o trabalho das mulheres na esfera pública: o trabalho da terra



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Transcrição:

o trabalho das mulheres na esfera pública: o trabalho da terra Se existe trabalho de longa duração em que as mulheres se encontram envolvidas até aos nossos dias é o trabalho da terra. No trabalho directo da terra, é na qualidade escravas, servas, jornaleiras (trabalho à jorna, ao dia), assalariadas e caseiras que as mulheres nos aparecem com grande significado ao longo da história e, tal como nos demais sectores económicos, também aqui a retribuição económica do seu trabalho é menor. A planície, a montanha, o litoral ou o interior, o minifúndio ou o latifúndio, indissociáveis das características geográficas e culturais do território, concorrem para criar constrangimentos e oportunidades diversas quer no acesso à propriedade quer no desempenho de actividades e tarefas envolvidas no trabalho da terra, incluindo, muitas vezes, a pastorícia, gerando condições de vida desiguais. No que se refere, especificamente, ao contexto do Alto Minho, as relações das mulheres com a terra e com o trabalho para o século XX são retratadas do seguinte modo: "Os caseiros que trabalham as terras de outras pessoas, tramitem o direito a trabalhar essa terra e aviver na habitação que lhe está ligada à filha casada que permanece junto deles r... l. A terra própria é insignificante, pelo que se criam dificuldades ao casamento local das outras filhas. O mesmo sucede com os 1 Cf. Actas do Colóquio A Mulher na Sociedade Portuguesa. Visão Histórica e Perspectivas Actuais, 1985, Coimbra, lhes, Faculdade de Letras, vols. I e 11.

4. Chasseuse à l'arbalête. La cueillette des pommes. La bergerie. Les cardeuses et file uses.

lavradores que não possuem terra suficiente para ser distribuída por todos os filhos. As filhas vão para as cidades servir como criadas ou ficam em casa como solteironas. [oo.] No entanto, a posição das mulheres destituídas de vínculos à terra é ainda menos invejável que a posição das filhas dos caseiros. Até aos anos 60, era pouco provável que encontrassem marido e, simultaneamente, não possuíam a segurança de uma casa agrícola porque as suas próprias mães eram também, muitas vezes, solteiras. Não tinham habitação própria e eram, frequentemente forçadas a viver em alojamentos temporários e de ocasião, tais como celeiros, estábulos e casebres arrendados. Como eram pagas ao dia ('a jornal') e o seu emprego era, portanto, sazonal, precisavam muitas vezes de recorrer à prática de relações sexuais com lavradores ricos a fim de obter comida e a satisfação de outras necessidades mínimas, durante os meses de inverno. Por isso, os pais dos seus filhos, eram frequentemente os patrões ou outros camponeses ricos das proximidades." (PINA CABRAL, 1989, p. 82.) É pois, por referência à propriedade ou não de terra que importa considerar a posição social das mulheres no mundo rural; posição esta que é também determinante da sua relação com o casamento e a maternidade. Um exercício de análise acerca da posição social das mulheres no campo com base neste princípio explicativo, e para o período compreendido entre 1870-1978, foi realizado por Brian O'NEILL na obra Proprietários, Lavradores e Jornaleiras, publicada em 1984. Tal como o próprio título sugere, é por via de uma desigual relação com a terra que se estabelecem os lugares entregéneros, sendo a relação mais precária com o trabalho, à jorna, exclusivamente identificada com as mulheres. O mesmo acontece, por arrastamento, no que se refere à diferenciação social intragénero. 5. La betgêre gardant ses moutons (1864), de Jean-François Millet.

Na verdade, com uma outra relação com a terra, encontram-se as mulheres proprietárias. Estas poderão ou não estar envolvidas no trabalho directo, mas, à semelhança dos homens, dirigem e administram a exploração agrícola: "[...] Quina era imprescindível com o seu tacto político, a respeito de relações,.negócios, contratos. Nas feiras fizera-se conhecida, com o seu guarda-chuva e a saca de vidrilhos, cumprimentando aqui, escolhendo gado mais além, parando, demorando, num vício palrador muito popular com o seu génio de ímpetos, facécias, conselhos, um apadrinhar de todas as desavenças [...]. Aos poucos, a casa da Vessada ficou entregue nas mãos de Quina, e ela foi considerada senhora absoluta dentro daquele pequeno reino de campos, moinhos, bandos de galinhas rninorcas, cachorros que alguém salvou de morrer afogados nos ribeiros e que ladram, recuando, aos estranhos que têm pelo meio da quinta, direito de passagem. [...] Dedicou-se a evoluir, a subir, a desenvolver tentáculos de intrigas que favorecessem a sua decisão, que era enriquecer e, mais ainda, ser notável. Obcecou-se no fito de engrandecer os seus bens e o seu prestígio, primeiro com o projecto modesto de permanecer independente, saldar dívidas e corrigir as irresponsabilidades do pai, erguendo a casa ao primitivo nível de crédito e de fartura." (BESSA Luis, 1954, pp. 55-59.) 6. A Rega dos Alfobres, de [osé Malhoa.

Quadro 1 - População residente empregada na agricultura segundo o sexo e a situação na profissão (2001) (%) ~~';': ~',, ~" Trabalhador por conta própria/isolado "", ttr {a 6,1,,5 _,~. 30,3 23,7 31,6 TrabalhadorfanIiliar não remunerado 4,4 13,9 64,8 Outra situação 0,6 0,9 45,6 Fonte: INE - Recenseamento Geral da População e Habitação. Censos 2001.

Mais do que qualquer outra actividade, o trabalho das mulheres na agricultura pauta-se por uma das características estruturais do trabalho feminino: a sua invisibilidade. Esta invisibilidade produz-se de cada vez que a prestação do trabalho feminino se confunde com a realização de trabalho doméstico e que este se insere no quadro de relações de parentesco e de uma economia familiar de subsistência, assente na prestação de trabalho por parte dos membros do grupo familiar. Pautada pela precariedade material e, frequentemente, pela sazonalidade do trabalho, esta situação é tanto mais agravada quanto, por via da emigração masculina, o seu trabalho é redobrado: para além do trabalho que habitualmente as mulheres já desempenhavam, acresce-lhes o resultante da necessidade de substituir os braços masculinos. Acresce-lhe ainda como extensão do trabalho feminino para a sobrevivência do grupo doméstico a afectação particular das mulheres às actividades de troca e de comercialização em pequena escala de produtos animais e vegetais resultantes do seu labor. Ainda que a emigração tenha um rosto marcadamente masculino, as mulheres, sobretudo as dos grupos sociais mais desfavorecidos, não deixaram de emigrar. Para muitas, tal experiência saldou-se na possibilidade de acumular um.capital que, depois convertido em terra, lhes permitiu romper com um destino social de gerações como jornaleiras, podendo dispor de uma independência económica que as projectou a si e aos seus para outra condição social. Se a escravatura e a servidão são condições perante o trabalho já ultrapassadas na realidade portuguesa, ainda assim, hoje em dia, não se encontram banidas de todo um conjunto de outras sociedades, subsistindo quer no trabalho agrícola quer no trabalho industrial.

AS MULHERES E A CIDADANIA: AS MULHERES E O TRABALHO NA ESFERA PÚBLICA E NA ESFERA DOMÉSTICA I CRISTINA ROCHA, MANUELA FERREIRA ; REV. SANDRA ELlAS AUTOR(ES): PUBLICAÇÃO: DESCR. FISICA: COLECÇÃO: BI BLlOGRAFIA: ISBN: Rocha, Maria Cristina Tavares Teles da; Ferreira, Manuela, co-autor; Elias, Sandra, rev. de matriz Lisboa: Livros Horizante, copo 2006 215 p. : il. ; 24 em A mulher e a sociedade Bibliografia, p. 205-210 972-24-1437-2