da entrevista há o relato de uma apresentação que, para acontecer, passou por diversos obstáculos. E alguém diz: (4) Olha, Cláudio, a turma que ia pifou, mas vai sair. Portanto, teremos: A turma que ia pifou DC o show não vai sair MAS a turma que ia pifou PT o show vai sair. E1: a turma pifou E2: não vai sair o show E3: a turma pifou E4: vai sair o show Assim, o locutor concorda que a turma pifou, rejeita que o show não vá sair e assume que, mesmo que a turma tenha pifado, o show sairá. Logo abaixo, o locutor, ainda narrando os obstáculos pelos quais o show passou, diz o seguinte: (5) Eu entrei em contato com Montevidéu, e vão ir os músicos pra lá, vão esperar vocês lá. Então tudo bem. Mas eu não conhecia nenhum deles, né? Temos o seguinte: Os músicos vão DC tudo bem MAS não conheço ninguém DC não tudo bem. E1: os músicos vão E2: tudo bem E3: não conheço ninguém E4: não tudo bem Quanto às atitudes do locutor em relação aos enunciadores, ele concorda com E1, rejeita o E2 e assume o E3 e o E4. Letrônica, Porto Alegre v.1, n.1, p. 93, dez. 2008.

3.2.4 Trecho 0901 0915 Nesta parte, o entrevistado continua seu relato sobre o show que passou por muitos empecilhos para acontecer. Ele diz, sobre uma dançarina de tango: (6) Então ela mudava a roupa, dois trajes, né? Depois outra, aí fomos na mala e cadê a roupa? Faltava a saia. A blusa tinha, mas a saia não tinha. Sendo assim, teremos: Tinha a blusa DC tinha a roupa MAS não tinha a saia DC não tinha a roupa. E1: tinha a blusa E2: tinha a roupa E3: não tinha a saia E4: não tinha a roupa. Novamente as atitudes do locutor em relação aos enunciadores será de concordar com o E1, rejeitar o E2 e assumir o E3 e o E4. 4 Considerações finais A Teoria da Argumentação na Língua foi desenvolvida por Oswald Ducrot e Marion Carel para provar que a argumentação está na própria língua, e não em fatos externos. Sendo assim, a função primeira da linguagem é argumentar. A argumentação, ou seja, o sentido, vem das relações entre palavras, enunciados e discursos. Assim, o sentido não vem pronto, mas é construído através da linguagem. Neste trabalho procuramos formalizar o sentido do articulador mas através de análises do discurso oral, utilizando para isso as instruções do articulador explicadas por Ducrot em sua obra publicada em Cali em 1988. Percebemos, através desse estudo, que o articulador possui um valor argumentativo que, como já havia mencionado Ducrot, vai além do que os falantes comuns podem perceber, comprovando a complexidade da linguagem. Referências Letrônica, Porto Alegre v.1, n.1, p. 94, dez. 2008.

CAREL, Marion; DUCROT, Oswald. La semántica argumentativa: una introducción a la Teoría de Los Bloques Semánticos. Traducción de María Marta García Negroni y Alfredo M. Lescano. Buenos Aires: Colihue, 2005. DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Tradução de Eduardo Guimarães. São Paulo: Pontes, 1987.. Polifonía y argumentación. Traducción de Ana Beatriz Campo y Emma Rodríguez C. Cali: Universidad del Valle: 1988. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2001. SILVA, Joseli Maria da; ESPÍNDOLA, Lucienne. Argumentação na Língua: da pressuposição aos topoi. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2004. VARSUL. Disponível no Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Acesso em: outubro de 2007. Letrônica, Porto Alegre v.1, n.1, p. 95, dez. 2008.