KORNIS, Mônica Almeida. Televisão, história e sociedade: trajetórias de pesquisa. Rio de Janeiro: CPDOC, 2007. [7]f. Trabalho apresentado no I Encontro Nacional Obitel - a pesquisa da ficção televisiva no Brasil, organizado pelo Núcleo de Pesquisa de telenovela da ECA-USP e o programa Globo Universidade, na cidade de São Paulo, entre os dias 26 e 28 de nov. de 2007. Televisão, história e sociedade: trajetórias de pesquisa Mônica Almeida Kornis (CPDOC/FGV) Meu trabalho com ficção televisiva nasceu da confluência de algumas indagações em torno das relações entre narrativas audiovisuais e representações da história e da sociedade. Minha formação em Ciências Sociais associada ao trabalho de pesquisa que venho desenvolvendo no CPDOC/FGV há décadas na área de história contemporânea do Brasil certamente se constituem como base de minha reflexão sobre o campo do audiovisual, em particular no exame das relações entre a linguagem do filme e/ou programa de televisão e seu contexto de produção e recepção. Ciente dos desafios impostos aos trabalhos de caráter interdisciplinar, em particular pelo reconhecimento da necessidade em analisar a dimensão estética das narrativas históricas tanto no cinema quanto na televisão, procurei discutir questões de ordem teóricometodológica referentes aos estudos entre cinema e história em artigo produzido no início dos anos 1990 intitulado História e cinema: um debate metodológico 1. Ao reconhecimento da importância do cinema na conformação de um imaginário coletivo, nos modos de pensar e agir, nos valores e nos comportamentos do homem do século XX se somava a constatação de sua força enquanto elemento de construção de uma memória sobre o passado. As matérias veiculadas pela imprensa por ocasião da exibição em 1993 pela Rede Globo da minissérie Agosto me instigaram a escrever um artigo sobre questões ligadas à representação da história na televisão 2, no qual procurava examinar como um produto como aquela minissérie, gerada por uma poderosa indústria do entretenimento, recriava uma das conjunturas históricas mais marcantes e trágicas da Paper apresentado no I Encontro Nacional Obitel a pesquisa da ficção televisiva no Brasil, organizado pelo Núcleo de Pesquisa de Telenovela da ECA-USP e o Programa Globo Universidade, na cidade de São Paulo, entre os dias 26 e 28 de novembro de 2007. 1 In Estudos Históricos, n. 10, 1992. 2 Agosto e agostos: a história na mídia in GOMES, Angela de Castro (org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil CPDOC/FGV www.cpdoc.fgv.br 1
história do país, transmitindo com o olhar do presente um certo conhecimento sobre aquele período. A construção narrativa da minissérie segundo os parâmetros do filme noir gerava implicações na própria configuração do passado recente ali representado, o que confirmava a importância dos estudos sobre cinema para a análise da presença da história na mídia. A opção pelo doutoramento na Escola de Comunicação e Artes da USP sob a orientação do Prof. Dr. Ismail Xavier teve exatamente por objetivo aprofundar meus conhecimentos sobre teoria do cinema e narrativas audiovisuais, o que significava ampliar meus instrumentos de análise em torno das relações entre cinema/televisão e história. A busca por uma interlocução mais decisiva com o campo dos estudos cinematográficos e audiovisuais - onde também se discutia a relação entre história e imagem foi certamente frutífera para o desenvolvimento de minhas questões. Em que medida era possível trabalhar com o cinema e a televisão enquanto documento histórico e enquanto registro de uma dada realidade? Como decifrá-los? Perguntas como essas se somavam à necessidade de refletir sobre temas contemporâneos através de meios igualmente contemporâneos consumidos por mais de 50 anos por uma crescente parcela da população como era o caso da televisão. Por outro lado, entender a história de nosso próprio tempo era premente, dentro dessa tendência que se consolidou ao longo das últimas décadas na chamada história do tempo presente, quando ao historiador se tornara legítimo trabalhar com objetos que lhe são contemporâneos. Além disso, a presença da história no mundo de hoje é um dado marcante, em alguns casos rentável, e particularmente a televisão firmou-se como um meio de narração de nosso tempo, não só no telejornalismo mas também na teleficção e nos programas de viés documental. A trajetória da Rede Globo nesse processo pareceu-me extremamente rica pelo entendimento da própria produção ficcional da emissora desde 1970 enquanto formuladora de um discurso sobre a nação, o que a transformava em poderosa agente de construção de uma identidade nacional. A língua, a paisagem, os hábitos e costumes, os problemas e os dilemas contemporâneos além de aspectos da própria história do país são aspectos fundamentais nesse processo de construção de uma comunidade imaginada. Examinar dentro de que parâmetros esse discurso é elaborado parecia-me um importante desafio, em particular no processo de construção de uma história recente do país a partir de 1986, quatro anos depois de iniciada a programação de minisséries na Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil CPDOC/FGV www.cpdoc.fgv.br 2
emissora. Minha tese de doutorado 3 teve assim por objetivo analisar como a história brasileira da segunda metade do século XX foi recuperada pelas ficções seriadas televisivas dentro do formato das minisséries que integravam as chamadas Séries Brasileiras da Rede Globo, produzidas numa conjuntura de redemocratização do país inaugurada em 1985 com vistas à restauração da ordem democrática, após 21 anos de regime militar. As minisséries, ao criarem uma memória da história nacional, elegeram momentos específicos o final do governo Vargas, a era JK, o período do regime militar para a abordagem de temas que se ajustavam às demandas da conjuntura em que elas foram produzidas e exibidas. A estratégia naturalista típica às novelas e minisséries se fez pela incorporação da linguagem do cinema industrial, em particular pela adequação ao formato do melodrama, que por sua vez estruturava-se nos princípios do teatro popular pós- Revolução Francesa e do folhetim do século XIX. Foi esse o modelo no qual os meios audiovisuais construíram seus personagens, seus estados morais e emocionais, suas intenções, suas razões, etc... inseridos dentro dos princípios do drama, partindo da clássica unidade tripla a marcar sua estrutura: abertura, desenvolvimento e desenlace. Tomando assim como pressuposto que a matriz melodramática estrutura a narrativa ficcional tanto do cinema industrial quanto dos seriados de televisão, a tese procurou analisar detidamente as minisséries Anos Dourados (1986) 4 e Anos Rebeldes (1992) 5 articulando o contexto de suas produções referidas à história recente e sua própria narrativa interna pensada dentro daqueles parâmetros, na tentativa de identificar como era operada a reconstrução histórica no formato do gênero. Em outras palavras, nossa indagação dirigia-se à busca dos significados e dos limites de uma história reconstruída no campo da moralidade, baseada na dicotomia entre o bem e o mal pedagogicamente bem definidos, sujeita assim a uma forte polarização entre seus personagens e da própria história na ficção. Por outro lado, se pensarmos que é no interior de uma estratégia alegórica que se organiza a construção da história na 3 Uma história do Brasil recente nas minisséries da Rede Globo, tese de doutoramento defendida em março de 2001. 4 Escrevi posteriormente o texto Ficção televisiva e identidade nacional: Anos Dourados e a retomada da democracia In ABREU, Alzira A. de; LATTMAN-WELTMAN, Fernando e KORNIS, Mônica Almeida. Mídia e política no Brasil: jornalismo e ficção. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2003. 5 Um resumo de minha análise desta minissérie encontra-se em Anos Rebeldes e a construção televisiva da história IN 40 anos do golpe de 1964: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro, 7 letras, 2004. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil CPDOC/FGV www.cpdoc.fgv.br 3
minissérie fala-se do passado para se falar do presente, é possível especular mais amplamente sobre os termos em que as minisséries constróem uma identidade de nação. Concebidas para a televisão e realizadas por um mesmo autor, Gilberto Braga, consagrado teledramaturgo da emissora, as duas minisséries compõem um verdadeiro painel da história recente brasileira de mais de duas décadas. Pautadas por dramas de família, ambas perseguem um mesmo estilo de reconstrução histórica, com minuciosa descrição dos costumes e do comportamento de uma época, em ambos os casos representando a trajetória de uma geração entre os anos de 1956 e 1979, dentro de uma mesma matriz melodramática, na qual a história se molda a partir de soluções já codificadas. No primeiro caso, opera-se uma alegoria de um momento histórico que se colocava como novo porque democrático, ao contrapor na narrativa uma sociedade conservadora, patriarcal e hipócrita a uma outra, que emerge nova, racional e autêntica. Hipocrisia x autenticidade é o binômio que organiza a narrativa de Anos Dourados, além de ser no interior desse movimento que os personagens e as referências históricas na ficção são revelados. Já em Anos Rebeldes, a polaridade da narrativa ficcional entre individualismo/defesa do status quo e engajamento/radicalização política se expressa tanto nos dois personagens centrais da trama, quanto na organização da própria história na ficção. Não há ingenuidade no conflito que se opera na minissérie, e a situação final de impasse instaurada na construção ficcional aponta para dilemas vividos na conjuntura política iniciada nos anos 1990. A partir do painel traçado em minha tese sobre as minisséries da Rede Globo voltadas para a história brasileira dos últimos 50 anos e produzidas entre 1986 e 1998 6, decidi, posteriormente à conclusão do doutoramento, analisar mais detidamente uma delas, Decadência (1995) 7, de Dias Gomes. Ao tratar a história de uma família tradicional brasileira cujo processo de decadência financeira e moral correspondia à crise ética e política do país no mesmo período, a narrativa ficcional abarcava o período entre 1984 (morte de Tancredo Neves) e 1992 (impeachment do presidente da 6 Uma memória da história nacional recente: as minisséries da Rede Globo In Acervo: revista do Arquivo Nacional, v. 16, n. 1, jan./jun. 2003. Uma outra versão deste texto encontra-se disponível em inglês ( The representation of recent brazilian history in the tv serial fiction of Rede Globo ), e foi apresentado na XIXth IAMHIST Conference (The International Association for Media and History) em Leipzig, Alemanha, em julho de 2001. 7 A Rede Globo e a construção da história política brasileira: o processo de retomada democrática em Decadência IN ABREU, Alzira A. de (org.). A democratização no Brasil: atores e contexto. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2006. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil CPDOC/FGV www.cpdoc.fgv.br 4
República Fernando Collor), com breve recuo para o ano de 1970. A construção de uma verossimilhança foi beneficiada nesse caso por um conjunto de efeitos eletrônicos de inserção de alguns personagens em fatos políticos reais, além da sintonia com eventos ocorridos ao longo desse período. Por outro lado, a correspondência estabelecida entre ficção e a história na ficção transformava metaforicamente o drama de uma família no retrato de uma nação em processo de degeneração, em meio à ascensão de um líder evangélico, que igualmente correspondia a um momento de proliferação de seitas religiosas no país. Em resumo, o trabalho com as minisséries televisivas da Rede Globo voltadas para a história recente brasileira demonstrou como a história é mais que um pano de fundo na diegese. Isso porque ela não só contextualiza a ação, como também organiza as situações os próprios personagens, ao colocá-los identificados com comportamentos, valores e posições políticas no interior de uma estrutura narrativa codificada nos moldes do melodrama, além de corresponder ao momento da própria produção ficcional. Nesses termos, nossa investigação se direcionou para uma análise de como o gênero organiza a história e dessa forma como as minisséries conferem um diagnóstico da nação, cujo acento reside na moralidade, universo privilegiado pelo melodrama. Essa discussão me levou a pensar na importância em escrever sobre a relação entre a ficção seriada televisiva da Rede Globo e o processo ali contido de construção de uma identidade nacional, o que nos remete às mudanças advindas em 1970, quando da valorização pela emissora de uma perspectiva realista na produção de telenovelas 8. Menos direcionado para a análise de uma ficção seriada individualmente, esse trabalho procurou examinar sobre os parâmetros daquela produção televisiva nos seus mais variados formatos e padrões estéticos, durante quase 40 anos de representação da sociedade e da história nacional. Mais recentemente, em função de minha inserção no projeto intitulado Direitos e Cidadania integrado por pesquisadores do CPDOC, da UFRJ e da UFF, sob a chancela do PRONEX/CNPq, resolvi continuar a trabalhar com ficção seriada televisiva atenta à singularidade apresentada por alguns novos produtos televisivos realizados por produtoras independentes e exibidos pela Rede Globo, numa conjuntura nacional de 8 Ficção televisiva e identidade nacional: o caso da Rede Globo IN CAPELATO, Maria Helena; MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos e SALIBA, Elias Thomé (orgs.). História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo, Alameda Casa Editorial, 2007. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil CPDOC/FGV www.cpdoc.fgv.br 5
valorização de projetos de inclusão social. Uma nova temática era introduzida pela produção ficcional: conflitos e violência no morro e focos de tensão urbana, além do cotidiano e dos habitantes dos morros cariocas passavam a povoar o universo ficcional da emissora com o seriado Cidade dos Homens, exibido durante quatro anos (2002-2005), em 19 episódios 9. Do ponto de vista estético, essa programação incorporava inovações formais já experimentadas na emissora pelo Núcleo Guel Arraes, associada a profissionais do cinema como Jorge Furtado com experiência na mesma emissora ao longo dos anos 1990 e a integrantes da produtora O2, capitaneada pelo publicitário e cineasta Fernando Meirelles, que se consagrara em 2002 com o filme Cidade de Deus, dirigido também por Kátia Lund. A estratégia realista da produção ficcional da Rede Globo ampliava seu universo, agora com atores não-profissionais e em locações reais na cidade do Rio de Janeiro, preferencialmente nos morros. Voltava-se para o olhar de dois jovens negros, narrando suas aventuras preferencialmente no morro, mas também na orla da cidade do Rio de Janeiro. A narração dessas aventuras que se utilizava de recursos formais pouco comuns na ficção televisiva em geral como o uso da voz over, uma edição de planos curtos e inserção de depoimentos apresentava uma pedagogia de caráter moral que se afirmava no tratamento de questões sociais e culturais, e ainda no desfecho da maior parte dos episódios. Ainda no âmbito do referido projeto, ao longo do ano de 2006, atenta aos programas exibidos na Rede Globo cujo foco era a chamada periferia tratada tanto do ponto de vista ficcional quanto documental, formulei como hipótese de trabalho a existência de uma certa fórmula de representação do universo da favela nos produtos televisivos que lidaram com o tema 10. No caso da ficção, à experiência anterior de Cidade dos Homens, somou-se o seriado Antonia e o quadro Minha periferia, exibido no Fantástico e também produzido pela O2. Numa perspectiva de caráter documental, vale lembrar o programa Central da Periferia e sobretudo a exibição no mesmo Fantástico de Falcão, meninos do tráfico. A valorização de projetos sociais e esportivos consoante com uma política de defesa da cidadania preconizada pelo governo federal se fez presente em Central da Periferia que, alavancado pelo carisma da atriz Regina 9 A série do ano de 2003 foi analisada em Aventuras urbanas em Cidade dos Homens: estratégias narrativas de inclusão social em seriados ficcionais In Estudos Históricos, n. 37, jan./jul. 2006. 10 Cidade dos Homens e Falcão, meninos do tráfico: sobre as representações televisivas da realidade brasileira em tempos de debate sobre direitos e cidadania, artigo a ser publicado no livro Direitos e Cidadania, a ser lançado em dois volumes no primeiro semestre de 2008 pela Editora FGV, organizado por Angela de Castro Gomes. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil CPDOC/FGV www.cpdoc.fgv.br 6
Casé, tomou como foco central o contingente de jovens da periferia, personagens centrais desse conjunto de produções televisivas. Esse segmento também foi o foco de Falcão, assim como Acerola e Laranjinha se firmaram como os jovens bem humorados de Cidade dos Homens. Além dos personagens e das locações não cenográficas, esse conjunto de programas valorizou a presença das vozes da periferia também por parte seus diretores e roteiristas, como foi o caso da direção do rapper MVBill e seu empresário Celso Athayde em Falcão, e do escritor Paulo Lins, autor do livro Cidade de Deus, responsável pelo roteiro de alguns episódios de Cidade dos Homens. Nesse sentido, procurei examinar como o vídeo no formato exibido no Fantástico - e o seriado se estruturam a partir de uma fala veiculada como natural, considerada como uma fala de dentro, por oposição a um discurso externo a essa realidade, que seria menos real. Em linhas gerais, o trabalho que venho desenvolvendo no campo da ficção seriada televisiva da Rede Globo tem como foco central a discussão sobre como essa programação se firma e se reafirma como um elemento de identidade nacional, além de consolidar um diagnóstico e uma interpretação de nação. No interior da própria construção ficcional e de seus esquemas narrativos, procuro examinar como esses produtos podem ser entendidos enquanto documentos e memória da sociedade brasileira contemporânea. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil CPDOC/FGV www.cpdoc.fgv.br 7