28/11/2007 - Quart ética Tema: Saúde Mental do Trabalhador Psicólogo: a quantas anda? Palestrante: Valéria Ruiz Agradeço o convite para participar deste encontro. Considero muito importante a iniciativa da Comissão de Ética de promover espaços de troca, para que seja possível pensar em ética partindo de uma reflexão sobre nossas práticas. Embora não tenha a pretensão de responder a questão colocada como título do debate tentarei compartilhar algumas reflexões, dúvidas e inquietações partindo do lugar de uma Psicóloga e Trabalhadora. Quem é o trabalhador Psicólogo? O psicólogo enquanto trabalhador foi o tema abordado na edição deste mês (de setembro de 2007) do jornal do Conselho Regional de Psicologia - RJ. Conforme mencionado nesta ocasião, por quase todos participantes do debate colocado em pauta, à idéia de trabalhador por muitas vezes esteve relacionada apenas ao trabalhador braçal. Essa discussão não é de hoje, no Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental já estava presente à polêmica quanto à utilização dos termos "Trabalhador" ou "Profissional". Em seu clássico livro que relata a história da Reforma Psiquiátrica Brasileira, Amarante (1995) a descreve em uma nota de rodapé : Já nos primeiros momentos do movimento, surge uma discussão quanto ao uso dos termos 'trabalhadores' ou 'profissionais', que reflete uma luta de tendências internas. Há aqueles de tendência 'obreirista', mais identificada com as camadas populares, que preferem utilizar a expressão 'trabalhadores', e aqueles de tendência 'corporativa', mais identificada com os valores das camadas 'burguesas', que procuram marcar sua origem socioprofissional universitária, especialística, que defendem a expressão 'profissionais'... (Amarante, 1995, p106) 1
Entendo essa ênfase dada (no jornal e no encontro de hoje) à dimensão de trabalhador do psicólogo como afirmação de uma determinada posição política, que se contrapõe a uma outra visão, que pretende separar o trabalhador fazedor do trabalhador pensador, o planejador do executor, o gestor e do executor, o técnico do político, entre outras tantas dicotomias, que partem de uma lógica binária, e, que ainda estão presentes na organização da maioria dos serviços nos quais os psicólogos se inserem. Nesse sentido, afirmar essa nossa identidade trabalhador parece que implicaria também em afirmar as nossas práticas como políticas e que sempre pressupõe escolhas éticas, pois nunca serão meramente aplicações de técnicas objetivas ou supostamente neutras. Creio que seria possível me arriscar a dizer que todos partimos aqui todos do consenso de que o trabalho, como qualquer atividade humana, por mais simples que pareça nunca se resume a repetição de movimentos, sempre existe uma margem de escolhas. Ainda sim, mesmo nos reconhecendo como trabalhadores dentro desta perspectiva, seria possível demarcar especificidades que caracterizem um quadro de nossa saúde mental? Seria possível, como sugere o tema da mesa, caracterizar uma identidade do trabalhador psicólogo, e a partir daí, de a sua saúde mental? 1 O reconhecimento da impossibilidade (talvez minha) de definição de uma identidade do trabalhador psicólogo ou, por extensão, da apresentação de um diagnóstico da sua saúde 1 Cabe aqui abrir um importante parêntese para enfatizar que a dúvida apresentada não significa desconsiderar a relevância dos estudos que tem procurado estabelecer as relações entre as formas de adoecimento, no caso o psíquico, com alguns trabalhos ou atividades específicas. Um bom exemplo são os estudos sobre a Síndrome de Burnout, ou Síndrome do Esgotamento Profissional, que tem sido apontado como sendo um problema que afeta principalmente os trabalhadores encarregados de "cuidar". Descrita como um tipo de resposta prolongada a estressores emocionais e interpessoais crônicos no trabalho, a Síndrome do Esgotamento Profissional ou Burnout está incluída entre as doze categorias diagnósticas que integram o capítulo 5 da classificação internacional de doenças na sua 10ª revisão (CID-10), ou seja, de transtornos mentais e do comportamento. (Jardim, 2004). Alguns autores apontam os psicólogos como uma das categorias mais susceptíveis ao desenvolvimento dessa Síndrome e defendem a necessidade de realização de maiores pesquisas no Brasil sobre este assunto. (Campos, 2004). 2
mental, não implica desconsiderar a urgência de enfatizar a dimensão de Produção de Subjetividade do trabalho e, com isso, procurar estabelecer relações entre o trabalho e a produção de saúde mental ou de sofrimento. Ressaltar esta dimensão (da Produção de Subjetividade) significa desviar o foco de atenção PSI que esteve, por algum tempo, voltado apenas para a aptidão do sujeito para o trabalho, como se esta aptidão estivesse contida dentro dele e não sendo fabricada pelo trabalho. Do processo de mortificação/ adoecimento a construção de possíveis Como foi dito, muitas vezes o psicólogo é convocado para atuar partindo de uma lógica cartesiana, de acordo com determinadas concepções, de que o trabalho, o trabalhador e a saúde são passíveis de interpretações totalitárias, intervenções que devem ser realizadas por especialistas, alguém de fora, um técnico, que teria o conhecimento e a solução (a prescrição certa, testada cientificamente e com base em medidas universais). Esta lógica está na base das tradicionais concepções de Saúde e de Gestão: por exemplo, a que define Saúde como um completo estado de Bem Estar físico, psicológico e social 2 e da Gestão como sendo sinônimo de administração científica. Trazendo para algumas situações concretas do nosso cotidiano, o psicólogo nas empresas muitas vezes é convocado para recrutar as pessoas e avaliar sua a aptidão para o desenvolvimento de determinadas atividades. Quando analisamos esta demanda percebemos que, muitas vezes, nela tem embutida a expectativa de que esta avaliação represente uma garantia, a priori, de adequação das pessoas ao trabalho que será desenvolvido. Quase sempre as avaliações psicológicas são realizadas sem que o psicólogo ao menos conheça a atividade para a qual a pessoa está sendo selecionada. É claro que a garantia de sucesso no desempenho da atividade, independente do que aconteça efetivamente no futuro trabalho, não poderá ser dada nunca. Nas escolas somos convocados para realizar atendimentos individuais nas crianças que apresentam problemas de aprendizagem. Nos presídios para realizar os exames criminológicos nos presos. 2 Fazemos aqui referencia a concepção de saúde integral postulada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). 3
Nos hospitais para comunicar as más notícias. Sabemos também que não podemos simplesmente dizer que não vamos realizar isso. Que não somos juízes, não temos bolas de cristais para prever o futuro. Existe todo um processo de desconstrução de conceitos, demandas e expectativas, que é indissociável de um processo de construção de novos conceitos, expectativas e novas possibilidades de atuação. A complexidade deste processo desconstrução/construção foi muito discutida nas experiências das Reformas Psiquiátricas. Algumas publicações e relatos de experiências, no Brasil e em outros países como a Itália, enfatizavam a complexidade do processo, que extrapolava o desmonte do hospital psiquiátrico. Segundo Rotelli (1990), diferente da experiência dos EUA, centrada na desospitalização a experiência da desinstitucionalização italiana significou a adoção de uma intervenção prática de desmonte dos aparatos científicos, legislativos e administrativos construídos com relação à chamada doença mental. Nesse sentido cabe a nós então resgatarmos nossa função de fazedores-pensadores, aplicadores de técnicas-políticos. Nesse movimento, considero que temos na Análise Institucional um conjunto de ferramentas muito úteis para estas operações, destaco aqui o conceito de análise das implicações 3. Não pretendo com esse argumento defender a posição de que devamos aceitar a todas as encomendas que nos chegam para aos poucos tentar desconstruir por dentro... É claro que existem algumas demandas que são inaceitáveis e que esta medida nem sempre nos parece clara. Sabemos também que manter uma postura crítica, coerente com alguns valores que entendemos ser mais justos, ao longo de nosso exercício da profissão nem sempre é uma tarefa fácil. Acompanhei situações de colegas que tinham um grande engajamento político na universidade e que passaram por sérias dificuldades ao ingressarem no mercado de trabalho e ao se depararem com a precariedade de alguns serviços de saúde, ou com a lógica individualista e competitiva que impera em empresas, etc. Provavelmente muitos de nós já 3 As implicações fazem referência aos vínculos afetivos, profissionais e políticos com as instituições em análise. A análise das implicações é um dos conceitos básicos da Análise Institucional e contrapõe a clássica suposição de neutralidade da tradição científica positivista. (Rodrigues, 1991) 4
vivenciamos este processo de mortificação com algumas situações de trabalho, com variações de intensidade e duração. Determinadas situações nos paralisam, tomam nossos corpos e provocam um mal estar que facilmente é guardado para si, individualizado e assumido como uma inadequação pessoal a determinados padrões, podendo ainda ser significado como doença. Por fim, penso ser importante para a saúde mental do trabalhador o estabelecimento de alianças, sejam com pessoas, idéias, experiências de dentro ou fora de sua equipe de trabalho, para que seja possível um fortalecimento do seu ponto de vista. Nesse sentido, creio que é exatamente nos encontros que podemos construir alternativas a individualização de nossos sofrimentos e construir novos campos de possibilidades. Referências bibliográficas AMARANTE, P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995. JARDIM,S.R. O diagnóstico de Burnout na atenção em saúde mental dos trabalhadores. In: ARAÚJO, A, ALBERTO,M.F., NEVES,M.Y, ATHAYDE (orgs). Cenários do Trabalho: subjetividade, movimento e enigma. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. CAMPOS, C.R. et al. Síndrome de Burnout em Profissionais da Saúde. in: GUIMARÃES, LAM. e GRUBITS, S. Saúde Mental e trabalho, vol. III.São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. RODRIGUES, H.C.SOUZA, V.L.B.. Análise Institucional no Brasil. Organizado por Osvaldo Saidon, Vida Rachel Kamkhagi - 2.ed.- Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,1991. 5
ROTELLI, F. Desinstitucionalização, uma outra via: A reforma psiquiátrica italiana no contexto da Europa Ocidental e dos Países Avançados. In: NICÁCIO, M. F. (org.), 1990. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 1990. RUIZ, V.S. A dimensão Gestionária da Clínica: A Experiência em um serviço de Saúde Mental. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, 2003. 6