1 O Escutar através do Desenho Neide M.A.Corgosinho 1 RESUMO: O artigo aqui apresentado baseia-se em algumas experiências de trabalho na internação pediátrica do Hospital Militar de Minas Gerais no período letivo de 2005. Tal experiência teve como ponto de partida realizar um estudo acerca da influência do brincar e do desenhar no psiquismo da criança internada. PALAVRAS CHAVES: Psiquismo, Criança, Internação, Brincar, Desenhar. Tendo em vista o eixo psicanalítico, pode-se compreender alguns impactos que o brincar e o desenhar podem causar no psiquismo da criança. Foi feita no hospital uma observação de crianças em relação a esse processo. Este artigo também pretende demonstrar a importância que a Psicanálise tem no âmbito hospitalar. A criança internada irá se haver com a castração, irá se deparar com o desamparo originário. Na primeira infância, o sujeito realmente não está preparado para dominar psiquicamente as grandes somas de excitação que o alcançam quer de fora, quer de dentro. E num certo período de vida, seu interesse mais importante é que as pessoas das quais ele depende não devem retirar o carinho dele. De acordo com Cabas a castração terá a função de separação. Então, pode-se perceber que ambas serão vividas na internação (CABAS, 1993:122). A partir desse pressuposto, a criança internada irá se deparar com várias questões, que poderão ser expressadas através do brincar. Através da proposta de investigação que visou pesquisar os possíveis impactos do brincar no psiquismo da criança, deve-se atentar, segundo Wajskop (1997:20), que o brincar é uma atividade dominante da infância considerando-se as condições concretas da vida e o lugar que ela ocupa na sociedade. É uma atividade na qual a criança, sozinha ou em grupo, tenta 1 Acadêmica do 6º período de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva
2 compreender o mundo e as ações dos seres humanos, bem como suas fantasias, desejos e angústias. Acredita-se que a criança internada, se lhe for oferecida o espaço do brincar, irá demonstrar seus sentimentos de tristeza, angústia, ansiedade, medo e até mesmo sua agressividade. Portanto, através do brincar, o psicólogo hospitalar poderá conhecer particularidades da criança internada e compreenderá melhor seus sentimentos e sua posição subjetiva. Segundo Wajskop, o brincar define alguns critérios; primeiro, nele, a criança assume outros papéis quando representa como se ela fosse um adulto, outra criança, uma boneca; em segundo lugar, criam uma situação imaginada ou uma trama, e assim o terceiro, as crianças realizam ações representando os sentimentos, as interações e conhecimentos que a mesma possui na sociedade, na qual está inserida; já no quarto critério as regras que compõe a brincadeira devem ser respeitadas e finalmente, no quinto, as crianças utilizam objetos substitutos, nos quais lhe fornecem significações diferentes das que realmente possuem (WAJSKOP, 1997:33). Baseando-se nos critérios acima, fica nítida a importância do brincar para a criança internada, pois é na brincadeira que ela fantasia, faz representações, troca de papéis. E o hospital, é um possível lugar para que ela possa vivenciar essas representações, pois é neste local que ela está sofrendo. Não somente pela falta da casa, de seus brinquedos, mas sim pela falta dos pais, que às vezes não estão ao seu redor; pelo próprio local, no caso o hospital e também pelo corpo, a falta da saúde que deu lugar à dor. Para BROUGÈRE 2, a brincadeira é uma mutação do sentido, da realidade: nele as coisas transformam-se em outras. É um espaço à margem da vida cotidiana que obedece a regras criadas pela circunstância. Nela, os objetos podem apresentar-se com significado diferente daquele que possuem normalmente. (citado por WAJSKOP,1997:29) 2 BROUGÉRE, Gilles. Du jeu au jouet dans I éducation prescolaire. Texto apresentado para o 2º Congresso Brasileiro do Brinquedo na Educação de Crianças de 0 a 6 anos. São Paulo, 9 a 12 de julho de 1990. (mimeo)
3 Ou seja, no brincar a criança pode transformar o sentido, transformar a realidade. Então, cabe ressaltar novamente a importância do brincar para a criança internada, pois ela mesma conseguirá amenizar seu sofrimento através do brinquedo. Ela própria poderá conseguir transformar sua realidade na qual está inserida no momento. Apesar da importância do brincar para a criança, considera-se que é nítida a dificuldade que algumas crianças apresentam quando são internadas e que não será fácil fazer com que elas, de início, consigam brincar. Contudo, sabendo da relevância que o brincar possui para o psiquismo da criança, a persistência do psicólogo hospitalar terá que ser maior que a resistência da criança internada. De acordo com AJURIAGUERRA 3, a internalização da criança leva-a a se confrontar com um estado de desamparo, ao perceber sua fragilidade corporal que resultou no adoecimento, originando reações diversas tais como regressões, estados depressivos, fobias e transtornos de comportamento em geral (AJURIAGUERRA, citado por Santa Rosa, 1993:152) Além disso, a criança se depara com um outro ritmo cotidiano, vê-se afastada de quase tudo que lhe diz respeito, sentindo-se desconfortada diante de tal situação. É nesse contexto que entra o brincar como forma da criança lidar com esse sofrimento pelo qual está passando. E o desenho, também, é uma possível forma pela qual expressa vários sentimentos, emoções e experiências. Em 1908, Freud compara o jogo infantil com a criação poética, onde crianças criam um mundo de fantasia as quais levam muito a sério porque investem emoção, transformando o real, que causa desprazer em fonte de prazer, em uma realidade satisfatória. Em 1919, Freud relaciona o jogo à compulsão de repetição e à pulsão de morte, diferenciando-lhe e dando-lhe outro estatuto, considerando ainda o aparelho psíquico em termos do princípio do prazer e princípio da realidade. O brincar da criança é determinado por desejo. As crianças brincam porque desejam e não porque não sabem falar. 3 Ajuriaguerra, J. Manual de psiquiatria infantil. Barcelona, Toray-Masson, 1976, cap.xxiv.
4 É possível através do brincar e do desenhar, além de observar uma atividade lúdica, imaginativa e criativa, fazermos uma interpretação. Através do brinquedo e do desenho a criança internada representa simbolicamente fantasias, desejos, experiências, emoções, sensações, pensamentos, agressividades, sentimentos, sua estrutura, sua visão de mundo e o espaço de interação consigo mesmo e com os outros. O brincar é uma forma de linguagem que a criança usa para compreender e interagir consigo, com o outro, com o mundo, e de modo similar, o desenho também pode ser uma expressão da subjetividade infantil. Através de desenhos a criança expressa seus sentimentos, suas angústias, sua agressividade. O adulto substitui o brincar pelo devaneio, como afirma FREUD. O brincar é substituído pela fantasia. O fato dos adultos não brincarem não quer dizer que renunciaram, apenas trocaram uma coisa por outra. O brincar é considerado por Freud como uma das primeiras manifestações de fantasia. O brincar e o fantasiar da criança evidenciam essa idéia de Freud. (FREUD, 1976:110). Fica nítida esta forma de expressão através dos desenhos quando uma criança fala sobre seus desenhos, o que pode ser exemplificado com uma experiência de estágio com uma criança que esteve internada no Hospital Militar de Minas Gerais. Pedro, uma criança de 09 anos, traz no desenho sua relação com a castração. Ele faz um desenho, onde coloca sua família, conforme abaixo: A estagiária pergunta-lhe sobre seu desenho e Pedro responde essa é minha mãe, esse sou eu e esse é meu pai.
5 Assim de acordo com o desenho e com sua fala, a criança parece expressar o lugar dos mesmos: ele ao centro, a mãe ao seu lado e depois o pai. Pedro ainda está colado na mãe, está difícil para ele lidar com a entrada do terceiro, função paterna. Supõe-se que ele ainda insiste na ilusão de ser objeto de desejo da mãe. Apesar de aparecer no desenho suas duas irmãs ao lado dele, o mesmo não se refere a elas quando solicitado a falar sobre o desenho. Nota-se também que ele percebe diferenças sexuais, diferenciando-os através dos cabelos. Assim a situação triangular citada em seu discurso fica mais clara ainda, na forma como esta aparece na vida dessa criança. Sabe-se que a presença do pai ou de um terceiro é necessária para que a criança afaste-se da relação mãe-filho para que o mesmo consiga dar conta do desejo da mãe enquanto mulher. A criança precisa destituir-se desse lugar e para isso a mãe precisa apresentar o pai. Este desenho é uma cadeia associativa feita por Pedro do que provavelmente está sendo experienciado por ele. É uma representação da relação com seus pais. O pai precisa encarnar a Lei para que a criança através desse trauma possa construir seus traços identificatórios. MELMAN, referindo-se a que o pai deve essencialmente transmitir a um filho, afirma: O bem maior que posso dar a minha criança é de ter acesso à falta inscrita no Outro, quer dizer, ao real, pois é só este real que ele pode vir a habitar como sujeito e de onde pode vir a desejar. O maior presente que eu posso fazer à criança é transmitir este nada. (...) Isto só pode ser feito por um traumatismo(...) (MELMAN, 1992:79). O desenho sobre uma folha é o lugar e o tempo da passagem entre o dentro e o fora, podendo a mesma ser vista como aquele espaço em que objetos do mundo interno vão habitando e relacionando entre si. Através do desenho a criança expressa suas angústias que antes eram sem nome, sem imagem e vai fazendo emergir imagens, pensamentos visuais. O desenho também possui uma qualidade interativa quando, por exemplo, a criança desenha, quando olha, fala ou não dele, quando deixa o analista ver ou não o desenho.
6 Conclui-se que há um vínculo direto e imediato entre a criança, o brinquedo, o brincar e o desenhar. O brincar não é apenas um ato espontâneo que a criança faz de um determinado momento. Esse brincar traz a história de cada criança, revelando quais os efeitos da linguagem e da fala em cada sujeito, sob a forma de transferência, No brincar a criança revela seus conflitos, assim como no desenhar. O sentido de cada jogo, brincadeira, desenho vai depender de cada criança, de cada experiência por ela vivida. Deve-se considerar a realidade psíquica da criança e não a realidade concreta. Quando brincam elas não se situam apenas no momento presente, as crianças se situam também em sua história e posição subjetiva. Realidade psíquica é uma forma particular de existência, sendo constituída pelos desejos inconscientes e pelas fantasias a eles vinculadas, sendo o pano de fundo a sexualidade infantil. O brincar se apóia em objetos reais e expressa a realidade psíquica. Através do brincar a criança pode superar a situação traumática, pois quando falam, representam e simbolizam o que as perturbaram, elas nomeiam e conhecem as situações, as coisas, as idéias, as pessoas, levando sempre em consideração que a estrutura é singular. Mrech afirma que: Para Freud o brinquedo e o brincar são os melhores representantes psíquicos dos processos interiores da criança. Eles estão em significação, na busca do sentido dos atos da criança. (MRECH, 1999:144) No desenho, considera-se que a figuração utiliza deslocamento, condensações, mas escapa menos à censura podendo provocar dificuldades de entendimentos e erros de interpretação. Para a Psicanálise, a palavra da criança precisa ser resgatada e para a estagiária o desenho precisa ser escutado, sendo um possível meio de dar à criança o espaço da palavra. Não basta apenas o desenho, mas também como a criança constrói os objetos interiormente e a forma como estas imagens vão tendo formas através da linguagem gráfica e da fala, que precisa ser escutada pelo psicanalista.
7 REFERÊNCIAS CABAS, Antônio Godino. Curso e Discurso da Obra de J. Lacan. São Paulo: Marcos. 1982. FREUD, Sigmund. Gradiva de Jensen escritores criativos e devaneio. Rio de Janeiro: Imago, 1976 110p. MELMAN, Charles. Sobre a educação das crianças. In: Cadernos da APPOA: Psicanálise e educação. Porto Alegre, Associação Psicanalítica de Porto Alegre. 1992.p.79. MRECH, Leny Magalhães. Psicanálise e educação: novos operadores de leitura. São Paulo: Pioneira, 1999.144p. ISBN 8522101779. ROSA, Eliza Santa. QUANDO BRINCAR É DIZER: a experiência psicanalítica na Infância. Dumara, 1993, 152p. WAJSKOP, Gisela. Uma perspectiva sócio-cultural. In:. Brincar na Pré-Escola. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1997. Cap. 2, p.19-38. (Coleção questões da nossa época, 48).