Arte e Justiça - XXIV O Jazz e o Direito: improvisação e equidade O Jazz é um estilo de música cuja origem remonta ao final do século XIX e início do século XX, em Nova Orleães, nos Estados Unidos da América. Durante este período, milhares de escravos originários do continente africano foram trazidos para os Estados Unidos, para trabalhar em plantações e caminhos de ferro e, com eles, vieram alguns dos elementos que influenciaram a criação desta manifestação artístico-musical. Enquanto trabalhavam, os escravos negros entoavam os seus cânticos, até mesmo sem instrumentos musicais, para expressar ou libertar os seus sentimentos. Esta prática foi-se difundindo, tendo sido até incentivada por alguns dos seus patrões, os colonos americanos, e evoluindo para diversos tipos musicais, entre os quais o Jazz.
Como manifestação musical, o Jazz combina diferentes origens, tradições, sons e instrumentos musicais, nomeadamente da música religiosa e tribal africana, mas também de influência europeia, quer dos instrumentos de sopro, quer dos de cordas, de percussão, etc. É composto por elementos muito variados, sendo um estilo difícil de definir. Enquanto estilo musical, durante o decorrer do século XX, o Jazz sofreu variadas mudanças, mas manteve as suas características originais. A principal característica deste género musical é a improvisação. Os músicos de Jazz não tocam as partituras de forma rígida e estruturada, baseando-se antes na livre execução e na criativa interpretação. A improvisação no Jazz trata-se de tocar sobre a composição. Tendo como apoio a pauta, que não reproduzem fielmente, os músicos alteram os ritmos, suprimindo ou acrescentando harmonias e melodias, sons e percussões. Reinventam a canção ou produto musical, de acordo com a forma como sentem as notas musicais e o sentimento ou a tonalidade que pretendem dar à execução. Os intérpretes não se limitam a tocar as notas musicais, fazem-no tendo em conta a forma como sentem a música e o que esta lhe desperta, a sua experiência e a experiência de quem ouve. Tal como as pautas ou as partituras, as normas jurídicas e as leis são aparentemente, rígidas e inflexíveis, parecendo abstrair-se de algumas circunstâncias que as rodeiam e que não são por elas consideradas relevantes. No entanto, a equidade surge como um critério de decisão que permite adequar e moldar a Justiça ao caso concreto, atendendo às particularidades de cada um.
De acordo com o artigo 4º do Código Civil, é reconhecido valor à equidade, embora não seja reconhecida como fonte de direito, o que significa que não cria ou revela normas jurídicas, não gerando precedente para outros casos. O legislador permite o recurso a esta Justiça no caso concreto se a lei assim o determinar; caso haja acordo das partes, podendo estas dispor da relação jurídica em causa, isto é, tratando-se de relações disponíveis, ou se o recurso à equidade tiver sido convencionado previamente, não havendo norma imperativa em contrário.
Dentro destes limites, a equidade pode funcionar como método de integração de lacunas; como critério de correção da lei, ou mesmo como critério de decisão, afastando as normas legais aplicáveis. A equidade pode ainda surgir enquanto complemento de uma regra legal precisa. Por exemplo, o artigo 1407º, n2º do Código Civil, relativamente à administração da coisa comum pelos comproprietários, estabelece que, não sendo possível formar a maioria legal, qualquer dos consortes poderá recorrer a juízo, sendo que o tribunal decidirá segundo um juízo de equidade. A equidade complementar tem também intervenção enquanto quantificador, permitindo fixar uma indemnização devida, um preço justo, uma compensação adequada e até a medida de uma sanção. Nestes casos, a lei apenas prevê o efeito jurídico em abstracto, mas não contém o seu desenvolvimento individual e execução concreto. Cabe, assim, ao juiz, mediante a cuidada e individualizada ponderação das circunstâncias do caso, determinar o valor, o quantum ou a medida adequada.
Apesar de a equidade permitir solucionar litígios, a maioria da doutrina considera que não constitui uma fonte de direito, ou seja, não se trata de um modo de formação e de revelação de regras jurídicas, sendo apenas um critério formal de decisão. A equidade não implica a formação de regras, pois não tem um intuito generalizador, não sendo aplicável noutros casos, mas apenas no caso concreto para o qual está a ser utilizada. A improvisação e a equidade, à primeira vista, nada têm em comum. Uma análise mais detalhada permite encontrar semelhanças. Em ambos os casos, os respetivos intérpretes parecem estar restringidos pelo conteúdo das partituras e das normas legais, respectivamente. No entanto, estes mecanismos permitem introduzir tanto no Jazz como no Direito alguma adaptabilidade, flexibilidade e contacto com as circunstâncias concretas que rodeiam a situação em causa numa proximidade maior com o destinatário.
Beatriz Lopes da Silva