Análise de mal-entendidos em diálogos
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1 Vol. 7, n. 2, p , mai/ago by Unisinos - doi: /cld Telisa Furlanetto Graeff telisa@upf.br Silvane Costenaro silvanecostenaro@hotmail.com Análise de mal-entendidos em diálogos Analysis of misunderstandings in dialogues RESUMO O trabalho analisa mal-entendidos em diálogos, com base em conceitos desenvolvidos por Carel e Ducrot na Teoria dos Blocos Semânticos (TBS). A TBS propõe que se atribua como sentido a uma entidade linguística um conjunto de encadeamentos argumentativos em DC (portanto) e em PT (mesmo assim) e postula dois modos pelos quais um aspecto argumentativo pode estar associado às palavras cujo sentido ele (o aspecto) constitui: o externo, encadeamentos que precedem ou seguem a entidade; e o interno, encadeamentos que a parafraseiam. Assumindo essa noção de argumentação discursiva, foram analisados dois diálogos. Concluiu-se que a incompreensão se deve ao fato de os interlocutores associarem a uma mesma entidade linguística argumentações diferentes, produzindo, então, objetos de discurso diversos. Palavras-chave: bloco semântico, encadeamento argumentativo, malentendido, semântica argumentativa. ABSTRACT This study analyzes misunderstandings in dialogues, based on concepts developed by Carel and Ducrot in the Theory of Semantic Blocks. This theory proposes to allocate as meaning to a linguistic entity a set of donc sequences and pourtant sequences and postulates two ways by which an argumentative aspect can be linked to the words whose meaning it constitutes: the external, sequences that precede or follow the entity, and the internal, sequences that paraphrase it. Assuming the notion of discursive argumentation, two dialogues were analyzed. We concluded that the misunderstanding is due to the fact that the interlocutors linked different linguistic argumentations to a single entity, producing, then, different objects of speech. Key words: semantic block, argumentative sequence, misunderstanding, semantic argumentative. Introdução Este trabalho procura explicitar a origem de incompreensões que ocorrem em diálogos, com base em princípios e conceitos de semântica argumentativa, especialmente os desenvolvidos por Carel e Ducrot na Teoria dos Blocos Semânticos (daqui em diante TBS), iniciada por Carel em Essa teoria mantém e consolida a tese de que a argumentação está marcada na própria estrutura linguística (Anscombre e Ducrot, 1983). Segundo a TBS, argumentar é convocar blocos semânticos. Nessa direção, propõe que se atribua como sentido a uma entidade linguística um conjunto de encadeamentos argumentativos em DC (= portanto) e em PT (= mesmo assim) e postula dois modos pelos quais um aspecto argumentativo pode estar associado às palavras cujo sentido ele constitui: o externo, referente aos encadeamentos argumentativos que podem preceder ou seguir a entidade, e o interno, que corresponde aos encadeamentos que a parafraseiam. Assumindo essa noção de argumentação discursiva, são analisados dois diálogos em que se pode perceber o surgimento do malentendido, em virtude das diferentes possibilidades de argumentação de uma entidade linguística e do fato de o sentido argumentativo se constituir unicamente no bloco semântico, sendo expresso por um encadeamento argumentativo desse bloco. No sentido de se detalhar a noção de argumentação adotada neste trabalho, serão apresentadas ideias fundamentais da Teoria da Argumentação na Língua, proposta por Anscombre e Ducrot, reiteradas e ampliadas pela TBS, passando-se, em seguida, à análise de dois diálogos. Base teórica da análise A Teoria dos Blocos Semânticos originou-se na Teoria da Argumentação na Língua (ADL) 1, criada por Anscombre e Ducrot (1983), resultado de reflexões sobre o sentido argumentativo das palavras, que descarta completamente o sentido informativo. 1 ADL sigla correspondente ao nome da teoria em francês.
2 156 Na primeira fase da ADL, conhecida como forma standard, é apresentada a idia de que as palavras não têm sentido antes das conclusões delas tiradas, como se pode conferir nos enunciados: Faz sol, vamos sair. Faz sol, não vamos sair. Nesses dois enunciados, o valor semântico da expressão faz sol varia, conforme as conclusões que se tirem dela. Num caso, o sol é favorável ao passeio; sendo, em outro, desfavorável. Uma das principais evidências do valor argumentativo das palavras, em detrimento de seu valor informativo, é o fato de Ducrot e seus colaboradores terem percebido que, em todas as línguas, existem pares de frases cujos enunciados designam o mesmo fato, quando o contexto é o mesmo, sendo as argumentações possíveis a partir desses enunciados completamente diferentes. Como exemplo, considere-se o par de enunciados: João comeu pouco no almoço e João comeu um pouco no almoço. Observe-se que, nos dois casos, trata-se da ingestão de uma pequena quantidade de alimento. No entanto, do primeiro pode-se concluir negativamente e, do segundo, positivamente, ou vice e versa. A ideia de que as conclusões possíveis, a partir de enunciados como esses, são radicalmente opostas passa a ser contestada, principalmente com base na percepção de que os dois enunciados acima podem autorizar conclusões iguais, dependendo de como é vista a ingestão de alimentos, se como prejudicial ou benéfica. Percebeu-se, em outras palavras, que, com operadores como pouco e um pouco, por exemplo, pode-se chegar à mesma conclusão com o auxílio argumentativo de diferentes topoi, os quais garantem a passagem do argumento para a conclusão. Os topoi são crenças, lugares comuns cuja função é orientar os enunciados em direção à conclusão. Em outras palavras, são princípios argumentativos universais, coletivos e graduais que justificam a passagem do argumento para a conclusão, constituindo um trajeto argumentativo. Ducrot (1990) explicita a noção e o funcionamento dos topoi por meio dos exemplos que seguem: (19) Trabalhou um pouco, vai ter êxito. (Ha trabajado un poco, va a tener éxito.) (20) Trabalhou pouco, vai fracassar. (Ha trabajado poco, va a fracasar.) (21) Trabalhou pouco, vai ter êxito. (Ha trabajado poco, va a tener éxito.) Caso se pense que o trabalho conduz ao êxito, os enunciados (19) e (20) são perfeitamente possíveis. Mas, se cremos que o trabalho é causa de fracasso, temos como possível o enunciado (21). Podemos tirar uma mesma conclusão do enunciado com pouco e um pouco. Tudo depende da ideia que o locutor tem de trabalho. Como é o caso dos exemplos (19) e (21) em que se tem a mesma conclusão, embora se chegue a ela por caminhos diferentes, os quais são justificados por meio do topos, visto como o intermediário entre o argumento e a conclusão. Para chegar à mesma conclusão, a partir de dois argumentos distintos, se manifestam dois topoi diferentes. A noção de topos juntamente com a noção de polifonia modifica a forma standard da ADL, transformando-a no que se denominou forma standard ampliada. Na forma standard, o potencial argumentativo era definido em termos de conclusões possíveis e, nesta última, o potencial argumentativo é o conjunto de topoi que podem ser evocados por uma entidade determinada. No desenvolvimento da ADL, a noção de topos será substituída pela noção de bloco semântico. Carel e Ducrot desenvolveram a Teoria dos Blocos Semânticos, proposta como uma nova versão técnica da Teoria da Argumentação na Língua. Essa terceira fase da ADL radicaliza a rejeição à divisão tradicional entre semântica e pragmática, explicitando a concepção segundo a qual o caráter argumentativo de um encadeamento é definido pela interdependência entre os seus dois segmentos. Para Carel (2001), esse fenômeno é chamado de interdependência semântica, porque, em dois tipos de encadeamentos consecutivos (em donc) e concessivos (em pourtant), se manifesta um mesmo fato fundamental, a saber, que cada um dos predicados encadeados toma somente seu sentido na relação com o outro. Em discursos desses dois tipos, o sentido do primeiro segmento é determinado pelo segundo segmento e vice-versa, de modo tal que não há uma relação de inferência entre os segmentos, mas de interdependência semântica. É o que explica Carel no trecho que segue: Minha noção de argumentação nada tem a ver com aquela de inferência. Esta última, com efeito, repousa sobre uma ideia de passagem, ao fim da qual um enunciado (argumento) transmitiria sua veracidade a um novo enunciado (a conclusão). Minha noção de argumentação, ao contrário, supõe uma dependência de dois segmentos. Não há, para mim, num encadeamento argumentativo, qualquer progresso informativo. É um único ponto de vista que é desenvolvido, ou sob um ângulo normativo, ou sob um ângulo transgressivo. [...] A linguística que eu desenvolvo procura ser estruturalista (Carel, 2001, p. 7). Essa nova proposta abre mão da noção de topos e introduz, entre outros conceitos, os de bloco semântico, de aspecto normativo e transgressivo, de argumentação interna e externa, como se verá a seguir. A Teoria dos Blocos Semânticos sustenta a ideia central da ADL de que a argumentação está presente no sistema da língua, constituindo-se no principal elemento para apreensão do sentido dos enunciados. A importância desse estudo é inquestionável, pois suas análises e reflexões direcionaram os olhares a um novo horizonte em relação à semântica linguística. De acordo com Carel e Ducrot, A semântica estrutural implica, em efeito, que não é possível descrever as palavras através de elementos não linguísticos. Se considerarmos que os conectores envolvem interdependência, Telisa Furlanetto Graeff e Silvane Costenaro
3 Vol. 07 N. 02 mai/ago 2009 devemos admitir que os encadeamentos só têm uma realidade discursiva (Carel e Ducrot, 2005, p ). 2 Segundo Carel e Ducrot (2005), a principal ideia da teoria é que o sentido de uma expressão está dado pelos discursos argumentativos que podem ser encadeados a partir dessa expressão. Carel, ao propor a TBS, deu-se conta de que, na realidade, a Teoria dos Topoi contrariava a ADL, pois baseava a argumentação em elementos existentes no mundo exterior, enquanto o que se tentava estabelecer é que a argumentação era de ordem puramente linguística. A TBS reitera que o sentido de uma entidade linguística não é constituído por coisas, fatos, crenças psicológicas, estando fundamentado por certos discursos que essa entidade linguística evoca. Discursos esses que constituem encadeamentos argumentativos, os quais se definem pela articulação de dois predicados ligados pelos conectores DC (portanto) e PT (mesmo assim). Essas duas partes do encadeamento constituem um único sentido. Como se pode perceber, nos enunciados João tem muito dinheiro DC (portanto) é feliz e João tem saúde DC (portanto) é feliz, não se trata da mesma felicidade. No primeiro enunciado, João é feliz devido à sua riqueza e, no segundo, é devido à sua saúde. A interpretação do primeiro e do segundo segmentos, nos dois enunciados, não é feita separadamente, pois a ideia é indecomponível. Há uma unidade semântica, ou seja, a sequência dos dois segmentos produz sentido somente se estiverem juntos. Constituem-se, desse modo, dois blocos semânticos distintos entre si: dinheiro/felicidade e saúde/ felicidade, os quais, no exemplo em foco, estão em seu aspecto normativo, podendo ser expressos, também, em seu aspecto transgressivo: João tem muito dinheiro, PT não é feliz e João tem saúde PT não é feliz. Cada aspecto tem seu recíproco. No caso do enunciado João tem muito dinheiro DC é feliz, o aspecto normativo recíproco seria João não tem muito dinheiro DC não é feliz. Já aspectos transgressivos recíprocos seriam João não tem muito dinheiro PT é feliz e João tem muito dinheiro PT não é feliz. A relação semântica argumentativa que dinheiro e felicidade constroem solidariamente pode ser expressa pelo discurso: Quem tem dinheiro é feliz, o qual pode ser visto positiva ou negativamente. O fato de se poder generalizar não impede que se possam expressar as exceções, pelo aspecto transgressivo (encadeamento em PT). Assim um bloco semântico apresenta vários aspectos: os recíprocos, positivo e negativo; os conversos, normativo e transgressivo, como se evidenciou nos enunciados anteriores, além dos aspectos transpostos, positivo normativo e negativo transgressivo, ou negativo normativo e positivo transgressivo. Mostrou-se que na TBS somente são admitidos dois tipos de conectores e, consequentemente, dois tipos de encadeamentos argumentativos: os normativos, também chamados consecutivos, com conectores como portanto (DC, que representa o conector donc em francês) e os transgressivos, também chamados concessivos, com conectores do tipo mesmo assim (PT, que representa o conector pourtant, em francês). No entanto, um encadeamento normativo, por exemplo, não está necessariamente marcado pela palavra portanto. Existem outras que exercem a mesma função, como se pode observar nos enunciados: Paulo é atencioso, portanto não terá maiores problemas. Paulo é atencioso, então não terá maiores problemas. A atenção de Paulo faz com que ele não tenha maiores problemas. No caso dos encadeamentos transgressivos, isso também ocorre. É o caso dos enunciados: Paulo é atencioso, mesmo assim teve problemas. Embora Paulo seja atencioso, teve problemas. Apesar de ser atencioso, Paulo corre o risco de ter problemas. Na citação a seguir, Carel destaca uma questão fundamental para o estabelecimento da diferença entre os aspectos normativos e transgressivos: Em particular, segundo minha terminologia, o encadeamento Pedro é rico, portanto é infeliz [...] é normativo. Por certo, ele é contrário às crenças sociais. Mas isso não faz dele o que eu chamo de encadeamento transgressivo. Ele é, ao contrário, normativo, porque, tanto quanto Pedro é rico, portanto é feliz [...], ele vê a regra (a riqueza traz infelicidade) como uma prescrição. O encadeamento Pedro é rico, portanto é infeliz deve, então, ser bem diferenciado de Pedro é rico, mesmo assim é infeliz: o primeiro contradiz a regra segundo a qual a riqueza traz felicidade; o segundo se contenta em desobedecê-la (Carel, 2001, p. 4). Cumpre referir, ainda, que se deve considerar a existência dos dois modos de argumentar de uma entidade linguística: o externo e o interno. Segundo Ducrot (2002), a argumentação externa é tida como a pluralidade dos aspectos constitutivos do sentido da entidade na língua, e que são a ela ligados de modo externo. Em outras palavras, 2 La semántica estructural implica, en efecto, que no es posible describir las palabras a través de elementos no linguísticos. Si considerarmos que los conectores involucran interdependencia, debemos admitir que los encadeamentos solo tienen una realidad discursiva (Carel e Ducrot, 2005, p 19-20). Análise de mal-entendidos em diálogos 157
4 158 refere-se aos encadeamentos argumentativos que podem anteceder ou seguir essa entidade. Por isso a argumentação externa (AE) pode ser AE à direita e AE à esquerda. Confiram-se os exemplos: AE à direita de prudente: É prudente DC (portanto) não terá acidentes. É prudente PT (mesmo assim) terá acidentes. AE à esquerda de prudente: Revisa o carro DC (portanto) é prudente. Não revisa o carro PT é prudente. Note-se que as argumentações externas de uma entidade linguística são pares formados por um encadeamento normativo e outro transgressivo. Observe-se, contudo, que, no caso da AE à esquerda, há uma modificação na regra que é válida para AE à direita, segundo a qual, se a argumentação externa de uma entidade X contém o aspecto normativo, ela contém também o transgressivo e vice-versa. No caso da AE à esquerda, explica Ducrot (2002), a regra sofre a seguinte reformulação: [...] se a AE da entidade X contém Y CON X, ela contém também o aspecto dito transposto, que é neg-y CON X. Assim a AE à esquerda de ter pressa comporta não somente ter pressa DC apressar-se, mas igualmente neg-ter pressa PT apressar-se (Ducrot, 2002, p. 9). O fato de serem pares os encadeamentos que constituem a argumentação de uma entidade linguística é fundamental para a ADL, por permitir distinguir definitivamente uma argumentação normativa de uma inferência lógica. Carel e Ducrot (2008, p ) explicam que os dois encadeamentos o normativo e o transgressivo correspondente [...] estão igualmente inscritos, ao menos como possibilidades, na significação da frase realizada pelo enunciado o que impede de apresentar este último como uma justificativa que impõe uma conclusão. Já, relativamente à argumentação interna (AI) de uma entidade linguística, esclarecem os referidos autores tratar-se de um encadeamento em DC ou em PT que constituem equivalentes mais ou menos próximos dessa expressão, eventualmente paráfrases ou reformulações (Carel e Ducrot, 2008, p. 11). Sublinham que a entidade em questão não pode ser um segmento do encadeamento que a parafraseia, nem comportar também o aspecto converso. Assim, a AI de prudente poderia conter o aspecto perigo DC precaução ou outro como perigo DC desistir. Já os aspectos transgressivos correspondentes perigo PT não precaução e perigo PT não desistir seriam AI de imprudente. As observações feitas até aqui mantêm e reiteram a ideia fundamental da Teoria da Argumentação da Língua de que a linguagem não descreve diretamente a realidade, ou seja, de que a linguagem não é objetiva, ressaltando a descrição argumentativa, feita por meio da atitude do locutor e do chamado que este faz ao interlocutor, aspecto subjetivo e intersubjetivo da linguagem, por meio dos quais as palavras impõem a visão argumentativa discursiva da realidade. Apresentação e análise dos diálogos pela Teoria dos Blocos Semânticos Passaremos, a seguir, ao relato das situações em que ocorreram os diálogos, e à sua análise para explicitação da origem dos mal-entendidos, com base em princípios e conceitos da semântica argumentativa como os de argumentação discursiva, bloco semântico, quadrado argumentativo, aspectos argumentativos, argumentação externa e argumentação interna, entre outros. Diálogo 1 e análise pela Teoria dos Blocos Semânticos O diálogo que segue ocorreu entre um funcionário de uma academia de ginástica e uma usuária da academia, em dia próximo à Páscoa, mais precisamente anterior à Sexta-feira Santa, quando, terminada a aula, ela se retirava. Usuária: Então, Feliz Páscoa. Funcionário: É Feliz Páscoa e sem muito chocolate... Páscoa de pouco chocolate. Usuária: É... Chocolate só o Amaro... Funcionário: (não diz nada) Usuária: (vendo que o funcionário não usara o turno, repete e complementa) Só o chocolate Amaro, da Nestlé... Funcionário: (não diz nada) Usuária: (para interromper o silêncio, conta) Tu sabes que recebi uma mensagem, dizendo que a gente pode comer carne de gado, porque o gado se alimenta de pasto e pasto é vegetal? Funcionário: (ri e não diz nada) Usuária: (tentando fazê-lo se interessar pela conversa, acrescenta) Diz que galinha também pode, porque só se alimenta de milho e milho é vegetal... Funcionário: É isso é bobagem... Usuária: (não entende e fica esperando que ele continue) Funcionário: (repete e explica) É bobagem que Deus vai fazer diferença entre quem come carne ou peixe. Usuária: (não diz nada, procurando entender, espera que ele continue) Funcionário: (percebendo que ela não entendera, continua) Quem é pobre não pode comprar peixe, que é caro, então tem de comer carne e de galinha, mesmo... Usuária: (entendendo agora, por que ele dissera Páscoa de pouco chocolate, concorda) É isso mesmo. Claro que Deus não se importa. Isso de comer peixe é bobagem. Telisa Furlanetto Graeff e Silvane Costenaro
5 Vol. 07 N. 02 mai/ago 2009 Quando o Funcionário diz: Feliz Páscoa e sem muito chocolate... Páscoa de pouco chocolate, ele produz enunciados que podem ser representados pelo encadeamento argumentativo transgressivo Páscoa PT (mesmo assim) pouco chocolate, que teria como converso o encadeamento argumentativo normativo Páscoa DC (portanto) muito chocolate. Note-se que esse par de encadeamentos constitui argumentações externas à direita de Páscoa. Além disso, o funcionário atribui a chocolate o predicado de ser caro e por isso o consumo tem de ser pequeno. Constitui, então, o bloco semântico que relaciona esses dois predicados e seleciona o aspecto normativo ser caro DC consumir pouco, que resulta no sentido argumentativo, único para ele, de pouco chocolate. Esse encadeamento constituiria a AI de pouco chocolate. Já a usuária, ao dizer É... Chocolate só o Amaro..., toma de chocolate o atributo de alimento muito calórico e relaciona-o a ingerir pouco. Para ela, dito de outro modo, pouco chocolate teria o sentido argumentativo expresso no encadeamento alimento muito calórico DC consumir pouco, que seria outra argumentação interna de pouco chocolate. Além disso, ela destaca Chocolate só o Amaro. Entende-se, então, como AI de Amaro. (alimento pouco calórico DC ingerir). Note-se que há relação de reciprocidade entre os sentidos argumentativos de chocolate (muito calórico DC não ingerir) e de Amaro (pouco calórico DC ingerir). Destaque-se que o funcionário não entende esse sentido de pouco chocolate, porque engorda, porque não é saudável, tanto que não comenta essa fala da usuária. Esta, por sua vez, também não entendera pouco chocolate relacionado ao preço, prova disso é que continua falando sobre alimento que não engorda, que não tem colesterol ruim, contando a piada que recebera por , sobre a carne de gado e de galinha, que não teriam colesterol ruim, pelo fato de esses animais só se alimentarem de vegetais. Ela continua com o sentido faz mal DC não ingerir, ao qual corresponde o encadeamento recíproco do mesmo bloco faz bem DC ingerir. O funcionário continua sem entender o sentido de comer chocolate relacionado a engordar, a prejudicar a saúde, o que se percebe na sua fala que sucede o relato da piada, em que mantém o sentido argumentativo expresso no bloco semântico ser caro DC ingerir pouco. Note-se que ele compara o custo da carne de peixe com a de gado e de galinha, dizendo que se podia comer a mais barata, porque Deus não se importava com o fato de comerem ou não peixe. A usuária da academia de ginástica, ao perceber a relação entre preço e ingesta de peixe ou outra carne, percebe, também, os dois sentidos argumentativos de pouco chocolate. Em vista disso, consegue fazer uma fala que toma o sentido de ingerir pouco porque é caro e termina o diálogo, concordando com o funcionário (É isso mesmo. Claro que Deus não se importa. Isso de comer peixe é bobagem.) Diálogo 2 e análise pela Teoria dos Blocos Semânticos A professora de uma escola de Ensino Médio, depois de uma longa conversa com a orientadora pedagógica sobre a precariedade das condições físicas da escola, de como isso desestimulava o trabalho, entrou na sala dos professores, em que estavam uma colega e uma auxiliar de limpeza, e fez o seguinte comentário: Pelo menos, este ano, com os alunos dá prazer de! A colega, ao ouvir o comentário, retirou-se da sala muito ofendida. Conversando mais tarde com a auxiliar de limpeza, a professora ficou sabendo que a colega entendera que os professores (e ela se incluiu entre eles) não proporcionavam prazer, pelo contrário, dificultavam as atividades escolares. Ao falar Pelo menos, este ano, com os alunos dá prazer de!, a professora associou condições humanas da escola e prazer de, construindo o bloco semântico que estabelece interdependência semântica entre esses dois predicados e fazendo evocar um outro bloco que relaciona condições físicas da escola e prazer de. Em realidade, a expressão prazer de numa escola pode ter como argumentação externa à esquerda tanto condições materiais quanto condições humanas. Confira-se: (i) condições físicas boas DC prazer de (ii) condições humanas boas DC prazer de Ora, a professora, ao fazer o comentário, referiase ao fato de que, se as condições materiais eram ruins, restavam as condições humanas a manter o prazer de. Em outras palavras, a professora deixa entender, em sua fala, que uma escola tem aspectos físicos e aspectos humanos. Reconhece a precariedade dos aspectos físicos, isto é, que, apesar de o quadro-negro ser ruim, de serem reduzidos os espaços físicos, de faltar área para atividades esportivas, os alunos tornam o trabalho agradável. A colega que, ouvindo o comentário, ofendeu-se opôs as argumentações: (iii) presença de alunos DC prazer de (iv) presença de professores DC ausência de prazer de Note-se que, ao falar, a professora não mencionou explicitamente o assunto da conversa com a orientadora pedagógica e, pelo fato de falar, mesmo que implicitamente, sobre as condições humanas da escola, a colega ofendida construiu outro bloco semântico, com base no aspecto normativo recíproco, associando alunos (que fazem parte das condições humana da escola) a bom, evocando um dos aspectos Análise de mal-entendidos em diálogos 159
6 160 normativos recíprocos desse bloco: não alunos (que, no caso, seriam os professores)dc (=portanto) ruim. Como se pode comprovar no quadrado argumentativo que segue: alunos DC bom presença dos alunos/prazer de não alunos PT bom não alunos DC ruim professores alunos PT ruim Como se pôde observar, a construção do bloco com os predicados: presença dos alunos e prazer de, feita pela ouvinte, foi possível, devido ao fato de se associar a uma mesma entidade linguística (no caso, prazer de ) argumentações diferentes (no caso, condições físicas e condições humanas ou presença de alunos), produzindo, assim, sentidos completamente diversos. Dito de outro modo, a colega construiu outro bloco semântico, associando não presença de alunos ou presença de professores (que fazem parte das condições humanas da escola) a ruim. Note-se que esse encadeamento seria o recíproco de presença de alunos DC bom. Considerações finais recíprocos Como se pôde perceber, no primeiro diálogo, a incompreensão surgiu da construção de blocos diferentes feita pelos interlocutores: enquanto o funcionário estabelecia interdependência semântica entre o alimento ser caro e ingerir pouco, a usuária estabelecia dependência entre alimento não saudável e ingerir pouco. E cada um segue até o final com o sentido argumentativo que construiu para a entidade linguística pouco chocolate. As duas diferentes argumentações internas constituídas discursivamente impedem que o diálogo flua naturalmente. Tem-se um diálogo permeado de pausas e de tentativas de um e de outro participante de entender o sentido e de esclarecê-lo. Parece-nos que a análise feita não deixa dúvidas quanto ao fato de que o sentido das entidades linguísticas é argumentativo discursivo, decorrente do encadeamento em DC ou em PT que a elas possa ser associado de um modo interno ou externo. Essa é a análise linguística que se pode fazer da incompreensão no diálogo, que aponta a existência de dois contextos pragmáticos diferentes. Num caso, tem-se um funcionário preocupado com o preço dos alimentos (chocolate, peixe, em época de Páscoa) e, de outro, tem-se a usuária da academia de ginástica preocupada com seu peso, com sua saúde. A questão pode ser bastante ampliada no que diz respeito às pesquisas contextuais possíveis, mas a Teoria da Argumentação da Língua, especialmente a dos Blocos Semânticos, interessa-se pelo sentido argumenta- tivo que está na língua, que o discurso constrói. Retomando a análise do segundo diálogo, podese destacar que a professora, em seu comentário, falou a respeito das condições humanas (e destacou os alunos), por oposição às precárias condições físicas da escola, e não por oposição a professores. Já a colega entendeu que era ruim com professores daquela escola. O que se procurou mostrar é que, apesar de a professora não ter tido a intenção de construir o bloco presença dos alunos x prazer de, em seu comentário, a sua colega entendeu assim; caso contrário, ela não se ofenderia. A colega evocou o aspecto normativo recíproco desse bloco: não alunos (professores), DC (=portanto) ruim, o que comprova que um enunciado, expressando um encadeamento, permite evocar todos os outros aspectos de seu bloco. Em síntese, ao falar, a professora não teve a intenção de dizer que não é bom com os professores, mas a ouvinte entendeu isso, porque esse aspecto faz parte do quadrado argumentativo que ela própria (ouvinte) construiu. É de se crer que ela esteja enfrentando problemas de relacionamento com colegas, daí a argumentação externa construída. Mas, por essa perspectiva de análise, a teoria da Argumentação na Língua não se interessa desde seu início e, em seu desenvolvimento até a TBS, sua forma atual, somente radicalizou a decisão de se ater aos elementos linguísticos no estudo da argumentação discursiva. É possível concluir, pelas análises feitas neste trabalho, que a semântica argumentativa, especialmente a Teoria dos Blocos Semânticos, pode auxiliar na explicitação da origem de incompreensões em diálogos. Referências ANSCOMBRE, J-C.; DUCROT, O L argumentacion dans la langue. Bruxelas, Márdaga, 184 p. CAREL, M.; DUCROT, O La semántica argumentativa: una introducción a la Teoría de los Bloques Semánticos. Buenos Aires, Ediciones Colihue, 237 p. CAREL, M.; DUCROT, O Descrição argumentativa e descrição polifônica: o caso da negação. Letras de Hoje, 43(1):7-18. CAREL, M O que é argumentar? Desenredo, 1(2): DUCROT, O Polifonía y argumentación. Cali, Universidad del Valle, 170 p. DUCROT, O Os internalizadores. Letras de Hoje, 37(3):7-26. Telisa Furlanetto Graeff Submetido em: 30/04/2009 Aceito em: 15/07/2009 Universidade de Passo Fundo Campus 1, BR 285, km 171, Bairro São José , Passo Fundo, RS, Brasil Silvane Costenaro Universidade de Passo Fundo Campus 1, BR 285, km 171, Bairro São José , Passo Fundo, RS, Brasil Telisa Furlanetto Graeff e Silvane Costenaro
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