SISCAR, Marcos. Manual de flutuação para amadores. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.

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Transcrição:

Resenha aa

Aletria, Belo Horizonte, v.26, n.1, p. 217-220, 2016 SISCAR, Marcos. Manual de flutuação para amadores. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015. Eduardo Horta Nassif Veras Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo / Brasil eduardohnveras@gmail.com Recebido em 3 de março de 2016. Aprovado em 5 de maio de 2016. Manual de flutuação para amadores é um livro sobre o chão, o chão do real, o chão da poesia. Mais do que isso, é um livro sobre o desejo de pouso e colonização poética da terra, do mundo sublunar. É um livro sobre a tentativa de apreensão daquilo que sempre nos escapa: a experiência imediata, que o poeta representa pela imagem geográficopsicológica do interior paradoxalmente onipresente e inapreensível: O chão é o interior sem nome ao qual pertencemos [...] o chão está em toda parte e não nos pertence ( Turismo interno, p. 45) Esse desejo de colonização de um espaço sempre adiado utopia? está na base da tensão que caracteriza a poética do autor e retorna com força nesse último livro. Essa tensão pode ser explicada, de um lado, pelo desejo insatisfeito de superação do hiato que nos separa do chão, da distância ou diferença que nos afasta, enquanto seres de linguagem, da cegueira das coisas ( Corrente, p. 59), e, de outro, pela consciência de que somos bússolas birutas ( Não se esqueça de onde veio, p. 13), de que não partilhamos da estabilidade da matéria inerte, de que nosso estado natural, portanto, é a flutuação: eissn: 2317-2096 DOI: 10.17851/2317-2096.26.1.217-220

218 Aletria, Belo Horizonte, v.26, n.1, p. 217-220, 2016 até segunda ordem tudo flutua no vazio como um planeta uma bexiga de gás uma máquina do mundo ( Do empuxo, p. 16) Daí a necessidade de um manual que nos ensine a estabilidade mínima necessária para um voo claro ( Não se esqueça de onde veio, p. 13). Leitor destacado de Baudelaire autor citado e revisitado diversas vezes no livro, pode-se dizer que Siscar propõe uma espécie de lição ao Albatroz, príncipe das nuvens inadaptado à marcha em terra firme. Essa lição consiste no reconhecimento da condição volátil e distante do poeta e no domínio de uma técnica que lhe permita fazer aquilo que não faz parte de seus atributos essenciais: voar baixo. Siscar nos mostra que a poesia (a linguagem) e o poeta (o homem) estão sempre distantes do chão do real ou do lado de fora, para retornar ao campo semântico do interior : a poesia é uma cadeira que se coloca do lado de fora num dia de sol o poeta está do lado de fora e encarquilha sem protetor solar ( O dia brilha, p. 17) Como em Interior via satélite, livro de 2010 no qual se destaca o interesse do poeta por instrumentos ópticos capazes de abrandar distâncias cósmicas, nesse Manual de flutuação para amadores, Siscar também insiste na necessidade de domínio de uma técnica para a representação de tudo o que é distante. A diferença, contudo, está no fato de que, agora, os objetos de interesse do poeta não flutuam no espaço sideral, mas repousam mais frequentemente na grama do jardim. Nesse sentido, é interessante observar que a distância entre o poeta e o chão, ou entre as palavras e as coisas, não se mede em quilômetros, pois se apresenta muito mais como elemento definidor das relações entre o homem e o real. Entre o livro de 2010 e o de 2015 há, portanto, uma diferença de grau, um avanço no movimento de aproximação em zoom na direção da terra firme, como quem aprofunda o mergulho visual no nosso planeta ou como quem sobrevoa, não mais a bordo da Apolo 13

Aletria, Belo Horizonte, v.26, n.1, p. 217-220, 2016 219 a terra azul por inteiro, 1 mas como um amador que flutua baixo como uma bexiga de gás. O domínio dessa técnica de flutuação para amadores passa pelo exercício de uma distância controlada: qual é a distância certa da cidade? a altura certa para ver a cidade? de onde a cidade não seja apenas vista de onde não seja apenas memória de outra ou miragem pressentida meu desejo desta tarde é o da distância certa ( A distância consentida, p. 22) A distância controlada está associada à perspectiva, isto é, ao domínio quase matemático da distância certa, que permite ao poeta se aproximar do território do real. Se em Interior via satélite o domínio da perspectiva se dava principalmente pela telescopia, ou seja, pelo manuseio de aparelhos capazes de estabelecer uma conexão com o real perscrutado das alturas, em Manual de flutuação para amadores, a técnica está mais próxima de saberes estreitamente relacionados ao universo da representação, como a escala geográfica e o ponto de fuga: Subir em árvore vem da surpresa de mudar de escala ( História da gravidade, p. 19) de um lado a cidade inteira eclipsada do outro um infinito de vários verdes azuis e brancos sobrepostos em camadas de sublime um campo aberto à flutuação ( Ponto de fuga, p. 26) A proximidade com o chão se expressa, na obra, pelas diversas referências ao universo da jardinagem e da botânica. A terra é vista como o espaço que o poeta revolve à buscas de epifanias ( a terra é boa mas os feijões não brotam mais, p. 38). É possível dizer que Manual de flutuação para amadores coloca em cena um poeta do chão, imagem que se desdobra, por exemplo, nas figuras do jardineiro, como em O jardineiro noturno (p. 35) e Pensador cortando grama (p. 36), e do 1 SISCAR. Interior via satélite, p. 19.

220 Aletria, Belo Horizonte, v.26, n.1, p. 217-220, 2016 chiffonnier baudelairiano, como em Do interesse do lixo (p. 40) e Lixo cuidadosamente escolhido (p. 42). Ao revolver a terra, o poeta entra em contato, ao mesmo tempo, com o tesouro do real e com os limites da linguagem e da própria existência: Quando eu morrer quero que seja nos seus braços meu amor. Não hei de guiá-lo pela mão. Sairei dos ventos das correntes e entrarei no chão ( Pietà, p. 9, grifo meu). O chão é o espaço ambíguo que o poeta deseja colonizar, mas no qual corre o risco de se diluir: Quero derramar-me na terra que sulcamos juntos plantar-me a pique na crosta instável sujeita a tectonismos e invasões ( Pietà, p. 9). Entre a epifania e a morte, Siscar está à procura do tempo-espaço exato em que a poesia é possível. Reconhecendo, ao mesmo tempo, que só a proximidade nos eletriza / e muito recuo nos silencia ( O consentimento e as maritacas, p. 80) e que o túmulo está em toda parte na terra ( O túmulo está em toda parte, p. 63), Manual de flutuação para amadores é, na verdade, um mapa do tesouro da poesia, uma celebração humanista dessa arte que busca colonizar o real, sem, contudo, se perder nele. Um verdadeiro elogio ao sentido em tempos de barbárie. Referências SISCAR, Marcos. Interior via satélite. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010. SISCAR, Marcos. Manual de flutuação para amadores. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.