CASO CLÍNICO Nº 5 PROGRAMA DE FORMAÇÃO COMPLEMENTAR NO ENSINO DE GRADUAÇÃO FUNDAMENTOS DE TOXICOLOGIA PARA A PRÁTICA CLÍNICA Fonte: Smith SW, Howland MA, Hoffmann RS, Nelson LS. Acetaminophen Overdose with Altered Acetaminophen Pharmacokinetics and Hepatotoxicity Associated with Premature Cessation of Intravenous N-Acetylcisteine Therapy. The Annals of Pharmacotherapy 2008; 42 (9): 1333-1339. IDENTIFICAÇÃO: paciente de 78 anos, sexo masculino, 61 Kg, branco. QUEIXA PRINCIPAL: sonolência e desorientação tempo-espaço. ANTECEDENTES PESSOAIS E PATOLÓGICOS: seu histórico médico inclui doença coronariana, insuficiência renal, doença vascular periférica e ansiedade. O paciente foi submetido a algumas cirurgias: revascularização do miocárdio, nefrectomia (rim esquerdo) e amputação da perna esquerda acima do joelho, que o deixou em uma cadeira de rodas. Não há relatos anteriores de overdose de medicamentos. USO DE MEDICAMENTOS: o paciente faz uso de metoprolol, sertralina e lorazepam aos quais, segundo a família, ele não tem acesso. HISTÓRIA DA MOLÉSTIA ATUAL: durante o período de uma hora, no qual ficou sem supervisão, o paciente ingeriu, em tentativa de suicídio, aproximadamente 96 comprimidos (48g) de paracetamol (500mg) genérico, não revestido e de liberação imediata. Ao retornar, a filha do paciente o encontrou em sua cadeira de rodas no mesmo local onde o havia deixado. Ele estava com um frasco do medicamento nas mãos no qual restavam apenas 4 comprimidos de um total de 100. Imediatamente ela contatou o serviço médico de emergência. EXAME FÍSICO: à admissão hospitalar, o paciente apresentava-se com marcada sonolência e confusão mental, porém sem qualquer distúrbio neurológico, motor, sensorial ou de fala. Não havia evidências de síndromes tóxicas. Sinais vitais: temperatura normal, PA = 131/66mmHg, FC = 68bpm, FR = 14irpm. CONDUTA REALIZADA: após a abordagem inicial, foram realizados vários exames complementares e a determinação da concentração sérica de paracetamol além da pesquisa de fármacos na urina (screening toxicológico). O Centro de Controle de Intoxicações recomendou a administração de carvão ativado, obter a concentração sérica de paracetamol 4 horas pós-ingesta e iniciar o uso de NAC por via intravenosa por 21 horas ou até que a concentração sérica do fármaco se torne indetectável e os níveis de aminotransferases se apresentem dentro dos valores referenciais. Como o paciente estava sonolento e confuso, o médico optou por não administrar carvão ativado. Nova amostra para determinação da concentração sérica de paracetamol foi colhida com 06h25min. pós-ingesta. A terapia IV com NAC foi iniciada aproximadamente 5 horas após a ingestão, completando-se um ciclo de 21 horas, da seguinte forma: dose inicial de 150mg/Kg durante 1 hora, seguida de infusões de manutenção de 12,5mg/Kg/hora - por 4 horas e, a seguir 6,25mg/Kg/hora durante 16 horas. Ao término da infusão de NAC, foram reavaliadas as provas de função hepática e a concentração de paracetamol. Em função dos resultados dos exames complementares e das condições clínicas do paciente, foi suspenso o uso de NAC. EVOLUÇÃO: após a suspensão da administração do antídoto, observou-se a elevação da concentração sérica de paracetamol, atingindo valor o máximo com cerca de 48 horas de história. Descartou-se a possibilidade de uma segunda ingestão do medicamento porque o paciente foi mantido sob supervisão direta, tendo ingerido apenas 250 ml de líquido aproximadamente 30 horas depois de sua admissão
hospitalar (quando a concentração de paracetamol já estava em elevação). Nesse período, os medicamentos prescritos incluíam: furosemida 20 mg/dia, gabapentina 100 mg duas vezes/dia para dor, metoprolol 25 mg duas vezes/dia, sertralina 50 mg/dia, multivitaminas, lorazepam 1 mg duas vezes diariamente, inalação com salbutamol, conforme necessário, e heparina subcutânea 5000 unidades diárias. Sinvastatina tinha sido retirada. Observou-se elevação significativa das transaminases (AST e ALT), lactato, fósforo e creatinina, como mostra a Figura 1. Os níveis máximos dos marcadores bioqímicos (AST=4.350 U/L; ALT=5.621 U/L; TP=51,4 seg.; INR=6,6; creatinina=4,2mg/dl; e amônia=97µmol/l em relação à concentração sérica de paracetamol e do tempo pós-ingesta são mostrados na Figura 2. A contagem de leucócitos totais manteve-se sempre em valores normais. Após um intervalo de quase 24 horas, a administração IV de NAC foi reiniciada e continuada, enquanto as provas de função hepática (transaminases, coagulopatia) e de função renal se normalizaram gradualmente. O paciente recebeu alta no 12º dia com os valores dos exames laboratoriais dentro de seus intervalos de referência. As amostras de soro do paciente foram reanalisados e as concentrações de paracetamol foram confirmadas. Utilizando-se análise de regressão em Programa Excel, a meia-vida aparente do paracetamol foi calculada como 7,9 horas após o primeiro pico, e 10,2 horas após o segundo (Figura 2). DISCUTIR: O mecanismo de toxicidade do fármaco ingerido e a correlação com as alterações laboratoriais apresentadas pelo paciente. Como funciona a N-acetilcisteína (NAC) e quando deve ser administrada. Que fatores podem estar associados ao aparecimento do segundo pico de concentração sérica do paracetamol e contribuído para o desenvolvimento de hepatotoxicidade. A utilidade do Nomograma de Rumacck-Matthew para estimar o risco de toxicidade hepática. REFERÊNCIAS: - ANDRADE FILHO, Adebal; CAMPOLINA, Délio; DIAS, Mariana Borges. Toxicologia na Prática Clínica. Belo Horizonte: Folium, 2001. - MICROMEDEX Healthcare series - acesso online http://www.periodicos.capes.gov.br (através da UEL). - NELSON, Lewis S. et al. Goldfrank s Toxicologic Emergencies. New York: McGraw-Hill, 2011 (disponível para consulta no CIT). - Artigos científicos disponíveis online (mediante busca em bases de dados científicas).
ADMISSÃO 06h25 min. pós-ingesta RESULTADO DOS EXAMES LABORATORIAIS 21h de tratamento com NAC 48 horas pós-ingesta Valores máximos (ver figura 2) VR Urina I na admissão Creatinina 3,4 3,6 3,2 3,8 4,2 0,8 1,3 mg/dl Parâmetros VR AST (TGO) 8 12 10 395 4.350 15 37 U/L Cor amarela amarela ALT (TGP) 22 25 24 453 5.621 30 65 U/L Densidade 1020 1015 1030 Bilirrubina total 0,60 0,70 0,90 4,28 5,62 0,20 a 1,00 mg/dl Aspecto turvo Límpido Lig. turvo Lactato -- -- -- 43,2 -- 0,4 2,0 mmol/l ph 5,0 5,0 7,0 Fósforo -- -- -- 6,5 -- 2,5 4,9 mg/dl Proteínas + ausente Amônia -- -- -- -- 97 11 32 µmol/l Hemoglobina ++ ausente TP (TAP) 13,5 seg. 13 seg. 15 seg. 19,9 seg. 51,4 seg. 13 segundos Nitrito negativo negativo 70 100 % INR 0,9 0,9 1,13 1,52 6,6 0,8 1,2 Cél. epiteliais 5.000 até 10.000 Leucócitos totais 6.400 6.600 6.500 6.300 6.480 4.000 10.000/µL Leucócitos/mL 1.000.000 até 7.000 Paracetamol Screening (urina) 264 µg/ml (02h25min pós- ingesta) Positivo apenas para BZD 281 µg/ml 116 µg/ml 228 µg/ml -- -- Hemácias/mL 350.000 até 5.000 -- -- -- -- -- Bactérias +++ ausente BZD = Benzodiazepínicos
Fig 1- Concentrações séricas de Paracetamol, níveis de amonitransferases e uso intravenoso de NAC (N-Acetilcisteína). ALT = alanina aminotransferase; AST = aspartato aminotransferase; IV NAC = N-Acetilcisteína intravenoso.
Fig. 2 Concentrações máximas dos marcadores bioquímicos creatinina, INR (International Normalized Ratio) e amônia, em relação às concentrações de paracetamol; t 1/2 indica os tempos de meia-vida aparente calculada