BOLETIM CEDES OUTUBRO/DEZEMBRO 2011 ISSN 1982-1522 Entrevista * Gisele Guimarães Cittadino, Professora Associada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), tem se destacado nos últimos anos como uma das pesquisadoras mais destacadas na área de estudos comumente identificada como judicialização da política e das relações sociais. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (1979), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1982) e Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), em 1998, Cittadino atua na área da Filosofia Constitucional, com ênfase nas temáticas do constitucionalismo democrático, direitos fundamentais, justiça distributiva e multiculturalismo, sendo autora, entre outros trabalhos, da obra Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea (Lúmen Júris, 1999). ***** 1. Depois de mais de 10 anos da primeira publicação de seu livro Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva, alguns dos temas nele abordados, como a concretização da filosofia política da Constituição de 1988 e o destaque da função política do STF, têm adquirido cada vez maior proeminência no debate público. Como você enxerga o desenvolvimento desses temas durante esses últimos anos? Em Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva, eu destacava como a Constituição de 1988 nossa Constituição Cidadã foi a expressão definitiva no país daquilo que, na literatura estrangeira, ficou conhecido como movimento de retorno ao direito. Nossa Constituição, pela primeira vez na história brasileira, definiu os objetivos fundamentais do Estado e, ao fazê-lo, orientou a compreensão e interpretação do ordenamento constitucional pelo critério do sistema de direitos fundamentais. De outra parte, a Constituição criou um conjunto de instrumentos processuais que, utilizados por um ampliado círculo de intérpretes da constituição, tinha a função de garantir a efetividade desses direitos fundamentais. Luiz Werneck Vianna nos ensinou que a Constituição de 1988 garantiu a instituição de um novo espaço público, inédito em nossa história política, o espaço público judicial. Afinal, com direitos assegurados e instrumentos procedimentais capazes de concretizá-los, judicializar a política significava ocupar esse novo espaço público através de uma cidadania juridicamente * Perguntas elaboradas por Igor Suzano Machado (Pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade). 1
participativa. E isso efetivamente ocorreu. Os brasileiros, como nunca no passado, lutam na Justiça por seus direitos constitucionais. É natural, portanto, que os tribunais tenham igualmente uma maior proeminência no debate público em face da ampliação dessa cidadania juridicamente participativa. Se os tribunais estão efetivamente mais abertos ao cidadão, isso não pode representar, no entanto, nem protagonismo do Poder Judiciário em relação aos demais poderes da república, nem condução das instituições judiciais por processos deliberativos democráticos. Afinal, nem há como garantir a sobrevivência do Estado Democrático de Direito fora da lógica da separação dos poderes, nem se pode transformar os tribunais em regentes republicanos das liberdades positivas dos cidadãos. Em anos mais recentes, temos visto reaparecer no Brasil, especialmente no âmbito dos meios de comunicação, um discurso que desqualifica a democracia representativa e seus processos eleitorais e demoniza a atuação política partidária. Tal desqualificação, por vezes, vem acompanhada por uma extraordinária manifestação de confiança no Poder Judiciário, transformado em uma espécie de importante instância moral da sociedade, cuja atividade parece ser imune à crítica. Se a isso acrescentarmos a equivocada postura política de alguns presidentes de tribunais superiores e, especialmente, do próprio Supremo Tribunal Federal, que parecem ignorar como são frágeis os seus vínculos com as estruturas do mundo da vida afinal, para garantir a independência do poder judiciário é preciso desvinculá-lo dos tradicionais mecanismos da legitimação democrática, falar em protagonismo do Poder Judiciário no Brasil é, sem dúvida, conspirar a favor da redução da cidadania juridicamente participativa e do estreitamento do círculo de intérpretes da Constituição. 2. Em outro texto Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de poderes, publicado em A democracia e os três poderes no Brasil (2002) você também destaca que os juízes devem se esforçar para tomar decisões corretas e que não se deve perder de vista a responsabilidade democrática dos magistrados por suas decisões. De que forma, num contexto de ampliação dos seus poderes, os juízes devem operar para que tomem decisões corretas e cumpram com sua responsabilidade democrática? Se considerarmos, tal como Habermas propõe, a relação interna e co-original entre direito e democracia, não há dúvida de que os juízes cumprem sua responsabilidade democrática exatamente quando tomam decisões corretas. 2
Todos nós reconhecemos que as Constituições das democracias contemporâneas exigem uma interpretação construtivista das normas e dos princípios que as integram, tanto quanto uma leitura do sistema de direitos fundamentais não mais como garantia contra intervenções indevidas, mas como o fundamento que justifica pretensões a prestações positivas. É por isso que especialmente as decisões das cortes supremas têm o caráter de decisões de princípio. Todavia, a despeito da dimensão inevitavelmente criativa da interpretação constitucional dimensão, de resto, presente em qualquer processo hermenêutico, o que, por isso mesmo, não coloca em risco a lógica da separação de poderes, as cortes supremas, ainda que recorram a argumentos que ultrapassem o direito escrito, devem proferir decisões corretas e não se envolver na tarefa de criação do direito, a partir de valores preferencialmente aceitos. Não é tarefa do Poder Judiciário proferir decisões que sejam equiparadas a emissões de juízos que ponderam valores, objetivos e bens coletivos. Ou as cortes supremas consideram o sentido deontológico de validade das normas e princípios constitucionais, o que faz com que sejam vinculantes e não especialmente preferidos, ou, ao optar pelo sentido teleológico de validade das normas e princípios, descumprem sua responsabilidade democrática, desconhecem o pluralismo das democracias contemporâneas e, finalmente, ignoram as lógicas do poder econômico e do poder administrativo e suas assimétricas relações de força. 3. O Supremo Tribunas Federal tem tido destaque ultimamente, por defender direitos de minorias em face dos constrangimentos de julgamentos morais, como no caso do reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas e do direito à realização de passeatas em prol da descriminalização da maconha. Até que ponto as decisões de um tribunal podem se opor aos julgamentos morais de grande parcela da sociedade, sem resultar em um insulamento da corte perante essa sociedade à qual, em última instância, ela deve servir? É preciso, inicialmente, ter claro que o Supremo Tribunal Federal não tem alternativa senão a de julgar os conflitos jurídicos particulares que lhe são apresentados, por mais amplas que sejam as consequências políticas dessa decisão. Não há como se falar em Estado Democrático de Direito se não garantirmos ao cidadão a possibilidade de obter uma resposta para sua demanda particular. O Supremo Tribunal Federal não pode simplesmente deixar de dar uma resposta concreta a um caso concreto com base no argumento de que precisa aguardar a decisão do Poder Legislativo. 3
No entanto, como já assinalei, são muito frágeis as relações entre o STF e as estruturas do mundo da vida. Não há uma relação imediata entre o Supremo Tribunal e a sociedade brasileira como um todo, de modo que pudéssemos falar sobre a influência de uma certa dinâmica comunicativa do mundo da vida a atuar e legitimar as decisões do STF. Se, por um lado, muitos sonham em transformar o STF ou o Poder Judiciário em uma espécie de superego da sociedade, reafirmando nosso gosto histórico pelas revoluções pelo alto e pela atuação qualificada de elites técnicas, não creio, por outro lado, que devemos nos preocupar com a possibilidade de um insulamento da corte perante a sociedade brasileira. Diferentemente do Poder Legislativo, cuja porosidade política à esfera pública é condição mesma de seu bom funcionamento, o Poder Judiciário não tem como assegurar sua independência se não puder resistir às pressões políticas de grupos sociais. De outra parte, se não há uma relação imediata entre o STF e o mundo da vida, não podemos nos esquecer que as cortes supremas, diante dos chamados casos difíceis, podem abrir mão de atuar como o juiz Hércules configurado por Dworkin como aquele capaz de monologicamente relacionar um conjunto de princípios legítimos com as características relevantes de uma situação concreta e recorrer ao que Habermas designa como paradigma jurídico prevalecente à época da decisão. Para Habermas, um paradigma de direito, como uma visão exemplar ou imagem-modelo, representa a forma como a comunidade jurídica concebe e implementa os princípios do Estado de Direito e o sistema de direitos fundamentais, ainda que evidentemente seja política a disputa sobre a correta compreensão paradigmática do sistema jurídico. Considerando os exemplos citados na pergunta reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas e do direito à realização de passeatas em prol da descriminalização da maconha não vejo qualquer incompatibilidade entre a garantia dos direitos dessas minorias e o paradigma de direito vigente em nossa comunidade jurídica. E se a comunidade jurídica também atua como instância de mediação entre as decisões do STF e os julgamentos morais dos diversos grupos que integram a sociedade brasileira, pelo menos no que diz respeito às decisões mencionadas não vejo desserviço por parte do STF. 4. Um dos desdobramentos recentes do protagonismo que vêm assumindo as instituições jurídicas foi a criação do CNJ. Qual a sua opinião sobre o papel que esse órgão tem desempenhado e que deve desempenhar de agora em diante? 4
A criação do Conselho Nacional de Justiça, em 2004, com poderes para aperfeiçoar a administração da justiça e fiscalizar os deveres funcionais dos juízes, foi certamente uma vitória de todos aqueles comprometidos com o controle externo do Poder Judiciário. Desde então foram diversas as ações implementadas no sentido de agilizar a prestação jurisdicional, da mesma forma que muitos foram os processos abertos contra juízes e desembargadores por desvios funcionais. Se em 2005, o Supremo Tribunal Federal não acolheu a ação de inconstitucionalidade proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) contra a criação do CNJ, havia dúvida pelo menos até essa data se manteria a mesma posição em relação à nova ação que lá tramita, igualmente interposta pela AMB, e que questiona a competência disciplinar do CNJ. A AMB defende que essa atuação disciplinar do Conselho seja exclusivamente subsidiária em relação à atuação dos tribunais de justiça dos estados. Em outras palavras, o CNJ só poderia atuar uma vez esgotada a atuação das corregedorias locais. Considerando, por exemplo, que a corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos últimos 11 anos, puniu apenas um juiz com aposentadoria compulsória e que não há, nos últimos três anos, nenhum processo aberto contra magistrados nos estados de Sergipe e Amapá, é fundamental que o Conselho Nacional de Justiça possa se antecipar aos tribunais e instaurar por conta própria processos administrativos disciplinares. De resto, como assinala Joaquim Falcão, como exigir de um advogado que processe um desembargador no mesmo tribunal onde mais tarde terá de recorrer no exercício de sua atividade profissional? 5