Gênero e Espaço-Urbano: Espacialidade e Performance do Corpo

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Gênero nas interseções: classe, etnia e gerações. ST 34 Marcio Jose Ornat UEPG Palavras-chave: Espaço Urbano, Gênero, Performance do corpo. Gênero e Espaço-Urbano: Espacialidade e Performance do Corpo INTRODUÇÃO O Grupo de Estudos Territoriais (GETE-UEPG) tem discutido, desde o ano de dois mil e quatro, a temática geografia e gênero. Dentro desta proposta, dando visibilidade a dimensão espacial da representação cultural dos papéis de homens e mulheres, este trabalho explora a relação existente entre gênero e deslocamentos espaciais intra-urbanos em Ponta Grossa 1, Paraná. As diferenças encontradas, entre homens e mulheres, de acesso ao espaço urbano, demonstram uma assimetria relacional referente à construção cultural do gênero, diferença que delimita distintas performances corporais entre homens e mulheres em relação ao espaço urbano. A CONSTRUÇÃO DOS PAPÉIS DE GÊNERO E A ACESSIBILIDADE AO ESPAÇO URBANO O espaço da cidade é produto social e as ações dos grupos e/ou indivíduos são elementos integrantes do processo de produção e apropriação do espaço. Uma das formas em que esta apropriação se dá é através da interação entre os mais diversos locais no espaço urbano, ocorrendo o acesso aos diversos objetos espaciais através dos deslocamentos. A relação entre as localizações pode ocorrer pelos deslocamentos de produtores e consumidores entre os locais de moradia, produção e consumo. Entretanto, são as pessoas que dão sentido à interação das localizações e ao deslocamento espacial. Cada grupo social possui características particulares de deslocamento. Pode-se afirmar que os grupos sociais de alta renda possuem maiores possibilidades de deslocamento, e os grupos de baixa renda enfrentam mais obstáculos a serem superados. Esta abordagem da renda, embora muito importante, não esgota a explicação dos diferenciais de acessibilidade desenvolvidos por diferentes grupos de sujeitos. Outras explicações são possíveis e reveladoras de características espaciais, como a visibilidade das relações de gênero na análise espacial. As diferentes espacialidades desenvolvidas por homens e mulheres fazem parte da produção do espaço da cidade. Como afirmado por Santos (1987), a localização do homem no espaço é um elemento que influencia na qualidade de sua existência. Esta afirmação remete à idéia de que um

indivíduo poderá transformar sua condição sócio-espacial, dependendo das possibilidades que o espaço oferece. Cada fragmento do espaço urbano, acessado de forma diferencial por cada indivíduo ou grupo social, faz parte de um todo urbano complexo em movimento. Salienta-se neste jogo uma dialética de escalas entre cada fragmento e a cidade. Como analisado por Castro (2000), quando mudamos a escala de análise, novos conteúdos e dimensões são descortinados. Desta forma, a escolha da dimensão da escala de análise do urbano é de vital importância. Adotando o conceito de segregação proposto por O Neill (1983) e Corrêa (2003), os fragmentos Dom Bosco e Vila Nova caracterizam-se como locais homogêneos internamente e heterogêneos externamente. No entanto, quando se adota uma escala que dá visibilidade aos detalhes das relações cotidianas, tornam-se visíveis outros elementos e fenômenos antes desconsiderados. Assim, embora o Conjunto Habitacional Dom Bosco e o Loteamento Vila Nova se tratem de espaços de moradia de uma população de baixa renda com um perfil sócio-econômico semelhante, o conteúdo social pode ser extremamente diferente um do outro quando mudada a escala de análise. Mergulhando em cada fragmento segregado, percebe-se a existência de uma teia de relações cotidianas que se analisadas a partir da escala da cidade não são visíveis. Esta relação enredada no local de moradia constituirá uma parcela conhecida do espaço urbano, um local de reconhecimento. Como salientado por Mayol (1996), esta vivência cotidiana se dá num processo dialético de apropriação espacial, onde o espaço público, da rua, transforma-se em local apropriado, uma ampliação da residência implicando o controle do espaço. Nos códigos de comportamento e controle social que instituem os espaços locais, estão presentes padrões de relações de gênero que são compreendidas de forma tácita pelos sujeitos sociais. Segundo McDowell (1999), Rose (1993) e Silva (2005) gênero é um grupo de idéias que uma cultura especifica constrói em relação ao que é ser homem e ao que é ser mulher. Em outras palavras, são os papéis pré-definidos socialmente para os sujeitos diferenciados espaço/temporalmente, ditando normas a serem desempenhadas por corpos masculinos e femininos. Este processo é instituído paulatinamente nas famílias, na escola, na vizinhança, enfim, nos espaços de sociabilidade. Esta construção é não-linear e dinâmica, sendo constantemente tensionada, resignificada, pois é estruturada em relações de antagonismos e complementaridades. Devido às especificidades histórico-espaciais destas construções, os papéis fundados nunca são homogêneos, não havendo uma única identidade feminina ou masculina. A construção identitária se dá numa teia de relações inseridas em uma rede multidimensional de sociabilidades, que possui suas próprias espacialidades. Assim, a diversidade de papéis desenvolvidos e as espacialidades específicas correspondentes, tornam-se simultaneamente produto, condição e transformação das relações sociais, possibilitando o sujeito a modificar sua posição na teia sócio-

espacial. Esta noção de movimento e transformação das relações sócio-espaciais tem sido desenvolvida por Rose (1993) através do conceito do espaço paradoxal. Para a autora, a posição do indivíduo não é única, é multidimensional e plurilocalizada. Um mesmo sujeito pode mudar sua posição em determinada estrutura de relação de forças, dependendo do elemento que se leve em consideração como, renda, gênero, cor da pele, etc. É justamente este jogo de tensões múltiplas que pode desestabilizar o poder instituído e promover mudanças importantes na estrutura de relações sócio-espaciais. As primeiras aproximações com o referencial empírico e com uma das dimensões do espaço paradoxal apontaram que os respectivos conteúdos sociais estabeleciam uma relação equivalente entre seus pares e o restante do espaço urbano. Inicialmente, nota-se que Dom Bosco e Vila Nova possuem níveis de deslocamento aproximados, existindo no Dom Bosco 6.81 deslocamentos semanais por residência e Vila Nova com 6.06 deslocamentos semanais por residência, mesmo Dom Bosco estando a aproximadamente 6.000 m e Vila Nova a 1.000 m do centro da cidade. Em linhas gerais, Dom Bosco e Vila Nova possuem os mesmos níveis de deslocamento. Porém, quando mudada a escala de análise, a paridade é dissolvida pela construção do gênero. A relação de mulheres e homens com o espaço urbano se processa de forma diferencial, um conjunto de características assimétricas: motivos de deslocamento, destino e intensidade. Os motivos de deslocamento para as mulheres relacionam-se em 48 % no Dom Bosco e 70.7 % na Vila Nova a atividades ligadas a reprodução familiar, como fazer compras, pagar contas, levar filhos a escola e ao médico. Em relação aos homens, em 82.1 % no Dom Bosco e 72.6 % na Vila Nova os deslocamentos relacionam-se à reprodução econômica do lar, o trabalho. A verificação da intensidade de deslocamento no espaço urbano demonstra que os homens possuem maior intensidade em relação às mulheres de ambos os referenciais empíricos. A média dos deslocamentos dos homens do Dom Bosco é de 3.5 deslocamentos semanais por residência, enquanto as mulheres possuem uma média de 3.2. Na Vila Nova esta diferença é de 3.6 para os homens, para 2.5 deslocamentos semanais por residência das mulheres. Os destinos que se buscam com os deslocamentos, além de se relacionar com a questão do acesso ao que é produzido no espaço urbano, estão ligados à construção cultural dos papéis de gênero nos respectivos grupos sociais. Mulheres e homens possuem destinos específicos de deslocamento referenciados nestes papéis. Estes são construídos cotidianamente, através do relacionamento que se estabelecem entre os indivíduos através do desenvolvimento de sua espacialidade. Hegemonicamente, o papel atribuído culturalmente aos homens e relatado pelas entrevistadas é o de provedor da família, tanto no Dom Bosco como na Vila Nova. O mesmo fato ocorre com o papel atribuído às mulheres, tendo por função a manutenção da família e a organização da casa.

Cada grupo constrói culturalmente os papéis sociais a serem desenvolvidos por homens e mulheres através de sua espacialidade. As ações não podem ser desenvolvidas sem um corpo e o corpo sem o espaço. Cada papel relaciona-se a um tipo especifico de relação, construindo diversos arranjos espaciais de deslocamento. A diferenciação dos padrões de deslocamento desenvolvidos pelos diversos grupos sociais influencia diretamente nas suas condições sócio-espaciais. Assim, a diferença dos deslocamentos femininos e masculinos não estão diretamente associados aos níveis de renda, mas aos papéis de gênero. Homens e mulheres possuem diferentes relações com o espaço urbano, construídas por intermédio das relações sociais, atravessadas por construções de gênero. Ao invés de uma construção única destes papéis, configuram-se como plurais e multilocalizados. Cada grupo social concebe de forma especifica o que se é esperado do comportamento do corpo masculino ou feminino, instituindo um conjunto de normas tácitas para os sujeitos. O espaço, na relação entre os parceiros do jogo social, pode ser um elemento de subversão na constituição do espaço paradoxal. DISTINTAS CONSTRUÇÕES DE GÊNERO, DISTINTAS PERFORMANCES CORPORAIS Ao discutir as diferenças existentes entre os gêneros, Young (2003) concentra-se em marcar as posições entre o que é biológico e o que é adquirido. A autora sustenta sua análise em um diálogo com Erwin Straus. Segundo Straus, em sua Psicologia Fenomenológica, os corpos teriam formas de comportamento distintas, referenciadas no sexo. As diferenças observadas em indivíduos com idade não avançada seriam manifestações de características não adquiridas, onde as diferenças encontradas no movimento dos corpos teriam bases biológicas. Young em posição contrária, afirma que mesmo havendo alguma essência feminina ou masculina, esta se realiza sobre um suporte corporal de costumes e representações culturais. Os comportamentos estariam referenciados na representação cultural, daquilo que se espera da corporeidade masculina ou feminina, em suma, na construção do gênero. A afirmação da existência de uma essência masculina ou feminina nada mais é que o próprio jogo de estruturas, uma delimitação que condiciona a própria condição de existência do corpo masculino ou feminino, em um grupo particular. Mesmo assumindo o fato da existência de um estilo particular de comportamento típico do homem ou da mulher, este se refere às estruturas particulares e às condições de existência do corpo masculino ou feminino no mundo. A questão de diferenciação entre os gêneros enquadra-se, como descrito por Claval (2005), nos limites de cada contexto histórico-espacial, pois as condições existentes no espaço-tempo vão influenciar as decisões dos atores no jogo social, tratando-se de uma racionalidade constrangida contida nestas relações. As limitações de corporeidade estão para além de característica biológicas. O gênero, pelo fato de ser uma categoria relacional, como salientado por Scott (1990), indica a existência de

construções sociais baseadas nos relacionamentos entre homens e mulheres, possuindo como um de seus corolários a reprodução e manutenção das diferenças. Uma propalada igualdade formal cristalizando-se em desigualdade substantiva. A construção do gênero delimita as possibilidades de melhoria nas condições de vida das mulheres em relação aos homens, desigualdades construídas não hermeticamente, mas atravessada pelas relações da cotidianidade. As diferenças relacionais entre homens e mulheres ao espaço urbano evidenciam uma desigualdade em relação à vivência do espaço. Homens deslocam-se a maiores distâncias e a maiores intensidades, tanto em relação a um quanto a outro fragmento do espaço urbano de Ponta Grossa. As mulheres consomem um espaço próximo ao local de moradia, relacionado a sua contigüidade. Esta relação de proximidade influencia /é influenciada pela instituição de normas de conduta que re/produzam as mesmas relações diferenciadas entre homens e mulheres com o espaço urbano. Compreender e adequar-se à legislação tácita instituída pelo grupo social, denominada de conveniência por Mayol (1996), é fundamental para a obtenção do reconhecimento do indivíduo perante o grupo. Pelas características peculiares de formação de um e outro fragmento, o homem é percebido como o guardião da moral e dos bons costumes. Na Vila Nova 100% das entrevistadas declararam ter a sua mobilidade controlada explicitamente ou tacitamente pelos seus maridos, diferentemente do Dom Bosco, possuindo um percentual de 55.6%. Complementarmente, as diferenças dos níveis de deslocamento e de controle da mobilidade são maximizadas pela existência do controle do comportamento do corpo. Em respectivamente 60% das mulheres entrevistadas na Vila Nova e 66.7 % no Dom Bosco, declararam ter o comportamento de seus corpos controlados moralmente por seus maridos. A dominação masculina ocorre através da censura imposta pelo esposo em relação às roupas que salientem o corpo da companheira. Segundo Cançado (2001) a representação social do indivíduo grupo social em relação a vivência cotidiana é atravessada pelos códigos de honra, dependendo do compartilhamento de valores morais pré-estabelecidos, sustentado-se a honra masculina na sexualidade feminina. Às condutas do corpo somam-se os motivos de deslocamento referenciados nos papéis de gênero, criando uma performance do corpo da mulher em ambos os fragmentos. Esta norma de comportamento do corpo configura-se como uma relação antagônica, contudo complementar, pois as mulheres reafirmam a dominação masculina através da educação que dão a seus filhos cotidianamente, ou mesmo quando pelo exemplo dado na realização das atividades da casa. As falas das entrevistadas salientando de forma nítida a polarização dos papéis de homens e mulheres demonstram o controle do corpo: ao homem é atribuída apenas a obrigação do trabalhar fora, e à mulher o compromisso com as questões de dentro do lar.

Como a conduta individual não é pré-discursiva, as ações dos indivíduos devem se referenciar no conjunto de normas inscritas em cada localidade para a conduta dos corpos. Este axioma demonstra o resultado dialético da relação entre os indivíduos. Além de se reproduzem através da conveniência, também são passadas de geração em geração através da educação que é dada às crianças. A vivência possibilita a re/produção de um modelo de civilidade em relação à diferenciação simbólica do que é ser homem e do que é ser mulher, dentro de nossa sociedade ocidental-cristã. Como lembrado por Young (2003), as diferenças de gênero são construídas culturalmente, não se constituindo como heranças biológicas, mas reproduções culturais dialéticas. Na fase infantil, através dos jogos e brincadeiras, e na fase juvenil, através dos relacionamentos ocorridos em espaços masculinos e femininos, que a produção-reprodução-ressignificação simbólica dos papéis de ambos ocorre. É em relação a este corpo que se formarão expectativas comportamentais aos parceiros do jogo social. A partir do estreito vínculo criado entre os usuários do local de moradia, que este processo de formulação da conveniência ocorre: a construção de uma expectativa do comportamento do corpo, e qual o resultado pela aceitação a estas regras. Para poder ser usuário do reconhecimento grupal, basta respeitar suas regras de conduta. CONSIDERAÇÕES FINAIS Homens e mulheres desenvolvem espacialidades urbanas diferenciadas. Admite-se esta diferenciação relacional como uma construção cultural, concebida internamente aos grupos sociais, onde os deslocamentos de pessoas no urbano são atravessados pelas construções de gênero. A desigualdade substantiva existente entre homens e mulheres é fomentada pela instituição diferencial dos papéis de gênero. Esta assimetria nem sempre é imposta por um dos parceiros, mas pactuada. O respeito aos papéis concede ao usuário uma plêiade de benefícios instituídos aos integrantes do pacto. A regra, e o resultado ao respeito, produzem uma fronteira de conduta ao corpo, uma fronteira fluida e provisória, na relação diferencial com uma diversidade de parceiros, redes de sociabilidade e performances de gênero. Em suas espacialidades, transportando e sendo transportados por múltiplos significados, vivem os corpos o paradoxo da manutenção e da transformação de suas condições. Buscando posicionar-se no mundo constituem sua imagem, aberta constantemente ao novo. REFERÊNCIAS

CASTRO, I. E. de. O Problema da Escala. In CASTRO, I. E. de; GOMES, P. C. da C.; CORRÊA, R. L (Orgs.). Geografias: Conceitos e Temas. 2ª edição, Rio de Janeiro, :Bertrand Brasil, 2000. p. 117-140. CANÇADO, A. Paixão e honra: criminalidade passional em Ponta Grossa na década de 30. In: Espaço e Cultura: Ponta Grossa e Campos Gerais. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2001. p. 193-206. CLAVAL, P. Lieux de memoire. In: Revista Espaço e Cultura. Rio de Janeiro: UERJ, NEPEC, jan/dez 2005. n.19-20. p. 126-153. CORRÊA.R.L. O Espaço Urbano. 4ª Edição, São Paulo, Editora Ática, 2003. 94 p. MAYOL, P. O Bairro. In CERTEAU, Michel de, A Invenção do Cotidiano: 2. Morar, Cozinhar.- Petrópolis, Rj: Vozes, 1996. p. 37-69. MCDOWELL, L. Gender, Identity and Place. Understanding Feminist Geographies. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999. 283 p. O NEILL, M. M. Segregação Residencial: um estudo de caso. Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado. UFRJ. 1983. p. 26-55. ROSE, G.. Feminism & Geography. The limits of Geographical Knowledge. Cambridge: Polity Press, 1993. 205 p. SANTOS, M. O Espaço do Cidadão. São Paulo, 1987. p. 81-94. SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil na análise histórica. In: Educação e Realidade, Porto Alegre, Julho a Dezembro, 1990. p. 5-22. SILVA, J. M. Análise do espaço sob a perspectiva do gênero: Um desafio para a Geografia Cultural brasileira. In: CORRÊA, R.L; ROSENDAHL, Z (org) Geografia: Temas Sobre Cultura e Espaço. Rio de Janeiro: UERJ, 2005. p. 173-189. YOUNG, Í. M.. Throwing Like a Girl: A Phenomenology of Feminine Body Comportment, Mobility, and Spatiality. In: Identities Race, Class, Gender and Nationality. Oxford. Blackwell Publishing, 2003. 12 p. 1 Trabalho desenvolvido através dos esforços do Grupo de Estudos Territoriais (GETE-UEPG), vinculado a linha de pesquisa Espaço, cultura e poder na configuração das relações de gênero na periferia pobre de Ponta Grossa PR, sob coordenação da Drª Joseli Maria Silva; realizado no período de 08/2004 a 07/2005.