Dep. de Geografia - FFLCH-USP.

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Transcrição:

ARTIGOS O centro de São Paulo: um trabalho de campo no ENG Glória da Anunciação Alves 1 Nos primeiros Congressos da AGB (Associação dos Geógrafos Brasileiros), o estudo da localidade, com a realização de palestras e excursões, fazia parte das atividades propostas e, em geral, resultavam em parte da publicação do então Boletim Geográfico, que posteriormente seria nomeado Boletim Paulista de Geografia (BPG). No XV ENG (Encontro Nacional de Geógrafos) 2 coube, ao final de semana (sábado e ou domingo), a realização de vários trabalhos de campo que visaram permitir aos participantes a possibilidade do debate de diversos temas (questão agrária, urbana, ambiental, regional, da geografia do turismo, entre outras) a partir de saídas de campo sob a orientação de pesquisadores que, com a atividade, buscavam realizar a observação, a indagação (levantamento de questões) e o debate, ainda que inicial, e, em alguns casos, levar ao estabelecimento de relações, a partir dos fenômenos analisados, com espaços existentes em outras áreas, que talvez já indicassem a existência de processos semelhantes mesmo que com intensidades e dinâmicas próprias. 1 Dep. de Geografia - FFLCH-USP. E-mail: gaalves@usp.br. 2 Realizado na cidade de São Paulo de 20 a 26 de julho de 2008, teve como tema O espaço não pára: por uma AGB em movimento. 75

Glória da Anunciação Alves Ainda que fundamental, o trabalho de campo, quando da realização de uma pesquisa, faz parte de uma metodologia de trabalho, mas, como já afirmou Lacoste (2006: 90), trata-se de uma prática indispensável mas não suficiente, já que ainda que muitos dados sejam levantados e observações sejam feitas, é necessário e fundamental, analisá-los sob uma perspectiva teórica. No estudo em tela, o trabalho de campo 3 realizado no Centro Histórico da cidade de São Paulo buscava levantar a discussão sobre os processos de requalificação e revalorização das áreas centrais que se apresentam não apenas como processos de escala local, mas também em escala mundial, como parte de uma estratégia de refuncionalização das áreas centrais das cidades (em especial de seus centros históricos) em que, mundialmente, há a tentativa de reincorporação produtiva por meio de novas atividades como o turismo de cidades e, dependendo da hierarquia (tanto em escala nacional, como regional e mundial) de sua recentralização de atividades, em especial, ligadas ao setor terciário avançado. A realização desse objetivo pressupôs a elaboração de um caderno de campo com o mapa da área a ser percorrida e discutida, bem como da indicação de uma bibliografia de apoio para posterior aprofundamento da questão, caso fosse de interesse dos participantes. Embora houvesse o roteiro previamente definido, o trabalho de campo possibilita o surgimento do imprevisto, que no caso, acabou por permitir a exploração de espaços que inicialmente não faziam parte da proposta inicial, ainda que efetivamente estivessem relacionados à questão central a ser explorada pela atividade. Inicialmente para por em relevo o debate sobre a requalificação das áreas centrais, a área a ser percorrida e analisada era a que na carta 1 aparece como núcleo do centro. 3 Participaram desse trabalho intitulado o centro da cidade e as transformações para sua revalorização, sob minha orientação, 30 participantes do XV ENG, sendo que 90% não eram do estado de São Paulo. 76

BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 91, p. 75-88, 2011 Nessa área, o roteiro inicial partia das escadarias do Theatro Municipal, localizado na Barão de Itapetininga, ao final do Viaduto do Chá, em frente ao antigo Mappin 4, e na parte superior da praça Ramos de Azevedo, e, a partir daí seguiria o seguinte roteiro: Barão de Itapetininga, av. Ipiranga, praça da República, edifício Copan, na av. Ipiranga, av. São Luis, Biblioteca Municipal Mário de Andrade, shopping Light, praça do Patriarca, galeria Prestes Maia, Faculdade de Direito do Largo São Francisco, catedral da Sé, praça da Sé, Pátio do Colégio, Bolsa de Valores de São Paulo, largo do São Bento, Vale do Anhangabaú, rua 25 de Março, terminando no Mercado Municipal. Em cada um dos pontos buscava-se observar a paisagem e com base na pesquisa feita sobre a área, discutir os processos de revalorização desse espaço e as implicações do mesmo, principalmente com relação à minha tese, de que se tratava de uma tentativa de higienização social, de modo a criar a imagem positiva do espaço principalmente para novos investimentos privados na área. A área central é o local onde se pode encontrar o que não se procura graças às inúmeras possibilidades dadas. No caso, a presença de um grupo com mais de trinta pessoas chamava a atenção num sábado pela manhã e logo fomos abordados pela senhora Rosa Corvino 5 que, querendo saber do que se tratava, nos convidou, se assim o quiséssemos, a uma visita monitorada ao Theatro Municipal que ocorreria às 10 horas da manhã. Como a maior parte dos integrantes do trabalho de campo não era da cidade de São Paulo, o grupo mostrou-se ávido pela possibilidade. Desta forma o roteiro foi rearranjado para que isso fosse possível. De um lado iríamos andar mais rápido e de outro ampliaríamos o tempo de duração do trabalho de campo. 4 Atual Casas Bahia. 5 A senhora Rosa Corvino nasceu em 1926 e viveu no Theatro Municipal até 1952. Seu avô e na sequência seu pai foram zeladores do Theatro Municipal e ali vivia com a família. Realizava voluntariamente as visitas monitoradas aos sábados, visitas essas que foram suspensas em 2009 sob a alegação de riscos frente às obras de restauro. 77

Glória da Anunciação Alves A observação da paisagem era o ponto inicial para a realização do trabalho de campo. A análise da paisagem possibilita o registro das formas espaciais, construídas socialmente, num dado momento histórico, que revela, segundo Carlos (1992), a dimensão do aparente. Ainda que importante à realização da pesquisa, a análise da paisagem é um dos momentos do estudo, sendo fundamental ir para além daquilo que se apresenta como um instantâneo, buscando decifrar os processos que constituíram e ou constituem a produção do espaço analisado e que tem na paisagem a representação do que é aparente. Carta 1 - O centro da cidade de São Paulo. 78

BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 91, p. 75-88, 2011 Segundo Lacoste (2003:148-149), refletir sobre as paisagens e sobre a noção de paisagem não consiste apenas em compreender melhor o que se passa e como se passa, mas consiste também em sugerir meios para que isso se passe de forma diferente... É necessário um esforço para ajudar o maior número de cidadãos a saber pensar o espaço, ainda mais o espaço onde eles vivem, para saberem dizer mais claramente o que eles querem. Assim a observação da paisagem, e sua posterior análise, se colocam como necessárias, como passo inicial para a compreensão da produção espacial e foi sob essa perspectiva que iniciamos o trabalho. Em uma observação inicial daquele fragmento espacial que estávamos analisando, o centro tradicional da cidade de São Paulo, algumas palavras surgem enquanto caracterização daquele espaço: monumentalidade, verticalização, movimento, velocidade, concentração, fluxo de pessoas e veículos. Mas o que estaria por traz desse movimento? Qual o processo de constituição desse espaço? Qual a lógica de sua produção? Desde o século XIX (ainda durante o II Império), com a criação da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, como nos mostra AZEVEDO (1961), a cidade de São Paulo começa a obter ares cosmopolitas, já que a centralidade educativa propiciada pela existência da Faculdade de Direito promovia a transformação do espaço da área central: moradias estudantis, bares, prostíbulos, livrarias e lojas comerciais surgem e proliferam para atender as necessidades dos jovens estudantes de Direito que vêm de todo o país. Tratava-se de uma centralidade educacional que caracterizava a cidade dos estudantes do século XIX. O crescimento da cidade é dado principalmente em função da capital advindo do café, mas a chamada monumentalidade do centro tem vez a partir dos anos 30, já com a expansão do capital 79

Glória da Anunciação Alves industrial, tendo seu auge nos anos 50, com a reformulação espacial da área central a partir das reformas de Prestes Maia. É no trabalho de Nice L. Müller (1958) que temos registrado pela primeira vez nos trabalhos geográficos brasileiros 6 a expressão centro da cidade para designar o estudo de uma área específica que, até então e ainda hoje para muitos dos seus habitantes, era denominada por cidade. A autora na época destacava a monumentalidade de São Paulo, sua verticalização, chegando a afirmar que São Paulo parecia uma cidade norteamericana, a partir de seu projeto de modernização. Vale destacar que o trabalho de Müller foi pautado em uma pesquisa de campo na qual os alunos do curso de Geografia da época saíram a campo para coletar dados que, depois de analisados, possibilitaram a autora à caracterização do chamado coração da cidade. A autora, preocupada em designar o que era o centro e quais suas funções 7, delimitou uma área a qual chamava de centro propriamente dito e que correspondia, ao que muitos denominam por núcleo antigo (área do triângulo histórico) e núcleo novo (da rua Barão de Itapetininga à praça da República). Esse centro coração da cidade era um local que concentrava as mais diversas atividades, era multifuncional, tendo como destaque as atividades mais raras ou sofisticadas que só nesse espaço da cidade podiam ser encontradas. Era esse atributo que conferia ao lugar a característica de ser único. Aí se concentravam os serviços e instituições públicas dos âmbitos municipal, estadual e 6 Após Müller temos em 1959 o trabalho de Milton Santos intitulado O centro da cidade de Salvador, que introduz a importância do conteúdo socioeconômico. 7 Helena K. Cordeiro, em 1980, publica seu trabalho de pesquisa realizado nos anos 70 em que, agora pautada em levantamentos estatísticos obtidos de órgãos como IBGE e entidades comerciais, e não mais com trabalho de campo nos moldes feitos por Müller e seus alunos, revela o fenômeno do desdobramento da área central, com a importância e destaque para a região da avenida Paulista. 80

BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 91, p. 75-88, 2011 federal. Também se localizavam aí sedes e agências das instituições bancárias. O centro, nesse sentido, era o lugar do trabalho, da cultura, do lazer, da seguridade, dos transportes, da resolução de problemas burocráticos que afligiam a vida da população. Apesar disso o centro não era, nas palavras de Müller (1958), o lugar da moradia, ou pelo menos da moradia para boa parte da população trabalhadora da época. O centro, em sua caracterização por sua função, não possuía esse atributo. Essa função (moradia) havia se deslocado, ainda segundo a autora, para o que ela denominou como áreas periféricas ao centro (ou seu entorno) e, por último, também estava presente nas zonas de transição. Alguns dos elementos presentes nos anos 50 dessa caracterização do espaço central da cidade ainda podem ser vistos na paisagem, mas esta já não é mais a mesma de quando da realização do trabalho sobre a cidade de São Paulo, quando das comemorações de seu quarto centenário. O que mudou? Quais os processos que levaram a isso? Que elementos hoje caracterizam essa paisagem? Monumentalidade, verticalidade, centralidade (ainda que não mais única), multifuncionalidade e concentração populacional ainda são algumas das características dessa área, mas alguns prédios aparecem como não preservados, alguns vazios, outros emparedados 8, indicando um processo de desvalorização da área, processo esse que é resultante daquilo que Lefebvre chama de imposão-explosão da cidade, ou seja, a centralidade presente nesse 8 O emparedamento é o fechamento do andar inferior e do primeiro andar com blocos e cimentos na tentativa de impedir a ocupação dos mesmos por populações (organizadas ou não) em situação de rua. O emparedamento de edifícios tem sido uma prática frequente no centro de São Paulo. Ao lado do prédio da Caixa Econômica Federal da praça da Sé, há um edifício no qual a entrada do prédio assim como o primeiro andar foram fechados com tijolo e cimento na tentativa de impedir as ocupações. Esse processo foi discutido em lócus já que os prédios aqui citados foram vistos por uma das laterais do Pátio do Colégio que fez parte do trajeto percorrido. Esse fenômeno não é exclusivo da cidade paulistana. Em Montevidéu, na área central e portuária, esse processo também está presente. 81

Glória da Anunciação Alves centro é tamanha que, para se desenvolver, precisa se expandir e nessa expansão temos um processo de desvalorização/valorização de áreas com o surgimento de outras centralidades na cidade que competem e se articulam no processo de reprodução do capital. Ao observarem algumas das áreas propostas no trabalho de campo se pode observar a modernidade de uma época, registrada, por exemplo, pela verticalidade do centro simbolicamente aqui destacada por alguns edifícios como: o Copan, o Martineli, o Banespinha 9, o Itália, bem como símbolos do poder (econômico) como a Bolsa de Valores, Bolsa de Mercadorias e Futuro, além das sedes 10 de muitos bancos nacionais e estrangeiros. Com relação ao patrimônio edificado e que ainda encontrase preservado, esse faz parte, simultaneamente, do processo de conservação/mudança desse espaço. Conservação pois a paisagem aparentemente não modificada (e/ou recuperada/ preservada) serve para o desenvolvimento da atividade de turismo de cidades, ou seja, que transforma a história cristalizada nas formas em mercadoria para o desenvolvimento do turismo, a partir da venda simbólica do patrimônio aí existente. Mudança quando, para garantir a preservação (das formas/do edificado) são realizadas e justificadas mudanças de função e de perfil dos que aí vivem, trabalham, têm atividade de lazer ou ócio, a partir de uma estratégia de apropriação e permanência no espaço. Isso pode ser observado pelos participantes do trabalho de campo em vários momentos em que, ora se preservavam também as funções, ora essas eram transformadas, mas que, em geral havia ao menos a tentativa de mudança dos que utilizavam os espaços. 9 Atualmente pertencente ao grupo Santander. 10 A cidade de São Paulo concentra mais de 50% das sedes bancárias em funcionamento no país. Se até os anos 70 a área central concentrava essas sedes, já nos anos 80 esse quadro havia se alterado e hoje temos que a área central concentra 12%, enquanto a região da av. Paulista, 33%, e o setor sudoeste (Berrini e Verbo Divino), 54%, reconfigurando a hierarquia dos centros na capital paulista. 82

BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 91, p. 75-88, 2011 Ao visitarem o edifício Copan visualizam um símbolo da modernidade pautado em Corbusier e projetado por Oscar Niemeyer, em que a forma 11 não possibilitava a distinção social, ainda que internamente isso pudesse ser registrado, só pela paisagem não é possível desvendar as transformações sociais por que passa o edifício. Uma série de ações está sendo realizada na tentativa de retirada de uma população que, por suas profissões e rendas, desvalorizem o lugar. Outro espaço visitado, o shopping Light, já se apresenta como um espaço cujas formas foram mantidas, mas a função mudou: o atual shopping foi, no passado, sede da empresa de eletricidade da cidade. Hoje transformado em shopping, tende a receber as pessoas na qualidade de consumidores. Até mesmo ir ao banheiro, localizado exclusivamente no alto do edifício junto à praça de alimentação, implica em pagamento: se não tiver consumido nada paga o equivalente a 50 centavos de real, se tiver consumido não paga nada pelo uso do banheiro. Outro lugar visitado, a catedral da Sé, continua a servir para a devoção das pessoas, mas já entra no roteiro de visitação turística da cidade. Ao se observar o espaço percebe-se a presença de homens de preto, ou seja, seguranças dentro da catedral. Do lado de fora, cercas aparentemente cercam um nada: trata-se de evitar que pessoas de rua durmam nos vãos agora protegidos pelas cercas. No Pátio do Colégio, segundo nossa história lugar da fundação da cidade, a princípio a observação do espaço mostrava um edifício recriado aos moldes do que se imaginava ser originalmente, já que desse período apenas uma parede de taipa ainda resta preservada. Durante nossos diálogos muitas vezes havia mencionado o fato da privatização dos espaços 11 Esse edifício contém 1160 apartamentos cujas metragens variam de 26 a 350 m 2, tendo como moradores desde empresários, como o dono da Livraria Cultura, a prostitutas e travestis, sendo que cada grupo se concentra em blocos específicos, a depender do tamanho do apartamento. 83

Glória da Anunciação Alves públicos e foi nesse lugar que vivenciaram esse processo. Alguns que necessitaram ir ao banheiro tiveram que pagar pelo seu uso. Depois de indicar, a partir desse lugar, o Mercado Municipal, o Palácio das Indústrias, o edifício São Vito, a rua 25 de março, na saída, funcionários do café existente nesse espaço queriam que utilizássemos outra saída para não atrapalhar o almoço ou o café dos que estavam sentados nas mesas em frente à parede de taipa conservada. Frente ao constrangimento provocado discutimos alegando que se tratava de um espaço público e que iríamos sim nele passar. Já do lado de fora a observação de um dos que estavam no trabalho de campo sintetizou o fato: entendemos na pele o que significa privatização do espaço público. Saindo daí fomos para a rua Boa Vista que concentra parte das sedes bancárias instaladas no centro, e depois fomos ver onde ficava a sede da Bolsa de Valores e a Bolsa de Mercadorias e Futuros. Novamente o encontrar de situações que não estavam inicialmente previstas levou a uma nova alteração da proposta inicial: o grupo foi convidado a conhecer a Bolsa de Valores que tem, aos finais de semana, um projeto para que interessados a conheçam. Por unanimidade todos quiseram conhecer a bolsa e novamente outra lição: tudo, inclusive pessoas, relações e projetos de vida foram tratados como simples mercadorias. Dali, percorremos a ladeira Porto Geral onde, ao final dela, foi mostrado o que era o movimento da 25 de março, a qual atravessamos para nos dirigir ao Mercado Municipal. O chegar ao entorno do mercado possibilitou mostrar o que havíamos avistado ao longe e debater o processo de transformação da área a partir da requalificação do Mercado Municipal e das mudanças propostas para a área onde estava instalado o edifício São Vito e o edifício Mercúrio. Os dois edifícios citados se localizam na quadra em frente ao Mercado Municipal de São Paulo, que já passou por um processo de requalificação urbana e que hoje, além de oferecer aos consumidores mercadorias que faziam parte da rotina de trocas, é também ponto turístico da cidade. Reformado, teve 84

BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 91, p. 75-88, 2011 suas estruturas recuperadas assim como seus vitrais. Mas as mudanças foram além da recuperação do edifício considerado patrimônio arquitetônico da cidade: houve uma mudança no tipo de pessoa que o frequenta: depois da requalificação e da chegada dos turistas, os preços aumentaram, afugentando parte dos que antes por aí transitavam para fazer suas compras. No caso do São Vito, tratava-se de um prédio onde residia um grande número de pessoas 12 e famílias de baixa renda. O prédio tinha problemas estruturais e, durante a gestão da prefeita Marta Suplicy (PT - 2001-2004), com um plano diretor aprovado na Câmara dos Vereadores, no qual se estabeleciam nas áreas centrais áreas de interesse social, o São Vito acabou por ser desocupado com a promessa de que depois de requalificado parte das famílias voltaria para residir no prédio. Na época a prefeitura garantiu com subsídios recursos para que as famílias pudessem alugar casas, quartos de hotel etc, até que o edifício fosse recuperado estruturalmente. Não houve continuidade de governo e o prefeito eleito na época (José Serra - PSDB) parou com o processo, acabou com os subsídios e emparedou 13 a entrada do prédio para garantir a não acessibilidade e volta dos antigos moradores. Depois, pela imprensa, a sociedade paulista foi informada que, de acordo com laudos técnicos, não havia motivos para a manutenção, preservação e conservação desse prédio (do ponto de vista arquitetônico) e que ele seria implodido. Trata-se de garantir a transformação desse espaço e valorização do entorno do Mercado Municipal, dentro da estratégia de valorização da área central empreendida pelo Estado e iniciativa privada. Entretanto a estratégia não se realizou rapidamente, pois a implosão do prédio poderia abalar as estruturas do edifício 12 Segundo dados do Centro Vivo, os dois edifícios juntos abrigavam cerca de 800 famílias, com um total de 2,4 mil pessoas. 13 Já explicamos o termo na nota 8. 85

Glória da Anunciação Alves vizinho, o edifício Mercúrio, que possuía famílias morando e que poderiam oferecer resistência a um processo de esvaziamento do mesmo. Ainda que tendo resistido, com apoio do Centro Vivo, em fevereiro de 2009 o prédio foi desocupado por ordem judicial e uso de força policial, abrindo a possibilidade de efetiva transformação espacial, corroborando com a efetivação do projeto Nova Luz, que visa requalificar a área, procurando retirar a população que limita o processo de modernização e embelezamento da área em questão, ao mesmo tempo em que busca disciplinar os possíveis usos desse espaço, controlando-o. O interessante foi a estratégia para se conseguir o apoio por parte da sociedade: primeiro mostra-se e reforça-se que a área está degradada, perigosa, e que não há outra solução para que ela possa ser requalificada, revitalizada, exigindo-se a destruição das formas pretéritas para que as novas, modernas, possam revalorizar econômica e socialmente a área em questão. Queremos mostrar com os casos do edifício São Vito e do edifício Mercúrio citados que, embora não se tratem de edifícios industriais, que tiveram suas áreas desvalorizadas por razão da própria transformação produtiva (passagem da produção fordista para a de acumulação flexível) já que se tratam de edifícios residenciais, a estratégia foi a mesma realizada nas áreas industriais centrais da cidade e da região metropolitana: a partir da desvalorização monetária e social, a única saída apontada e sua destruição e construção do novo, moderno, qualificado no lugar. O trabalho de campo teve sua finalização no Mercado Municipal, lugar onde os participantes puderam verificar o processo de consumo pelo turismo pelo qual passa o mercado, lugar onde um sanduíche de mortadela 14 se tornou artigo de luxo e de consumo midiático. 14 Sanduíche de mortadela é considerado um sanduíche comum encontrado em qualquer bar da cidade por preços módicos. No Mercado Municipal é um sanduíche caro que, entretanto, aparece como pitoresco nas revistas de lazer da cidade. 86

BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 91, p. 75-88, 2011 Ao final, na breve avaliação da atividade realizada com os geógrafos que participavam desse campo do XV ENG, discutiu-se a necessidade desse tipo de atividade nos encontros de geógrafos de modo a proporcionar, mesmo que em breves momentos, situações para reflexão e análise inicial, sendo que para o aprofundamento e o desvelamento das questões constatou-se a necessidade de ir para além das aparências, por meio de pesquisas mais aprofundadas de campo e bibliográficas. REFERÊNCIAS ALVES, G. da A. O uso do centro da cidade de São Paulo e sua possibilidade de apropriação. São Paulo: FFLCH, 1999 (tese de doutorado). AZEVEDO, A. (org.). A cidade de São Paulo. São Paulo: AGB, 1958. AZEVEDO, A. São Paulo: de Vila quinhentista à metrópole regional. BPG (Boletim Paulista de Geografia), 39, São Paulo: AGB, 1961. CORDEIRO, H. K. O centro da metrópole paulista, expansão recente. São Paulo: IG/USP, 1980. CARLOS, Ana Fani Alessandri. Espaço-tempo na metrópole. São Paulo: Contexto, 2001.. A cidade. São Paulo: Contexto, 1992. KAISER, Bernard. O geógrafo e a pesquisa de campo. In BPG 84. São Paulo: AGB, 2006, p. 93-104. LACOSTE, Yves. A pesquisa e o trabalho de campo: um problema político para os pesquisadores, estudantes e cidadãos. In BPG 84. São Paulo: AGB, 2006, p. 77-92. LACOSTE, Yves. O que é uma bela paisagem. In BPG 79. São Paulo: AGB, 2003, p. 115-150. LEFEBVRE, Henri. La production de l espace. Paris: ed. Anthropos, 1986. 87

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