1-1- Princípios da Legalidade e da Anterioridade.



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Transcrição:

1- APLICAÇÃO DA LEI PENAL 1-1- Princípios da Legalidade e da Anterioridade. No dia 26 de agosto de 1789, fase inicial da Revolução Francesa, foi aprovada pela Assembléia Nacional Constituinte a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Seus princípios iluministas tinham como base a liberdade, a igualdade perante a lei, a defesa inalienável à propriedade privada e o direito de resistência à opressão. O texto logo se transformou em um verdadeiro clássico para as democracias do mundo contemporâneo: A liberdade consiste em fazer tudo que não perturbe a outrem. Assim, os exercícios dos direitos naturais de cada homem não têm limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o desfrute desse mesmo direito; esses limites não podem ser determinados senão por lei (...). A lei só tem o direito de proibir as ações que prejudiquem a sociedade. Tudo quanto não for impedido por lei não pode ser proibido e ninguém é obrigado a fazer o que a lei não ordena (...). A lei só deve estabelecer as penas estritas e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada. A democratização das sociedades modernas produziu efeitos em nosso ordenamento jurídico, e os princípios acima expostos foram reproduzidos em nosso texto constitucional conforme estabelece o art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição da República Federativa do Brasil: Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal Assim, consagrou-se o chamado Princípio da Legalidade ou da Reserva Legal, que é uma garantia constitucional dos direitos do homem frente ao poder de punir do Estado. O dever de cumprir a lei não atinge somente o indivíduo, mas o próprio Estado. Este só poderá exercer o seu exclusivo direito de punir quando, no momento da prática do crime, existir uma lei em vigor prevendo o fato como crime. Precisava, então, que o legislador, de acordo com a necessidade da prevenção (Princípio da Fragmentariedade), estabelecesse todas as condutas proibidas em nosso ordenamento jurídico (Princípio da Taxatividade). Como ensina Cezar Bittencourt O Direito Penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes, decorrendo daí o seu caráter fragmentário, uma vez que se ocupa somente de uma parte dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica. (BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Volume 1 - Parte Geral, p. 12, 8ª Edição, Saraiva, 2003) A imposição constitucional foi cumprida com o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, chamado Código Penal. Nele está contido um conjunto de normas jurídicas editadas pelo Estado, mediante as quais são proibidas determinadas ações ou omissões, sob ameaça da imposição de uma pena, visando proteger os bens jurídicos fundamentais para a vida em sociedade. Entretanto, não há no Código Penal apenas normas incriminando fatos. Nele há duas partes: a parte geral e a parte especial. Na parte geral estão dispostas as normas que disciplinam a aplicação das normas incriminadoras, enquanto na parte especial estão elencados os comportamentos ilícitos. Com o passar do tempo, outras leis de natureza criminal foram criadas, ora alterando o Código, ora criando novos crimes, e são chamadas de Leis Especiais ou Leis Extravagantes. 1

2- Norma Penal A norma penal pode ser incriminadora ou não-incriminadora. As normas incriminadoras possuem preceito e sanção. No preceito se encontra a descrição da conduta punível e na sanção a cominação da pena. As normas não-incriminadoras, como acima mencionado, não definem condutas como crime, mas trazem regras de interpretação às normas incriminadoras, como o art. 14 do CP, que trata da tentativa, e o art. 18 do CP, que diz respeito ao dolo e a culpa. É bem verdade que normas nãoincriminadoras também aparecem dispostas na parte especial, como aquelas que explicam o conteúdo de uma norma incriminadora (normas explicativas) ou que permitem a prática do fato que, em regra, foi revelado como punível (normas permissivas). Existe também outro tipo de norma penal chamada norma penal em branco. Na verdade, trata-se de uma norma penal incriminadora, mas o seu conteúdo é incompleto. Olhando apenas para o preceito, não há como determinar se a pessoa praticou ou não o crime, como, por exemplo, o art. 269 do CP: Deixar o médico de denunciar à autoridade competente doença cuja notificação é compulsória. Assim, as normas penais em branco são normas de conteúdo incompleto, as quais exigem complementação por outra norma jurídica, a fim de serem aplicadas ao fato concreto. Por serem normas incriminadoras, obrigatoriamente, terão preceito e sanção, mas somente ao seu preceito será necessário um complemento. A norma penal em branco divide-se ainda em norma penal em branco em sentido estrito e norma penal em branco em sentido amplo. A primeira é aquela cujo complemento configura um ato do poder executivo, enquanto a segunda, o complemento é uma lei. 3- Aplicação da Lei Penal no Tempo 3-1- Princípio da Reserva Legal O primeiro título do Código Penal cuida do assunto Aplicação da Lei Penal. O art. 1º do CP não podia deixar de tratar dos princípios constitucionais já mencionados, ou seja, Legalidade e Anterioridade, repetindo o preceito constitucional: Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal. Como desdobramento do Princípio da Legalidade, obviamente, não se pode cogitar criar crimes por analogia ou por medida provisória. Entende-se que normas incriminadoras somente poderiam ser criadas por lei, e lei em sentido estrito, ou melhor, lei ordinária aprovada pelas duas casas legislativas e sancionada pelo Presidente da República. Não há como aceitar, de forma alguma, analogia para criar tipos penais, pois seria flagrante afronta à Lei Maior. Do mesmo modo, é pacífico na doutrina e na jurisprudência a inadmissibilidade quanto a criação de crimes por medida provisória. Mas não teria a medida provisória força de lei? Sim, exatamente por não ser lei em sentido estrito e, conforme dispõe a própria Constituição Federal, não é sequer capaz de versar sobre matéria da importância e responsabilidade como é o Direito Penal. Cabe agora acrescentar que para que alguém seja responsabilizado por um crime não basta a existência de uma lei anterior ao fato, mas também que esta esteja em vigor no momento da prática da conduta descrita da norma, quer dizer, produzindo seus devidos efeitos. Isso somente ocorrerá após transcorrido o período da vacatio legis, que poderá variar de acordo com a vontade do legislador. Portanto, a lei não alcançará aqueles que praticarem os fatos previstos por ela como crimes somente por estar tramitando no Congresso Nacional, ou após a sanção do Presidente da República, ou 2

pela mera publicação em Diário Oficial. É necessário o decurso do período de vacância da lei. Todas as leis têm sua vigência a partir de sua promulgação e publicação, ou após decorrer o prazo de vacância que lhe tenha sido fixado. A Lei de Introdução ao Código Civil estabelece as regras pertinentes à vigência das leis no Brasil. No silêncio quanto à sua vigência, vigorará quarenta e cinco (45) dias após a sua publicação (art. 1º, do Decreto Lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1.942). 3-2- Princípios da Irretroatividade e Extra-atividade Se não há crime sem lei anterior, obviamente a lei não poderá retroagir para alcançar condutas que, antes de sua vigência, eram consideradas lícitas. Assim, não só no Direito Penal, mas nos demais ramos do Direito, aplica-se o Princípio do TEMPUS REGIT ACTUM, traduzido pelo Princípio da Irretroatividade, que proibe a lei de produzir efeitos para fatos praticados antes da sua vigência. Embora a irretroatividade seja a regra, no Direito Penal, quando se trata de lei mais benéfica, cria-se uma exceção, que é a extra-atividade. As hipóteses de extraatividade podem ser a retroatividade ou ultra-atividade. A lei que de qualquer modo for mais benéfica para o autor do delito retroagirá. Não há dúvida que o melhor benefício que o réu pode ter é o da revogação de uma lei que considerava um fato como crime. Essa hipótese chama-se abolitio criminis. Um fato que antes era considerado crime passa a ser lícito, segundo a vontade do legislador. A regra se encontra exposta no art. 2º do CP: Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. E ainda, em seu parágrafo único: A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. Em resumo, a lei que desconsiderar um fato como crime retroagirá, fazendo cessar todos os efeitos da sentença condenatória irrecorrível. Vale ressaltar que o legislador referiu-se apenas aos efeitos penais, como, por exemplo, a obrigação de cumprir integralmente a pena, ter o nome contido no rol de culpados, ser considerado reincidente e com maus antecedentes, entre outros, mas não a exclusão da responsabilidade civil que obriga o autor do delito à reparação dos prejuízos à vítima. Deixar de considerar um fato como ilícito penal não o descaracteriza como ilícito civil. O abolitio criminis não representa a única hipótese de lei mais benéfica. O art. 2º, parágrafo único, refere-se a qualquer modo, ou seja, se a lei nova gera a exclusão de uma qualificadora ou de uma causa de aumento de pena, ou talvez, a própria redução da pena, retroagirá, pois representariam casos de novatio legis in melllius. Acrescente-se ainda que não há qualquer tipo de limitação para que a retroatividade da lei penal se opere. A lei que de qualquer modo favorecer o agente sempre retroagirá, mesmo que contra o agente já exista uma sentença condenatória definitiva ou, como também chamada, com trânsito em julgado. Em suma, temos as seguintes regras quanto à solução de conflitos na aplicação da lei penal no tempo: a) a lei que incrimina fato anteriormente lícito jamais retroagirá e só terá validade para os fatos praticados a partir da data de sua vigência (Princípio da Reserva Legal); b) se a lei posterior deixa de considerar crime, ocorre o abolitio criminis, ou seja, retroagirá, fazendo cessar todos os efeitos decorrentes da aplicação anterior; c) lei posterior mantém a incriminação do fato, mas favorece o agente será aplicada ainda que haja anterior sentença condenatória irrecorrível, tecnicamente 3

chamada de transitada em julgado; d) lei posterior que, mantendo a incriminação do fato, agrava a situação do réu, em nenhuma circunstância retroagirá. 3-3- Lei Intermediária Partindo do raciocínio acima exposto, a doutrina costuma usar a expressão lei intermediária para aquela lei que se situa entre duas outras mais severas. Em relação à anterior, considerar-se-á revogadora, produzindo efeitos retroativos, mas, quando revogada, continuará a produzir efeitos para o futuro (ultra-atividade). A lei posterior pode ser uma lei intermediária, ou seja, aquela que surgiu depois da prática do fato criminoso, mas foi revogada antes de o juiz proferir a sentença condenatória. Se for a mais benigna, deverá ser utilizada. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, p. 62, 6ª edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006.) 3-4- Combinação de Leis Ainda sobre o conflito da aplicação da lei penal no tempo, há divergência na doutrina e na jurisprudência quanto à hipótese do juiz combinar leis para beneficiar o agente. Para um grupo tal medida não é possível, pois a lei é caracterizada por sua abstração e generalidade, isso quer dizer, a lei se aplicará para os casos que se enquadrarem em sua previsão e não somente a um ou outro evento específico, e além disso, alcançará a todos. Não se pode criar uma lei só para um indivíduo. Outro posicionamento sustenta que seria possível a combinação de leis para beneficiar o agente, porque não há vedação constitucional. 3-5- Leis Temporárias e Excepcionais O Código Penal, em seu art. 3º, traz uma regra especial no que tange às chamadas leis temporárias e excepcionais. As lei temporárias são aquelas que têm um tempo certo de vigência, pois o próprio legislador fixa o período de sua existência no mundo jurídico ao dizer a data de sua auto-revogação. A lei excepcional é aquela que tem sua vigência vinculada a uma situação excepcional. Cessada a situação excepcional, a lei deixará de produzir efeitos automaticamente. As leis temporárias ou excepcionais não precisam de outra para que deixem de existir; são auto-revogáveis e, portanto, são ultra-ativas, ou seja, continuarão produzindo efeitos mesmo após a sua revogação. Caso contrário, os crimes praticados às vésperas de sua auto-revogação ficariam impunes. Porém, não se pode esquecer que o fenômeno da ultra-atividade não está circunscrito às leis temporárias e excepcionais, porque também ocorre nos casos de revogação de lei mais benéfica por outra mais severa ( novatio legis in pejus ). Nesse caso, a lei revogada, por ser mais benéfica, continuará sendo aplicada aos fatos praticados durante a sua vigência. 3-6- Norma Penal em Branco Após o estudo do abolitio criminis e das leis temporárias e excepcionais, convém destacar uma discussão da mais alta relevância já enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal. A questão envolve o direito intertemporal no tocante às normas penais em branco: que repercussão teria a revogação de seu complemento? Nossa Suprema Corte consagrou o posicionamento dominante na doutrina ao estabelecer que a revogação do complemento de uma norma penal em branco pode gerar os efeitos da 4

abolitio crimins, mas vai depender da natureza desse complemento, ou seja, se possui um caráter definitivo, sua revogação gerará abolitio criminis, como se a própria norma incriminadora fosse revogada; mas se for caracterizado pela transitoriedade ou excepcionalidade, os efeitos da revogação serão idênticos aos das leis temporárias ou excepcionais, quer dizer, será ultra-ativa. 3-7- Crimes Permanentes e Continuados Há uma súmula no Supremo Tribunal Federal que cuida do conflito da lei penal no tempo em se tratando de crimes permanentes e continuados. Os crimes permanentes são aqueles que sua consumação se prolonga no tempo tendo em vista os verbos contidos no tipo penal como manter, ocultar, ter em depósito, transportar, portar, seqüestrar etc. Enquanto essas situações forem mantidas, pode-se dizer que o crime estará sendo praticado. Assim, no crime de seqüestro (art. 159 do CP), se o sujeito priva alguém de sua liberdade, trancafiando-a em um cativeiro, ele estará cometendo o crime enquanto a vítima não tiver restaurada sua liberdade; no crime de porte ilegal de arma de fogo (art. 14 da Lei 10.826/03), enquanto estiver portando arma sem autorização estará praticando o crime em questão. Se enquanto não cessar a permanência houver alterações na legislação sobre o crime que estiver sendo praticado, a lei aplicada será aquela em vigor no momento do esgotamento do crime, ainda que seja a mais severa. Não se trata de exceção ao princípio da irretroatividade da lei penal, porque a lei mais severa não estaria retroagindo para alcançar fatos praticados antes de sua vigência, pois o crime foi praticado no período que ela estava irradiando seus efeitos. O crime continuado, que não é sinônimo de crime permanente, é uma ficção jurídica criada pelo legislador no art. 71 do Código Penal para efeito de aplicação da pena. Mesmo em se tratando de vários crimes mediante condutas diversas, como foram praticados nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, tratamos como se fosse um único crime, a fim de evitar, pelo critério da soma, uma pena desproporcional à lesão jurídica realizada. Se visto como um só delito, acabaremos caindo nas mesmas regras quanto ao crime permanente no caso de haver alteração na legislação durante a continuidade delitiva, ou seja, a lei aplicada será aquela que estiver em vigor no momento do encerramento da série criminosa. Como dito inicialmente, a solução é dada pela Súmula 711 do STF: A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência. 3-7- Tempo do Crime Quanto ao tempo do crime, em nosso ordenamento jurídico, foi adotada a Teoria da Atividade, que considera praticado o crime no momento da ação ou da omissão ainda que outro tenha sido o momento do resultado (art. 4º do CP). Então, se porventura, o agente, contando com a idade de 17 anos, dispara uma arma de fogo contra a vítima, com intenção de matá-la, e a vítima só vem a falecer meses depois quando o agente já havia completado 18 anos, podemos dizer que será isento de pena em virtude da inimputabilidade por menoridade penal, pois o crime foi praticado, segundo a Teoria da Atividade, no momento dos disparos e não no momento da morte. 5

4- Aplicação da Lei Penal no Espaço 4-1- Lugar do Crime 4-1-1- Teoria da Ubiquidade Quando se quer saber o tempo do crime, desprezamos o momento do resultado (Teoria da Atividade), mas quando se quer saber o lugar do crime, será tão relevante a conduta quanto o resultado, pois o lugar do crime é o lugar de onde foi praticada a ação ou omissão, assim como o lugar de onde foi ou deveria ter se produzido o resultado (Teoria da Ubiqüidade). A regra está prevista no art. 6º do Código Penal: Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado. 4-1-2- Princípio da Territorialidade A razão de o legislador fazer questão de dizer qual seria o lugar do crime relaciona-se com o que fora estabelecido no artigo anterior a respeito do alcance da lei penal brasileira. Segundo art. 5º do Código Penal, aplica-se a lei penal brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional ao crime cometido no território nacional (Princípio da Territorialidade). Se não fosse pelo art. 6º do Código Penal, surgiriam dúvidas, naturalmente, nos casos de crimes à distância, isso quer dizer, quando somente a conduta ou o resultado ocorressem no Brasil. Seria possível considerar o crime como praticado em território nacional e, portanto, sujeito a lei penal brasileira? Aplicando-se a Teoria da Ubiqüidade, não há dificuldade para a solução dessa questão. É importante frisar que o Código Penal ampliou o que se entende sobre território ao inserir no conceito as embarcações e aeronaves brasileiras, públicas, ou particulares a serviço do governo brasileiro, independente de onde pudessem estar no momento do crime, pois são consideradas como extensão do nosso território. Ficam de fora as embarcações particulares mercantes ou de passeio, pois, em território estrangeiro, se aplicará a lei estrangeira e, em alto-mar, ou espaço aéreo correspondente, será aplicada a lei da bandeira que ostentar 4-1-3- Princípio da Extraterritorialidade Assim como o Princípio da Irretroatividade é a regra quanto à aplicação da lei penal no tempo e a Extra-atividade a exceção; o Princípio da Territorialidade é a regra quanto à aplicação da lei penal no espaço e a Extraterritorialidade, a exceção. Logo, a lei brasileira será aplicada aos crimes ocorridos em território nacional, mas em alguns casos alcançará fatos que tenham se desenrolado no exterior, não tocando em nada o nosso território. Trata-se da extraterritorialidade da lei penal brasileira revelado no art. 7º do Código Penal, que tem como fundamento quatro princípios: Princípio da Nacionalidade ou Personalidade, aplicado aos casos em que um brasileiro comete ou sofre um crime no exterior (nacionalidade ativa ou passiva); Princípio da Defesa ou da Proteção ou Real, invocado quando um bem tutelado pelo direito brasileiro é atingido fora do território nacional; Princípio da Justiça Penal Universal ou Cosmopolita que autoriza a aplicação da lei brasileira fora do território nacional por força de tratado internacional; Princípio da Representação, baseado em regras internacionais a respeito de embarcações e aeronaves. 6

Agora que conhecemos os princípios que serviram de base para a criação do art. 7º do Código Penal, podemos associá-los a cada hipótese nele prevista: Art. 7º. Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: I - os crimes: a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República; b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público. c) contra a administração pública, por quem está a seu serviço; d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil; Defesa Justiça Penal Universal II - os crimes: a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a Justiça Penal Universal reprimir; b) praticados por brasileiro; Nacionalidade c) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em Representação território estrangeiro e aí não sejam julgados. 3º - A lei brasileira aplica-se também ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil... Nacionalidade A extraterritorialidade pode ser ainda incondicionada ou condicionada. Será incondicionada quando a aplicação da lei brasileira não depender do concurso de nenhuma condição (art. 7º, 1º; CP) e condicionada quando depender de algumas condições (art. 7º, 2º; CP) 4-1-4- Princípio do Non bis in idem Se o crime ocorre no exterior, e o Brasil se sente no direito de aplicar sua própria legislação, então, é possível uma pessoa ser processada no Brasil e no estrangeiro ao mesmo tempo, porque enquanto o Brasil invocar a Extraterritorialidade, o país estrangeiro, por sua vez, estará aplicando o Princípio da Territorialidade. O que não se admite é o réu cumprir pena duas vezes pelo mesmo fato. Apesar do art. 7.º, I,, do CP estabelecer ainda que condenado no estrangeiro, não legitima o repugnante bis in idem, o que fica claro pela leitura do art. 8.º do Código Penal: A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas. 7

4-1-5- Imunidades É possível também um crime ocorrer no Brasil e não se aplicar a lei brasileira, como nos casos das imunidades diplomáticas. O embaixador é representante do Estado estrangeiro que o Brasil reconhece a soberania, portanto, tem uma isenção de jurisdição (a regra se estende aos representantes dos organismos internacionais, como a ONU, a OEA etc.). Os cônsules e agentes administrativos que representam interesses de pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras podem, por força de tratados internacionais ter imunidade no que diz respeito à jurisdição administrativa e judiciária pelos atos realizados no exercício das funções consulares. 5- Prazo Penal O prazo penal é contado de forma distinta do prazo processual, disposto no art. 798 do Código de Processo Penal. Neste, não se inclui o dia do começo, enquanto naquele é incluído o primeiro dia, desprezando-se o último. A regra consta no art. 10 do Código Penal: O dia do começo inclui-se no cômputo do prazo. Contam-se os dias, os meses e os anos pelo calendário comum. Utiliza-se a forma de contagem do direito penal nos casos em que a abertura do prazo refere-se ao exercício de um direito que, caso não seja exercido, afeta o direito de punir do Estado, como ocorre nos seis meses para o exercício do direito de queixa a partir do conhecimento da autoria. Do mesmo modo adota-se o prazo penal quando o assunto for prisão, mesmo não envolvendo o direito de punir do Estado, pois essa é a forma mais benéfica ao indivíduo. 6- Conflito Aparente de Normas O conflito aparente de normas surge quando, diante de um caso concreto, tem-se a sensação de que seria possível a aplicação de mais de uma norma incriminadora. Mas, pelo próprio nome do instituto, nota-se que o princípio é apenas aparente, pois, observados os princípios da especialidade, subsidiariedade, consunção e ainda, para alguns autores, alternatividade, tornar-se possível identificar a norma preponderante. 6-1- Princípio da Especialidade O princípio da especialidade deverá ser invocado quando estivermos entre um tipo geral e um tipo especial. Embora descrevam a mesma conduta, o tipo especial tem todos os elementos contidos no tipo geral, acrescidos de outros, chamados especializantes. Podemos apontar os seguintes exemplos: art. 316, do Código Penal, e o art. 3º da Lei 8.137/90; art. 121 3º, do Código Penal, e o art. 302 da Lei 9.503/97; art. 138 do Código Penal e art. 324 da Lei 94.737/65. 6-2- Princípio da Subsidiariedade Resolve-se o conflito pela subsidiariedade quando um tipo menos grave for elemento do mais grave. Isso quer dizer que um está inserido na própria descrição do outro. Segundo Nelson Hungria a diferença que existe entre especialidade e subsidiariedade é que, nesta, ao contrário do que ocorre naquela, os fatos previstos em 8

uma e outra norma não estão em relação de espécie e gênero, e se a pena do tipo principal (sempre mais grave que a do tipo subsidiário) é excluída por qualquer causa a pena do tipo subsidiário pode apresentar-se como soldado de reserva e aplicar-se pelo residuum. 6-3- Princípio da Consunção Pelo princípio da consunção pode-se solucionar o caso em que o sujeito pratica dois crimes, mas há entre eles uma relação de meio e fim. Em vez de responder por ambos, o agente responderá apenas pelo crime-fim, desde que este seja mais grave. Ao contrário do que ocorre no princípio da subsidiariedade, o da consunção só pode ser analisado e aplicado tendo em vista o caso concreto. 6-4- Princípio da Alternatividade Para alguns autores, a alternatividade seria mais um entre os princípios já mencionados. A alternatividade é percebida nos tipos penais que revelam mais de uma forma de se praticar o mesmo delito (crimes de ação múltipla). Todavia, tal entendimento não tem grande aceitação na melhor doutrina, pois não seria princípio solucionador do conflito aparente de normas, posto que, de uma forma ou de outra estaríamos diante de uma mesma norma. amaral_gurgel@yahoo.com.br http://professorgurgel.blogspot.com/ 9