Revista de Ciências Agroambientais

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Transcrição:

Revista de Ciências Agroambientais Ciências Biológicas Por que as tartarugas não termorregulam na praia? Ecologia térmica de quelônios (Testudines: Podocnemis unifilis e Phrynops geoffroanus) do rio Kuluene Carmino Emidio Júnior 1, *, Amauri de Castro Barradas 2 DOI: 10.5327/Z1677-606220172055 1 Faculdade de Ciências Biológicas e Agrárias, Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Alta Floresta, MT, Brasil. 2 Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Agroecossistemas Amazônicos, UNEMAT, Alta Floresta, MT, Brasil. *Autor Correspondente: carminoemidio@hotmail.com Recebido: 15/06/2017; Aceito: 19/08/2017 Resumo: A temperatura ambiental afeta a temperatura corporal e, consequentemente, o comportamento dos animais ectotérmicos. Os quelônios são animais que apresentam mecanismo de termorregulação e, portanto, estreita dependência com o ambiente. Assim, buscamos analisar a temperatura preferencial dos quelônios do rio Kuluene e como a temperatura influencia na escolha dos sítios de termorregulação. Para tanto, desenvolvemos um experimento controlado com indivíduos de duas espécies de quelônios e medimos, por meio de modelo que simulava os padrões corporais dos animais, suas prováveis temperaturas em quatro potenciais ambientes para termorregulação. As análises estatísticas (Anova e regressão) nos mostraram que as espécies analisadas apresentam uma faixa térmica preferida (entre 24,31ºC e 30,61ºC) e que os ambientes com temperaturas mais adequadas para termorregulação são os troncos e a vegetação, sendo que a praia foi o menos adequado devido à amplitude térmica. O barranco se mostrou o ambiente onde os valores térmicos mais se aproximam da real temperatura corporal dos quelônios, porém oferece mais riscos de predação. A escolha dos sítios para termorregulação tem maior influência da temperatura, porém esta não é a única variável que influencia na seleção. Palavras-chave: ecofisiologia; assoalhamento; Amazônia. Why do not turtles heat up on the beach? Thermal ecology of chelonians (Testudines: Podocnemis unifilis and Phrynops geoffroanus) from Kuluene River Abstract: Ambient temperature affects body temperature and, consequently, the behavior of ectothermal animals. Chelonians are animals that present thermoregulation mechanism and, therefore, close dependence on the environment. Thus, we sought to analyze the preferential temperature of the Kuluene River chelonians and how the temperature influences the choice of thermoregulation sites. To do so, we developed a controlled experiment with individuals of two species of chelonians and measured, through a model that simulated the animal body patterns, their probable temperatures in four potential environments for thermoregulation. Statistical analyses (Anova and regression) showed that the examined species present a preferred thermal range (between 24.31 and 30.61ºC) and that the environments with the most suitable temperatures for thermoregulation are trunks and vegetation; beach was the least adequate site due to thermal amplitude. The ravine proved to be the environment where thermal values are the closest of the actual body temperature of chelonians, but it offers more risks of predation. The choice of sites for thermoregulation has greater influence of temperature, but this is not the only variable that influences the selection. Keywords: ecophysiology; floors; Amazonia. 1. INTRODUÇÃO No Brasil ocorrem no total 36 espécies de quelônios (BÉRNILS & COSTA, 2012), e só para a região amazônica são registradas 16 espécies (VOGT et al., 2001). Dentre elas estão Podocnemis unifilis, também conhecida como tracajá, espécie de quelônio aquático que apresenta ampla distribuição e ocorre em toda a bacia amazônica (CARNEIRO, 2012); e Phrynops geoffroanus, que também ocorre em toda a bacia amazônica e habita preferencialmente lagoas, ria- Rev. Ciênc. Agroamb. v.15, n.2, 2017

Rev. Ciênc. Agroamb. v.15, n.2, 2017 199 de 204 chos e rios de maior volume (PRITCHARD & TREBBAU, 1984), sendo predominantemente diurna e alimentando-se principalmente de peixes (MEDEM, 1960). Os répteis são animais ectotérmicos, ou seja, utilizam fontes externas de calor para regular a temperatura corporal. É nesse grupo taxonômico que estão presentes os quelônios, representados pelas tartarugas, tracajás e jabutis (MARTINS & MOLINA, 2008). Os mecanismos de regulação da temperatura corporal que esses organismos possuem são dos mais complexos (ROCHA et al., 2009) e muitas vezes a temperatura corporal dos termorreguladores está diretamente relacionada com o habitat no qual estão inseridos, refletindo na ecofisiologia e na ecologia comportamental dos organismos (SOUZA, 2004). Em outras palavras, a temperatura ambiental afeta a temperatura corporal e, consequentemente, o comportamento dos animais ectotérmicos (TORRES, 2012). Devido à temperatura corporal ser um dos fatores mais importantes na ecologia desses animais, grande parte das atividades diárias de várias espécies é gasta em interações entre animal e ambiente térmico (ROCHA et al. 2009). Ainda de acordo com esse autor, a perda e o ganho de calor por um indivíduo dependem tanto do habitat quanto da atividade que esteja realizando no momento, sendo que a regulação da temperatura corpórea pode envolver o controle do período de atividade e o deslocamento entre locais mais frescos (sombreados) e mais quentes (insolados). Assim, a manutenção da temperatura corpórea dentro de limites adequados ao seu metabolismo é fundamental para a sobrevivência do indivíduo (ROCHA et al., 2009). Baseados nesses fatos, procuramos medir aspectos relacionados com a ecologia termal de quelônios do rio Kuluene, Mato Grosso. Para tanto, analisamos: padrões diários de temperatura corporal dos quelônios; e padrões de temperatura corporal dos quelônios nos micro-habitats, respondendo respectivamente as perguntas: 1. qual é a temperatura preferencial dos quelônios do rio Kuluene? 2. a temperatura influencia na escolha dos sítios de termorregulação? 2. MATERIAL E MÉTODOS 2.1. Área de estudo Este trabalho foi realizado em um trecho do baixo rio Kuluene, localizado no município de Gaúcha do Norte, Mato Grosso. O rio Kuluene é um dos afluentes que compõem a bacia hidrográfica do rio Xingu, um dos principais rios da bacia amazônica. A região compreende uma área de transição cerrado-amazônia marcada por uma composição fitofisionômica de mosaicos vegetacionais, típica de áreas ecotonais, com manchas de cerrado e floresta. A área de estudo localiza-se próximo ao Parque Indígena do Xingu, uma das maiores reservas indígenas do Brasil. A região é marcada por extensa atividade agrícola, com o entorno recortado por campos de lavoura, principalmente de soja. O rio apresenta mais de 400 km de extensão da nascente à foz e é um dos principais da bacia do Xingu. É marcado por curvas sinuosas e margeado por vegetação densa de porte florestal. O trecho amostrado (onde os modelos foram colocados) apresentou 2,2 km (Figuras 1 e 2A). 2.2. Coletas dos dados Nossos dados foram coletados em duas etapas: na primeira, a fim de encontrarmos padrões diários de temperatura corporal dos quelônios, fizemos um experimento controlado. Em um fosso com água, recriamos quatro micro habitats (areia/praia, troncos acima da lâmina d água, pedra/barranco e sombra/vegetação) possivelmente utilizados para a termorregulação pelas espécies de quelônios capturados (Figuras 2B e 2C). Colocamos cinco indivíduos no ambiente, sendo dois Phrynops geoffroanus e três Podocnemis unifilis. Em cada espécime colocamos um data logger (Hobo) que media a temperatura corporal a cada 5 minutos, durante 24 horas, e monitoramos o micro-habitat onde os indivíduos estavam de hora em hora (Figura 2D). Na segunda etapa, para saber como a temperatura influencia na escolha dos sítios para termorregulação pelas espécies de quelônios estudadas, no campo e nos 4 habitats correlatos aos do experimento colocamos modelos que simulavam o padrão corporal dos indivíduos, acompanhados cada um de um data logger que media a temperatura a cada 5 minutos, durante 24 horas (Figura 2A). 2.3. Análises dos dados Para encontrarmos a faixa de temperatura preferencial dos quelônios capturados no rio Kuluene realizamos uma Anova, que mostrou a média de temperatura apresentada pelos indivíduos em cada ambiente simulado. Em seguida, foi calculada a frequência de visitações de cada espécime a cada um dos ambientes. Dessa forma, foi estimada a faixa de temperatura preferencial geral dos indivíduos analisados.

Rev. Ciênc. Agroamb. v.15, n.2, 2017 200 de 204 Para entendermos como a temperatura influencia na seleção de micro-habitats para termorregulação, realizamos uma regressão múltipla entre os valores de temperatura dos modelos em campo (que simulavam a temperatura do espécime naquele ambiente em cada momento registrado) e a temperatura média dos cinco indivíduos ao longo do tempo registrado. Todas as análises foram realizadas no software Statistica â 8.0. Figura 1. Trecho do rio Kuluene onde foram colocados os modelos com data loggers (Hobos), nos micro-habitats (vegetação/sombra, barranco/pedra, tronco e praia). A distância média entre cada um foi de 500 m. A B C D Figura 2. (A) Trecho do rio onde foram colocados os modelos; (B e C) ambientes simulando os micro-habitats do experimento (vegetação, troncos, praia e pedra); (D) espécime com data logger instalado.

Rev. Ciênc. Agroamb. v.15, n.2, 2017 201 de 204 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO As temperaturas corporais médias das duas espécies foram similares. Os indivíduos de Phrynops geoffroanus apresentaram média de 25,59ºC (SD = 3,63) e os indivíduos de Podocnemis unifilis, de 26,50ºC (SD = 2,07). No que se refere à temperatura corporal que os indivíduos apresentaram em cada ambiente, em todos os micro-habitats os espécimes mantiveram a temperatura numa faixa similar, com exceção de vegetação/sombra (Veg: 27,67ºC), pedra/ barranco ao sol (PdSol: 30,61ºC) e água ao sol (AgSol: 35,47ºC), que diferiram do ambiente pedra/barranco sombreado (Pd: 24,30ºC), (F(7, 87) = 6,184, p = 0,00001) (Tabela 1). Os valores médios da temperatura corporal que cada indivíduo apresentou nos ambientes analisados variaram entre 22 e 35ºC (Figura 3). A faixa térmica preferencial de 97% dos indivíduos estudados ficou entre 24,31 e 30.61ºC. A relação entre variação da temperatura dos habitats naturais usados para a termorregulação e variação média da faixa de temperatura preferencial dos indivíduos analisados indicou que vegetação (T máx = 42,56ºC e T min = 20,93ºC) e troncos (T máx = 40,97ºC e T min = 20,41ºC) foram os dois ambientes mais propícios para o assoalhamento dos quelônios, pois ambos apresentaram, ao longo do dia, variação de temperatura mais próxima da faixa ideal dos espécimes. Já a praia (T máx = 48,27ºC e T min = 20,27ºC) se mostrou o pior ambiente para termorregulação, pois sua temperatura ao longo do dia apresentou 15ºC a mais que a faixa suportada pelos quelônios (Figura 4). Os valores beta mostraram que o ambiente de assoalhamento onde a temperatura do modelo melhor se relacionou com a temperatura real dos indivíduos foi o barranco, seguido da vegetação. No outro extremo está a praia (F(4,283) = 639,84, p < 0,00001); no entanto, todos foram bem significativos (Tabela 2). Nossos resultados mostraram que não existe diferença significativa de variação da temperatura corporal entre as duas espécies estudadas, pois os organismos de ambos os grupos ficaram dentro da mesma média de temperatura. Tabela 1. Similaridade da temperatura corporal que os espécimes apresentaram em cada micro-habitat. Veg AgSom Pd PdSol Ag Are Tro AgSol Veg AgSom 0,571 Pd 0,003 1,000 PdSol 0,146 0,083 0,000 Ag 0,996 0,905 0,819 0,270 Are 0,921 1,000 1,000 0,308 0,997 Tro 1,000 0,975 0,991 0,744 1,000 1,000 AgSol 0,341 0,074 0,040 0,873 0,260 0,179 0,392 Veg: vegetação; AgSom: água na sombra; Pd: pedra na sombra; PdSol: pedra no sol; Ag: água à noite; Are: areia; Tro: tronco; AgSol: água no sol. Os valores em negrito mostram os ambientes que não apresentam similaridade. 45 40 Temperatura corporal 35 30 25 20 15 Veg AgSom Pd PdSol Ag Are Tro AgSol Local Veg: vegetação; AgSom: água na sombra; Pd: pedra na sombra; PdSol: pedra no sol; Ag: água à noite; Are: areia; Tro: tronco; AgSol: água no sol. Figura 3. Médias das temperaturas corporais apresentadas pelos indivíduos em cada micro-habitat.

Rev. Ciênc. Agroamb. v.15, n.2, 2017 202 de 204 No que diz respeito às temperaturas corporais específicas das espécies, há importante componente filogenético. Isso quer dizer que existe grande similaridade das temperaturas corporais entre espécies do mesmo clado filogenético, ainda que em ambientes separados (ROCHA et al., 2009). No que se refere à temperatura preferencial, observamos que não houve um valor absoluto de temperatura ótima, mas uma faixa de temperatura suportada, e que pouco mais de 70% dos indivíduos mantiveram a temperatura corporal em um intervalo de 4ºC, entre 24 e 27ºC. Embora há algumas décadas os pesquisadores acreditassem na existência de um valor absoluto de temperatura ótima para o desenvolvimento das funções vitais de alguns grupos de répteis, hoje está cada vez mais comprovado que não existe somente um, mas vários valores ótimos, que dependem da atividade que o animal está desempenhando (POUGH, 1983; ROCHA et al., 2009). Assim, quando ativas, algumas espécies de répteis mantêm sua temperatura em determinada faixa, podendo variar de valores mínimos a valores máximos tolerados (ROCHA et al., 2009). Nossas análises mostraram também que existe uma forte relação de efeito entre a temperatura dos micro-habitats usados e a temperatura corporal dos quelônios. Isso influencia no comportamento de termorregulação do animal, que prefere utilizar ambientes com temperaturas mais próximas ou dentro do intervalo térmico preferido. Os comportamentos termorregulatórios adotados pelos répteis são muito variados, incluindo desde a mudança de posição até a alteração do contorno e da coloração corporal. As tartarugas, devido à sua anatomia, não podem mudar os contornos corporais nem a coloração, portanto seu comportamento termorregulatório está baseado na movimentação entre áreas ensolaradas e sombreadas, e para dentro e fora da água (POUGH et al., 1993; TORRES, 2012). 20 15 Vegetação Barranco Tronco Praia 10 5 0 12:00 13:00 14:00 15:00 16:00 17:00 18:00 19:00 20:00 21:00 22:00 23:00 00:00 01:00 02:00 03:00 04:00 05:00 06:00 07:00 08:00 09:00 10:00 11:00 5 10 Figura 4. Flutuações das temperaturas apresentadas pelos modelos em cada ambiente e relação com a faixa de temperatura preferida pelos indivíduos experimentados (entre 24,31 e 30,61ºC). O eixo 0 representa o intervalo térmico preferido pelos espécimes. Tabela 2. Relação entre temperatura corporal dos espécimes e temperatura dos modelos em cada micro-habitat. Valores de β mais próximos de 1 representam os ambientes mais próximos da temperatura média dos animais. Local Praia 0,81 Barranco 0,94 Tronco 0,87 Vegetação 0,90 Β

Rev. Ciênc. Agroamb. v.15, n.2, 2017 203 de 204 Nossos resultados explicam a preferência (dados observados em campo) no uso de troncos e galhos da vegetação de dentro do rio para o assoalhamento dos animais e por que os espécimes não termorregulam na praia. A amplitude térmica da praia, nos períodos de atividade dos animais (entre 11 e 15h), é muito maior que o valor máximo de temperatura preferida pelas espécies analisadas e muito menos estável quando comparada aos outros três ambientes. O desenvolvimento dos animais ectotérmicos está diretamente relacionado com o conforto térmico, podendo se tornar baixo devido a temperaturas extremas (ZIMMERMAN & TRACY, 1989). O barranco foi o ambiente cuja temperatura se mostrou mais adequada à temperatura corporal dos animais, o que foi uma surpresa, pois contraria o observado em campo: esse foi o ambiente onde menos encontramos indivíduos assoalhando. Esse fato, aliado à observação dos animais no laboratório (que não só preferiram o habitat como também fugiam para o meio da vegetação quando nos aproximávamos do experimento), indica que a escolha dos sítios de termorregulação pode ser influenciada não só pela temperatura, mas também por outros fatores, como, por exemplo, estratégia de defesa e fuga dos predadores. A vegetação dificulta a localização do animal e os troncos no meio do rio facilitam sua fuga. Ao contrário, em ambientes terrestres (barranco e praia), os animais, além de estarem mais expostos, apresentam maior dificuldade de deslocamento no momento da fuga. Alguns estudos apontam que, quanto mais demorada for a exposição ao sol ou a outras fontes de calor, mais exposto estará o indivíduo a potenciais predadores. Além disso, o risco de predação pode levar ao uso de micro-habitats inadequados, reduzindo o ganho fisiológico relacionado à manutenção da temperatura corpórea (HUEY, 1982). No tocante à conservação, vemos que a temperatura é uma variável que influencia no comportamento térmico das espécies e, embora não seja a única, é a mais forte. Isso nos leva a crer que alterações no microclima local, sobretudo modificações ambientais no entorno do rio (como o desflorestamento para atividade agropecuária), podem causar impactos no comportamento, nas atividades vitais e quiçá na dinâmica populacional das espécies estudadas. Porém, a hipótese de que alterações ambientais das áreas no entorno do rio causarão mudança de temperatura suficiente para afetar a população de quelônios merece um pouco mais de atenção. 4. CONCLUSÕES Nossos resultados mostraram que mais de 97% dos indivíduos de Phrynops geoffroanus e Podocnemis unifilis não apresentaram temperatura média preferida, mas uma faixa de temperatura ótima que variou de 24,31 a 30,61ºC. Também verificamos que os indivíduos dessas duas espécies não termorregulam na praia por dois motivos: evitar exposição aos predadores e porque a temperatura na praia durante os horários usados para termorregulação excede a faixa térmica suportada pelos indivíduos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BÉRNILS, R. S. & COSTA, H. C. Répteis brasileiros: lista de espécies. Versão 2012.2. 2012. Disponível em: <http:// www.sbherpetologia.org.br/>. Acesso em: 15 ago. 2015. CARNEIRO, C. C. Influência do ambiente de nidificação sobre a taxa de eclosão, a duração da incubação e a determinação sexual em Podocnemis (reptilia, podocnemididae) no Tabuleiro do Embaubal Rio Xingu, Pará. Belém PA: Universidade Federal do Pará, 2012. 54p. Dissertação (Mestrado em Ecologia Aquática e Pesca), Universidade Federal do Pará, 2012. HUEY, R. B. Temperature, physiology and the ecology of reptiles. In: GANS, C. & POUGH, F. A. (Orgs.). Biology of the reptilian, v. 12. Physiological Ecology. Nova York: Academic Press, 1982. 536. p. 25-91. MARTINS, M. & MOLINA, F. B. Panorama Geral dos Répteis Ameaçados do Brasil. In: BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção. Brasília: Ministério do Meio Ambiente; Belo Horizonte: Fundação Biodiversitas, 2008. MEDEM, F. Informe sobre reptiles colombianos. (V) Observaciones sobre la distribucion geografica y ecologia de la tortuga Phrynops geoffroana 1Sp. en Colombia. Novedades Colombianas, v. 1, n. 5, p. 291-300, 1960. POUGH, F. H. Amphibians and reptiles as low-energy systems. In: ASPEY, E. P. & LUSTICK, S. I. (Orgs.). Behavioral Energetics: The Cost of Survival in Invertebrates. Columbus: Ohio State University Press, 1983. 300p. p. 141 188. POUGH, F. H.; HEISER, J. B.; Mc FARLAND, W. N. A vida dos vertebrados. São Paulo: Atheneu, 1993. PRITCHARD, P. C. H., & TREBBAU, P. The Turtles of Venezuela. Oxford: Society for the Study of Amphibians and Reptiles, 1984. 403p. ROCHA, C. F. D.; SLUYS, M. V.; VRCIBRADIC, D.; KIEFER, M. C.; MENEZES, V. A.; SIQUEIRA, C. C. Comportamento de termorregulação em lagartos brasileiros. Oecologia Brasiliensis, v. 13, n. 1. p. 115-131, 2009.

Rev. Ciênc. Agroamb. v.15, n.2, 2017 204 de 204 SOUZA, F. L. Uma revisão sobre padrões de atividade, reprodução e alimentação de cágados brasileiros (Testudines, Chelidae). Phyllomedusa, v. 3, n. 1, p. 15-27, 2004. TORRES, R. S. Adaptações evolutivas: aspectos comportamentais, mecanismos de defesa e predação em répteis. Porto Alegre RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012. 72f. Monografia (Graduação), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012. VOGT, R. C.; MOREIRA, G. M.; DUARTE, A. C. O. C. Biodiversidade de répteis do bioma floresta Amazônica e ações prioritárias para sua conservação. In: CAPOBIANCO, J. P. R.; VERÍSSIMO, A.; MOREIRA, A.; SAWYER, D.; SANTOS, I.; PINTO, L. P. Biodiversidade na Amazônia brasileira: avaliação e ações prioritárias para a conservação, uso sustentável e repartição de benefícios. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2001. p. 89-96. ZIMMERMAN, L. C. & TRACY, C. R. Interactions between the environment and ectothermy and herbivory in reptiles. Physiological Zoology, v. 62, p. 374-409, 1989. https://doi.org/10.1086/physzool.62.2.30156176 Universidade do Estado de Mato Grosso Campus I - Rod. MT 208, KM 147 - Jardim Tropical - Fone: +55(66) 3521-2041 Revista de Ciências Agroambientais (ISSN 1677-6062)