A PSICOLOGIA E AS INTERVENÇÕES FAMILIARES NA DROGADIÇÃO: O SINTOMA COMO MENSAGEM DA NECESSIDADE DE MUDANÇA Silvana Baumkarten Dirce Terezinha Tatsch



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Transcrição:

A PSICOLOGIA E AS INTERVENÇÕES FAMILIARES NA DROGADIÇÃO: O SINTOMA COMO MENSAGEM DA NECESSIDADE DE MUDANÇA Silvana Baumkarten Dirce Terezinha Tatsch Universidade de Passo Fundo silb@upf.br e dirce@upf.br 1. Introdução: O trabalho de terapia familiar com adolescentes drogaditos teve seu início, na Universidade de Passo Fundo RS, no ano de 2000. No decorrer destes anos foram três projetos de pesquisa e um projeto de extensão. Foram atendidas 67 famílias, tendo um maior número de procura de atendimento a partir de 2007, quando o crack começa a atingir índices epidêmicos em nossa cidade. A droga é um fenômeno milenar, e nas últimas décadas vem se tornando um problema dramático. As crianças e os adolescentes têm sido alvo deste mercado consumidor cada vez mais crescente. Diante da complexidade do fenômeno drogadição e do seu envolvimento sociocontextual, é de suma importância que as atividades da psicologia aproximem-se cada vez mais dos primeiros espaços possíveis de trabalho com esses sujeitos, isto é, as famílias. Nosso trabalho com as famílias considera as motivações individuais, relacionais e sociais, permitindo uma abordagem contextualizada de sentido sistêmico, ou seja, passar da preocupação com o produto à preocupação com o encontro entre o sujeito e o produto num contexto sociocultural, como defende Sudbrack (2001). O modelo sistêmico postula que os problemas relacionados ao uso de drogas situam-se na interação do indivíduo com seu contexto, existindo uma interação dinâmica entre variáveis individuais, ambientais e a substância química. Parece-nos, então, um modelo abrangente e, portanto, o mais indicado para dar conta da complexidade do fenômeno. A epistemologia ecossistêmica de Bateson (1976, 1979) propõe a visão de contexto, em oposição à visão dicotomizada de indivíduo e ambiente. O contexto indica um conjunto vivo - o ecossistema - composto de um organismo e de seu ambiente, indissociáveis, e ligados pela constância na relação. O ecossistema inclui o indivíduo em relação com seu ambiente. Seguindo-se a proposta de Bateson da visão de contexto como elemento fundamental de toda comunicação e significação, não se deve isolar o fenômeno de seu contexto, pois cada fenômeno tem sentido e significado dentro do contexto em que se produz. Esta proposta de trabalho segue, também, os fundamentos da epistemologia da complexidade nas idéias de Morin (1992, 1996, 1996a), quando nos fala do desafio de não separar o objeto de seu meio, de não ser redutor e disjuntivo; que a complexidade é um desafio que o real nos traz, pois a realidade é complexa. E assumir o paradigma da complexidade na abordagem da drogadição na adolescência, é exatamente não perder de vista todas as dimensões que o tema abrange. Morin (1996) coloca que o objetivo do conhecimento não é descobrir o segredo do mundo, mas dialogar com o mundo. O pensamento complexo luta contra a mutilação, não contra a incompletude, diz Morin (1992). O pensamento complexo tende para o pensamento multidimensional. Com a teoria do caos se reconhece a instabilidade, a indeterminação, a desordem, a ordem a partir das flutuações, a auto-organização, o acaso. Transpondo-se a perspectiva do caos na visão da complexidade, como propõe Ausloos (1995), entendemos que o caos gerado pela droga talvez traga a questão da transformação, uma renovação da família e da sociedade. Esse caos familiar produzido pela droga representa

fontes de inesgotáveis possibilidades para que o sistema mude, cresça, se desenvolva - caos como força propulsora das bifurcações necessárias à família. Ausloos (1995) coloca que o caos é revelador de movimento, de mudança necessária ao sistema. A epistemologia construtivista (Von Glasersfeld, 1988, 1995; Von Foerster, 1987,1988; Watzlawick, 1988, 1995) nos afasta da pretensão de objetivar e atingir uma realidade (a realidade é uma construção), e toda observação inclui o observador (como observadores, somos sempre parte do que observamos). O construtivismo reinsere o sujeito no processo de conhecimento. O cientista não é mais um observador neutro, mas ao contrário, as teses científicas são concebidas como criadas pelo e para o ser humano, a fim de apreender uma natureza complexa e desordenada (Caillé, 1981 apud Sudbrack, 1997). A palavra chave no construtivismo é escolher: o terapeuta construtivista tem por objetivo resgatar no grupo as possibilidades deste reinvestir em outros níveis de leitura, de complexificar suas relações com o mundo (Sudbrack, 1994). 2. Drogadição e as famílias atendidas: A maioria dos usuários atendidos iniciou o uso de drogas entre 13 e 15 anos, fase da adolescência, fase de tantas mudanças, buscas, aquisições e desenvolvimento qualitativo, mas que também pode ser uma passagem difícil e cheia de conflitos para muitos jovens. Nesta fase da adolescência, podem aparecer as primeiras experiências com as drogas. O adolescente em busca de sua identidade, quer saber quem é e para onde vai, procura diferenciar-se de seus pais, independizar-se dos papéis infantis, enfim, buscar sua autonomia e individuação. Nesta trajetória, o adolescente atravessa/ encontra caminhos e obstáculos, encontra/busca novas sensações, novos limites a serem testados e experimentados, novos grupos de pertencimento, novos amigos, novas relações, cada vez mais fora do círculo familiar. Nesta busca, o jovem encontra também as drogas, algo proibido, que a sua curiosidade, a maioria das vezes, o leva a experimentar. Mas alguns vão além do uso experimental e recreativo. Como nos diz Gervais (1994), o adolescente em dificuldades se exprime por meio de sintomas e na impossibilidade de comunicar suas dificuldades aos pais, aos adultos, aos educadores, utiliza outra linguagem, aquela das queixas somáticas, da delinqüência, do suicídio e da toxicomania. Nesta perspectiva, a drogadição pode colocar-se com valor de passagem ao ato que possui uma significação, a ser investigada no âmbito da subjetividade de cada indivíduo consumidor. A busca de tratamento em sua maioria é feita pelos familiares, e não pelo próprio usuário, que tem em média 21 anos de idade, quando da busca de tratamento. Os familiares demoram certo tempo (que pode variar de meses a anos) para perceberem que o filho usa drogas fase chamada por Boutillier (1992) de cegueira familiar. Parece haver uma defesa da família em não enxergar, negar as evidências e não acreditar que o filho possa estar usando drogas. A família pode não estar querendo ver o problema, pois encarar, o uso de drogas pode levar a outros confrontos, outros conflitos familiares, até outras dependências e adições na família, com os quais ela ainda não está preparada ou em condições de enfrentar ou considerar. Em 63% dos casos pudemos verificar o uso transgeracional de drogas, incluindo o álcool. Stanton e Todd (1982) em suas pesquisas referem que em 80% das famílias consideradas, se constata uma dependência de um dos membros da geração precedente, que esta seja à bebida, medicamentos ou à TV. Ausloos (1995) também refere que não é surpreendente que se encontre nas famílias, onde há um alcoolista ou um toxicômano, outros membros da família que apresentam uma patologia do controle, como a anorexia, que é um excesso ou a

obesidade, que é uma falta. Diz ainda o autor que se pode multiplicar esses exemplos de patologias complementares nos sistemas familiares onde o controle é problemático, evocando a enurese, a atração pelas seitas, a fuga no trabalho, o jogo compulsivo, as perturbações obsessivo-compulsivas, etc. Essas indagações nos levam a pensar a drogadição como um sintoma e não como uma doença, como uma mensagem, um sinalizador à família e também à sociedade de que algo deve mudar. Sudbrack e Costa (1992) e Sudbrack (1997) entendem a drogadição na adolescência, enquanto expressão de necessidade de mudança, defendendo a posição de que o uso da droga é um sintoma e não uma doença em si, considerando que a demanda dos jovens às drogas representam um ato em busca de solução para suas dificuldades. De acordo com Sudbrack (1997), o jovem não deve ser visto como delinqüente ou desqualificado como doente, mas sim percebido como agente de mudança, que vive num processo de constante reflexão sobre suas experiências, com capacidade de avaliar as conseqüências de seus atos e que pode desenvolver sua capacidade de fazer opções e tomar decisões. A drogadição é um sintoma que revela seu significado no contexto relacional familiar e que promove ressonância nos sistemas ampliados. A descoberta da drogadição gera uma crise na família, o que nos salienta a importância incluir o contexto familiar no atendimento da drogadição na adolescência. Acreditamos que a solução encontra-se na família e visto a importância da família na vida do adolescente, apostamos na terapia familiar como uma das possíveis soluções para o problema emergente do abuso de drogas na adolescência. Como diz Fishman (1996) precisamos aqui de uma terapia contextual. Sem este tipo de terapia nos arriscamos a cair na armadilha mencionada por Gregory Bateson (1979) de gastar nossas energias tratando o nome do problema e não o contexto que o cria e mantém. Continua dizendo Fishman (1996, p.6): Como terapeutas tratando de adolescentes, não devemos nos dedicar ao negócio de tratar o nome da dificuldade - delinqüência, comportamento suicida, anorexia, e assim por diante. Em vez disso, devemos voltar a nossa atenção para o contexto social que está criando e mantendo o problema em questão. O tratamento da drogadição na adolescência através da terapia familiar tem se mostrado eficaz pela melhora dos sintomas e da qualidade dos vínculos familiares. Fishman (1996, p. 6), terapeuta especializado na adolescência afirma que: A intervenção terapêutica social mais poderosa para trabalhar com adolescentes é a terapia familiar. Naquele contexto multifacetado que invade o adolescente - família, iguais, escola, ídolos, cultura - o terapeuta ecologicamente orientado começa com a parte principal, que é a família. A família é o meio ambiente social do qual o adolescente emergiu. Ela é fonte dos relacionamentos mais duradouros e o sustento financeiro primário do adolescente. E a família, freqüentemente, tem os maiores recursos para efetuar a mudança. A família, então, é vista como recurso, como um sistema que tem competências. Trabalhar em terapia sobre a competência supõe uma grande confiança na capacidade do sistema familiar em resolver problemas. Ausloos (1995) coloca que todas as famílias têm competências, mas em certas situações, elas não sabem as utilizar, não sabem que as têm, estão impedidas de utilizá-las, ou ainda, impedem a si próprias de as utilizar por diferentes razões.

O papel do terapeuta ou equipe terapêutica, como ativadora deste processo de competência familiar. Sobre este aspecto Ausloos (1995) refere que o papel do terapeuta é de trabalhar com a família para encontrar ou descobrir o que ela sabe para reinventar soluções e para resolver seus problemas. O uso de alienante, mas a busca e o resultado do encontro do sujeito com o produto que consome e as ressonâncias deste ato no contexto familiar e social, apresentam um significado, que vai além dos efeitos químicos do produto, nas sensações, percepções e emoções. A busca e o encontro com as drogas têm o significado de busca de mudanças e encerra possibilidades de transformação nas relações do adolescente. O encontro com a drogadição do filho gera sofrimento e crise na família. A crise que se instalou, gerou movimentos em busca de tratamento, ocorreram mudanças, reformas, crescimentos, aprendizagens, enfim um movimento de reorganização familiar. Assim, o sintoma drogadição apresentado pelo filho, além de encobrir e denunciar os conflitos familiares toma a função, quando ocorre o encontro da família com esta drogadição, de comunicação da necessidade de mudanças e traz possibilidades de transformações no sistema familiar. O uso de drogas pelo adolescente pode ser encarado como uma provocação à família, uma passagem ao ato, colocada no lugar do diálogo e que apresenta uma dimensão paradoxal: ao mesmo tempo em que mascara conflitos e dificuldades relacionais, denuncia esses mesmos conflitos e dificuldades, gerando uma crise na família e uma necessidade de mudanças. A drogadição seria o meio encontrado pelo adolescente para mexer com seu sistema familiar bloqueado? A drogadição na adolescência leva ao caos familiar, isto é, desequilíbrios, desordens e confusões são mobilizados na família e é preciso que algo novo se produza. É nesta fase, confusa, desorganizada, que emergem soluções originais de maneira imprevisível, que permite ao sistema de se reorganizar. O caos, então, apesar da confusão e desorganização que lança a família, é também revelador de movimento, de mudança necessária ao sistema, é fonte de vida, de criação, de inovação. A família pode até associar este caos à degradação, à alienação, mas suas próprias falas anunciam que ele é outra coisa. Quando questionadas para dizerem para o que serviu a drogadição do filho, todos a associaram com mudanças, reorganizações, inovações, crescimentos. Parece-nos que estes depoimentos dos familiares revelam suas condições de pensar o significado deste ato/sintoma no sentido proposto por Ausloos (1995, p.101): Se ele fosse esse húmus sobre o qual pode brotar a orquídea, se ele fosse esta fonte de vida que nós procuramos sem a ver, se ele fosse este lixo (estrume) que se tem há muito tempo rejeitado sem saber que ele permitiria a vida? Minha proposição vai mais longe: como a podridão (putrefação), como a acumulação das folhas, como a efervescência (agitação) subterrânea, o caos é talvez fonte de vida, de criação, de inovação; o erro seria considerar que ele é nocivo e tudo fazer para combatê-lo e ordená-lo. Nós temos tentado afastar o caos da criança, ele ressurge com o jogo; nós temos procurado banir o caos da ciência, ele retorna com os fenômenos longe do equilíbrio; nós temos tentado fugir (escapar) à empresa do caos em nossa vida, ele nos confronta com as perturbações mentais. A questão não seria, logo, como eliminar o caos?, mas, bem mais como compor com ele? Como extrair a riqueza deste terreno fértil? Como lhe fazer dizer sua verdade? Como lhe permitir de nos desabrochar? 3. O sintoma como necessidade de mudanças:

A adolescência e a drogadição podem ser consideradas duas crises avassaladoras, que pedem e geram mudanças nos sistemas concernidos, como o sistema familiar. A crise da adolescência mostra a necessidade de mudanças e reorganizações das regras, valores e rotina familiar. Defendemos a hipótese que, quando a crise de adolescência não gera as mudanças necessárias na família, que propiciem a entrada neste novo ciclo de vida, o adolescente entra em sofrimento ou em dificuldades, e desenvolve um sintoma (que pode ser a drogadição) que tem como um dos significados, promover ou exasperar a crise familiar, para que a mudança se produza. Assim, a droga não é apenas busca de prazer e atordoamento num nível individual ou intrapsíquico, embora isso seja importante, mas é também busca de mudança numa dimensão relacional. Significado de busca de prazer, de alívio, de competências, mas também busca de solução para suas dificuldades e problemas. Redefinir o sintoma drogadição e redefinir seu significado como força propulsora de mudanças, possibilita um novo diálogo entre pais e filhos, entre os adolescentes, famílias e os contextos institucionais de tratamento. Assim, entendemos que o caos gerado pela drogadição pode ser organizador de novas relações familiares; tanto a adolescência em si, como o encontro com a drogadição nesta fase do ciclo de vida exige uma reorganização em nível relacional. Podemos entender a drogadição e a própria adolescência, como duas forças caóticas propulsoras de mudanças. O caos está anunciando que o sistema já está se transformando. Crise necessária, crise geradora de mudanças mas o que seria mais adequado para cada família? Cada família tem uma organização única. A crise gerada pela drogadição do filho leva à família em busca de ajuda e de tratamento. Se o contexto familiar ou o contexto de tratamento, trabalhar apenas com um dos significados do uso de drogas, como o de doença incurável, pode levar à paralisação ou dramatização, que deixa a todos longe das soluções e reorganizações necessárias. O significado do sintoma se registra a nível individual, relacional e social. Os significados do uso de drogas, na medida em que nos remete a uma leitura recursiva e do pensamento complexo, pode propor um avanço, a respeito da complexidade das questões de complementariedade e de articulação do universo que compõe o sintoma drogadição O sintoma drogadição remete à transformações, à comunicações e à busca de mudanças, que devem ser buscados na família, no contexto, na instituição e na adolescência. Propomos aqui uma nova narrativa de abordagem da drogadição na adolescência: a narrativa de uma crise que gera mudança, que possa integrar a compreensão de uma transformação possível e necessária do caos à possibilidade de transformação. Com essa nova leitura do sintoma drogadição, ampliam-se as possibilidades de abordagem do problema, extrapolando-as para novos contextos como a família, instituições, comunidade, grupos de pares e as redes, ampliam-se também as opções e os caminhos para a construção de novas alternativas. Defendemos a necessidade de reconstrução desses significados na clínica, através da construção de outras narrativas, tanto pelos profissionais, como pelos familiares e adolescentes, o uso de drogas não será mais encarado como uma estigmatização ou de pontos de inércia, mas abre-se a novas possibilidades de organizações relacionais. Uma leitura do sintoma com vários significados possíveis, articulados e interdependentes permite ampliar o leque de intervenções, permite mais criatividade nos tratamentos e respeito ao adolescente e ao arranjo único de cada família, pois o significado adotado gera o contexto de tratamento. Um processo terapêutico e de

tratamento que trabalhe com essas diversas dimensões do significado, procurando a deconstrução e reconstrução destes, num novo arranjo gerador de um novo sentido, facilita a construção de realidades relacionais alternativas. 4. Considerações finais: A drogadição do adolescente gera uma crise, que é vivida e revelada como um verdadeiro caos familiar. Numa compreensão do caos na perspectiva da complexidade, este é redefinido como revelador da saturação do sistema em seu atual estado de funcionamento, promovendo o movimento rumo às transformações necessárias. É nesta fase confusa, desorganizada e sofrida que, de uma forma igualmente imprevisível, surgem soluções originais que permitem uma nova reorganização do sistema familiar. Aceitando e aproveitando esses movimentos caóticos proporcionados pela drogadição, pela própria adolescência, pela crise gerada na família, pela trama de significados, podemos construir uma relação de tratamento que permita o surgimento do novo, do inesperado, enfim a possibilidade de desconstrução e reconstrução de significados alternativos e novas realidades. A terapia familiar é proposta enquanto intervenção complexa que oferece possibilidades de trabalhar o caos familiar em sua dimensão construtiva e transformadora. A psicologia que tradicionalmente tem seu foco de ação centrado na identificação de problemas/doenças em busca de soluções curas é convocada a propor novas formas de intervenção que dêem conta das realidades atuais. E para que possamos construir estas perspectivas diferentes de intervenção clínica é preciso que modifiquemos alguns paradigmas tecnicistas. Inclusive compreendendo a intervenção clínica segundo a propõe Figueiredo (1996), ou seja, o ethos da clínica psicológica é o de uma escuta diferenciada das aflições pelas quais passam as pessoas, aquilo que não é dito mas que gera tensões e conflitos. O paradiga proposto então, é o ético-estético, ou seja, a produção de vida e a construção de cidadania, escutando-se o cotidiano como expressão das práticas humanas num determinado tempo e lugar com diferentes possibilidades de interpretação. Acreditamos que com esta perspectiva de atendimentos às famílias, estamos ampliando as possibilidades de os psicólogos se aproximarem das demandas atuais da sociedade, já que a identificação dos problemas com o abuso de drogas é tema recorrente e cada vez mais crescente. A sociedade em constante processo de mudança aponta para vivências e sofrimentos da coletividade que se alteram, cabendo a psicologia propor novas estratégias de enfrentamento desta realidade. Referências Bibliográficas: 1. AUSLOOS, G. La dimension familiale dans l alcoolisme et les autres drogues. Les Cahiers du Great, v.2, p.5-36, 1982. 2. AUSLOOS, G. La compétence des familles - Temps, chaos, processus. Ramonville Saint-Agne: Érès, 1995. 173p. 3. BATESON, G. Pasos hacia una ecologia de la mente. 2.ed. Buenos Aires: Lolhé, 1976. 4. BATESON, G. Mind and nature. Nova Iorque: E. P. Duton, 1979. 5. BOUTILLIER,H. La toxicomanie à l adolescence. In: GRAMMER,C.; CABIÉ,M.C. et al. L adolescence, crise familiale - therapie familiale par phases. Tolouse: Éres, 1992, p.111-130. 6. GERVAIS, Y. La prévention des toxicomanies chez les adolescents. Paris: L Harmattan, 1994. 217p.

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