O GÊNERO NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA: UMA ANÁLISE A PARTIR DO HANDEBOL E DO FUTSAL



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Transcrição:

O GÊNERO NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA: UMA ANÁLISE A PARTIR DO HANDEBOL E DO FUTSAL CEZAR, Fernanda Bianchini Rede Estadual de Ensino - Louveira/SP FERREIRA, Lílian Aparecida DEF/FC/UNESP Bauru/SP RESUMO De modo a garantir um ensino mais inclusivo, a questão do gênero precisa estar presente em todos os conteúdos desenvolvidos nas aulas de educação física. No caso do ensino dos esportes na escola, especificamente para as modalidades handebol e futsal, a tematização do gênero passa necessariamente por uma mudança metodológica, saindo do foco das habilidades motoras para uma metodologia centrada na autonomia, capacidade de comunicação, tomada de decisão, leitura de jogo e conhecimento do jogo. Neste sentido, o objetivo deste trabalho foi analisar a questão do gênero, de uma turma de 5º ano, durante as aulas de educação física nas quais foram desenvolvidos os conteúdos futsal e handebol. A abordagem metodológica foi a pesquisa-ação colaborativa, utilizando a observação como recurso para a coleta de dados (tanto filmagem quanto descrição em diário de campo). A questão do gênero foi evidenciada em todas as aulas e, com a metodologia empreendida, as meninas construíram uma ampliação dos seus processos participativos tanto no futsal quanto no handebol, contudo, os meninos ainda demarcaram um cenário revelador de uma tradição cultural de movimento mais rica que as meninas. Também foi percebido que, ao longo das aulas, que as meninas e os meninos passaram a ter uma relação mais amistosa. Estes dados nos permitem apontar que as experiências e vivências culturais de ambos, meninos e meninas, sobretudo na educação física precisam se aproximar da igualdade, dando condições para novas reconfigurações corporais e de movimento que, certamente, contribuirão significativamente para um novo olhar acerca da questão do gênero. Palavras-chave: Gênero, Educação Física, Ensino dos esportes, Handebol e Futsal. REVISÃO DE LITERATURA A infância, de modo geral, é permeada por brincadeiras, cantigas, brinquedos, desenhos animados, mimos e muita diversão, embora, quando se trata de especificidade, o modo como meninos e meninas vivem essa fase da vida é bem diferente. As meninas ganham bonecas, maquiagem, kits de cozinha e de escolinha, usam roupas delicadas, fazem atividades que não as fazem suar e nem sujar, são estimuladas a pintura, crescem cercadas de bons modos, zelo e caprichos. Ao contrário de todo esse contexto, via de regra, os meninos são submetidos a uma gama de brincadeiras de correr, saltar, subir, bater, arremessar e chutar, exemplo disso são os brinquedos como Livro 3 - p.001056

1 bola, armas, skate, carrinhos e outros, que incitam o movimento a todo o momento. (DAOLIO, 1996; VIANA, 2008). Estes dois exemplos de dinâmicas infantis, embora característico de um determinado grupo sociocultural, não podem ser padronizados como modelo de referência, o que caracteriza a categoria gênero como uma construção cultural, cenário de poder e de relacionamento, resultante do meio social no qual os indivíduos interagem. Esta perspectiva rejeita a idéia de que os homens e as mulheres agem de forma distinta apenas por razões biológicas, e considera todo o contexto que envolve as relações de gênero. Sob esta perspectiva que, de acordo com Goreti e Ferraz (2002), muitos autores tem se baseado, acreditando que gênero é entendido como a construção social que uma dada cultura estabelece ou elegeu em relação a homens e mulheres. Por se tratar de relações sociais, a família e a escola são os meios frequentemente apontados como influenciadores deste processo formativo. Embora outros cenários como a música, a arte, os filmes, a televisão, a tecnologia entre outros, apresentem uma parcela significativa de responsabilidade neste processo. A família aparece como representação do primeiro contato social, determinando assim as primeiras relações sociais do sujeito. Na escola, questões referentes ao corpo, gênero e sexualidade, comumente ganham espaços de discussão sendo reafirmadas ou construídas. Também é na escola, em espaços oficiais (sala de aula) e não oficiais (corredores e intervalos) que são vivenciadas aprendizagens que contribuem para a construção das relações sociais (WENETZ e STIGGER; 2006 ). Dentre os vários componentes curriculares da escola, a educação física, pelo trabalho com o corpo e o movimento, tematiza conhecimentos como, por exemplo, constituição física e estética corporal; adequações sexo-gênero dentro do contexto das atividades corporais e, geralmente, o trabalho com tais temáticas revelam fragilidades pedagógicas dos professores esboçando tanto uma falsa neutralidade quanto preconceitos e estereótipos. Souza e Altmann (1999) e Altmann (1998) colocam que nas aulas de educação física não se pode afirmar que as meninas são excluídas pela única questão do gênero, pois elas não são excluídas somente por serem meninas, mas também por serem fracas e pela pouca habilidade. Contudo, essa pouca habilidade ou pouca afinidade com práticas de jogos e esportes está atrelada ao cenário cultural que circunscreve o crescimento das meninas. Nos esportes, por exemplo, a mulher se manteve por muito tempo como Livro 3 - p.001057

2 perdedora, pois era denominada como um corpo frágil e delicado, apenas ficando com aqueles esportes que não permitiam contato, ou então aqueles esportes que representavam leveza e docilidade, como o voleibol, as danças e as ginásticas. Já os esportes de contato, esses sim eram para corpos vigorosos e fortes, aqueles corpos que biologicamente eram preparados para serem fortes e viris, ou seja, corpos masculinos. (SOUZA e ALTMANN; 1999). No estudo de Wenetz e Stigger (2006) foi observado, durante o recreio, o comportamento de meninos e meninas da 3ª série do ensino fundamental e pode-se verificar que as meninas são mais tranqüilas e quietas, ficam em pequenos grupos sentadas conversando, enquanto que meninos ficam correndo e brincando com bola nas quadras e espaços do recreio e mostram-se mais agressivos e violentos. Corroborando com esse estudo, Souza e Altmann (1999) também apontam que as quadras esportivas e espaços vazios nos momentos de intervalos são frequentados, quase que integralmente, por meninos, havendo um domínio do espaço pelo universo masculino. Essa visão de virilidade continua afastando as meninas das práticas esportivas, tanto nas escolas quanto em espaços de lazer. No trabalho de Fontes (2007) foi constatado que o futebol era o conteúdo predominante nas aulas de educação física e que os meninos se apropriavam da quadra, enquanto as meninas ocupavam locais periféricos. Atrelada a questão, já falada anteriormente, de subjugar os alunos por seu nível de habilidade motora e considerar o corpo somente como entidade biológica, a educação física precisa adotar uma nova postura que valorize as meninas, os gordinhos, os baixinhos, os mais lentos, com o compromisso de ensinar bem para todos, com suas diferenças e igualdades (DAOLIO; 1996). Para que essas diferenças sejam concebidas como diferença e não como inferioridade as oportunidades nas aulas de educação física precisam ser igualitárias, o que requer uma ação efetiva dos professores. Uma vez que os docentes podem problematizar questões de gênero, usando o próprio exemplo do futebol no Brasil, o porquê dele ser genuinamente praticado por meninos e não por meninas. Adaptar regras de jogos, esportes, lutas, danças e ginásticas com a intenção de dar chance para todos experimentar as diversas manifestações corporais e contribuir para uma relação mais amistosa entre meninos e meninas (SOUZA e ALTMANN, 1999). Livro 3 - p.001058

3 Neste sentido, a questão do gênero precisa estar presente em todos os conteúdos desenvolvidos nas aulas de educação física. No caso do ensino dos esportes na escola, especificamente o handebol e o futsal, objetos desta pesquisa, a tematização do gênero passa necessariamente por uma mudança metodológica, ou seja, é preciso sair do foco das habilidades motoras para uma metodologia centrada na autonomia, capacidade de comunicação, tomada de decisão e leitura de jogo. O aluno e a aluna se tornam o sujeito do próprio processo de aprendizagem, pois são desenvolvidas, junto com ele e ela, dinâmicas que valorizam: autonomia, criatividade, comunicação e cooperação (HILDEBRANDT; LAGING, 1986). A nossa expectativa com este enfoque pedagógico é possibilitar ao aluno e a aluna uma vivência mais lúdica, prazerosa e autônoma do jogo de handebol e futsal e que, principalmente, exista uma relação amistosa entre os meninos e meninas nas aulas de educação física, valorizando processos de debate e reconfiguração da questão do gênero. Diante dos apontamentos apresentados, o objetivo desse trabalho foi analisar a questão do gênero, de uma turma de 5º ano, durante as aulas de educação física nas quais foram desenvolvidos os conteúdos futsal e handebol. TRAJETÓRIA MÉTODOLÓGICA Tendo em conta o objetivo acima demarcado, a pesquisa qualitativa é a que mais contempla nossa abordagem investigativa. Este tipo de investigação se concentra no processo e não no produto, bem como no ambiente naturalístico e não laboratorial, envolve também as subjetividades dos sujeitos investigados, portanto não só os comportamentos observáveis, mas o que eles sentem e significam em seu contexto (BODGAN; BIKLEN, 1994). Dentre as várias possibilidades da abordagem qualitativa, a pesquisa-ação foi escolhida por sustentar a integração entre o sujeito e sua existência; entre os fatos e os valores; entre o pensamento e a ação; e entre pesquisador e pesquisado (FRANCO, 2005, p. 488). Considerando que a professora da turma e os alunos e alunas também fizeram parte, junto com a pesquisadora, da construção dos conteúdos e estratégias frente a intervenção realizada, o estudo assumiu um caráter de pesquisa-açãocolaborativa. Livro 3 - p.001059

4 As coletas de dados foram feitas através de observação sistemática das aulas (com filmagens e registro em um diário de campo). Tal programa, com duração de quatro meses (um semestre letivo), se efetivou com as seguintes atividades: jogo dos passes; pega-pega queima; queimada; pega-pega de duplas; jogos simplificados em situações (1x1, 3x2, 4x4); jogos de ataque e defesa; futsal e handebol adaptados; pique-bandeira; jogos reduzidos; futsal em silêncio; exercícios diversificados. Participou do estudo uma turma de 28 alunos (meninos e meninas) de um 5o. ano, com média de 10 a 11 anos de idade, de uma escola pública municipal de Bauru/SP, a professora de educação física da turma e a pesquisadora. Foram ministradas e planejadas, conjuntamente, 14 aulas ao longo deste tempo com o conteúdo handebol e futsal. Os termos de consentimento foram assinados pelos responsáveis pelos alunos e alunas e pela professora de educação física da turma, dando condições para que a pesquisa fosse realizada. A análise se deu a partir de uma intensa observação das filmagens e de leitura recorrente e minuciosa dos materiais coletados, articulando-os com o referencial teórico. Em um eixo de análise foram utilizadas as filmagens das aulas dos seguintes períodos: dias 02/03/2011 e 23/03/2011 filmagem diagnóstica dos jogos de handebol e do futsal respectivamente; dia 29/06 filmagem final dos jogos de handebol e futsal. As ações táticas de análises, considerando cada aluno, foram baseadas nos níveis de relação eu-bola; eu-bola-alvo; eu-bola-colega; eu-bola-adversário; eu-bola-equipe-adversário, tendo sido utilizadas como plano de fundo para a confecção do quadro de análise do jogo de handebol e de futsal (GARGANTA, 1992). Diante desta análise foram criados quadros de ações táticas organizadas e agrupadas com a ideia de atender as especificidades do grupo analisado, sendo assim criados três eixos (COSTA; GARGANTA; GRECO; MESQUITA, 2009): 1. ofensivas com bola: Busca pela zona de menos aglutinação- quando o jogador procura espaços mais vazios da quadra, com menos jogadores adversários; Finta com a bola procura enganar o adversário para criar uma situação de vantagem; Cria situações de definição procura chutar ou arremessar na baliza para conseguir o gol; Penetra com bola no campo adversário - Deslocamento do portador da bola que propicia redução de distância entre a bola e a baliza adversária. Livro 3 - p.001060

5 2. ofensivas sem bola: Cria linha de passe quando o jogador se coloca em uma linha de passe para mais uma opção de jogada; Cria superioridade ofensiva é quando o jogador cria um apoio para o portador da bola; Se organiza tendo em conta os demais companheiros - quando o jogador se coloca na opção mais adequada diante da posição dos demais da equipe. 3. defensivas: Contenção realização de oposição ao portador da bola; Oferecimento de apoio defensivo ao jogador que faz a contenção - servir de novo obstáculo ao portador da bola, caso esse passe pelo jogador de contenção; Igualdade ou superioridade numérica na relação de oposição ter sempre um jogador que garanta a marcação; Aumento da proteção da zona de maior risco Fazer a marcação entre a bola e a baliza. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS Durante toda a intervenção, as questões de gênero surgiam em todas as aulas, em maiores ou menores proporções, neste sentido, tanto a professora quanto a pesquisadora, utilizaram estas ocorrências para debater com os alunos e alunas, seja no inicio ou fim da aula. Os resultados mostraram que, assim como apresentado na literatura (SOUZA e ALTMANN, 1999; WENETZ E STIGGER, 2006; FONTES, 2007), os meninos têm mais domínio/intimidade da/com a quadra, bem como de objetos que estavam presentes nela (chutando latas ou papéis amassados), rapidamente se reuniam e começavam os chutes a gol, enquanto as meninas chegavam tranqüilas, sentavam na arquibancada, conversavam e esperavam a instrução da professora de educação física. Principalmente no início da intervenção, ao saberem que o conteúdo da aula seria o futsal, os meninos pulavam, se abraçavam, corriam alegres, porém quando o conteúdo era o handebol, eles reclamam e ficavam resistentes, pelo menos até as atividades começarem. Já com as meninas o contrário acontecia, as reclamações vinham quando o conteúdo era o futsal e a maioria gostava quando sabiam que teriam o handebol. Em várias atividades, as regras dos jogos e brincadeiras tinham que ser adaptadas para que houvesse a participação de todos, por exemplo, o futsal em duplas mistas, sendo que se um menino tivesse com a posse de bola, tinha que obrigatoriamente passar para a menina da outra dupla e depois ela passar para um Livro 3 - p.001061

6 menino e assim por diante. Pois se essa adaptação não fosse realizada, somente os meninos mais habilidosos jogavam, enquanto alguns poucos meninos e a maioria das meninas tinham uma participação passiva na atividade. Também houve jogos em que os próprios alunos e alunas, após debates com a professora e a pesquisadora, propuseram adaptações de regras que contribuíssem para a participação de todos. Isso foi feito na brincadeira da queimada, na qual as meninas reclamavam que os meninos não as deixavam dominar a bola para atacar. Diante deste problema diagnosticado e discutido, eles e elas sugeriram fazer uma queimada mista na qual as meninas tinham que queimar as meninas e os meninos tinham que queimar os meninos, assim todos participavam de forma ativa na brincadeira. Especificadamente no jogo de handebol e futsal, a metodologia empreendida nas aulas também contribuiu para que a participação das meninas fosse mais ativa, considerando a análise dos níveis de relações proposta por Garganta (1992). O quadro 1 mostra as ações táticas realizadas somente pelas meninas, nos momentos PRÉ e PÓS intervenção nos jogos de futsal e do handebol. FUTSAL HANDEBOL Meninas Meninas PRÉ/n=9 PÓS/n=8 PRÉ/n=9 PÓS/n=8 ofensivas com bola 4 5 bola 8 5 ofensivas sem ofensivas com ofensivas sem bola 10 13 defensivas 14 18 Total de ações no jogo 28 36 bola 13 31 defensivas 11 20 Total de ações no jogo 32 56 Quadro 1: Quadro dos números de ações táticas realizadas pelas meninas na pré filmagem e na pós filmagem do jogo de futsal e handebol. No caso do número de ações realizadas pelas meninas no momento PRÉ e PÓS, podemos destacar que houve um aumento das ações, exceto nas ações ofensivas com bola no handebol, indicando uma maior participação das meninas ao longo do semestre letivo. Tal participação se efetivou de forma ativa, explicitada pelo aumento de número de ações no jogo e isso se reflete diretamente na relação eu-bola, pois, com maior número de tempo e de vivências positivas com a bola no jogo a interação entre praticante e bola é aumentada. Parece ter havido, com isso, uma melhora na participação Livro 3 - p.001062

7 feminina no próprio jogo. Outro aspecto também melhorado trata da relação eu-bolaequipe-adversário, uma vez que as ações táticas passaram a ser mais integradas entre ataque e defesa, com o objetivo de solucionar problemas das situações do jogo. É válido ressaltar, contudo, que mesmo com esta ampliação da participação das meninas no jogo de futsal, o número total de ações manifestadas ainda foi muito baixo quando comparamos com o dos meninos. O número total de ações das meninas, no PÓS, foi de 36, já o dos meninos, foi de 134 ações, revelando que, apesar do avanço identificado na pesquisa, a participação feminina no jogo de futsal ainda é bem pequena quando comparada com a participação masculina. Auxiliando nesta compreensão, Souza e Altmann (1999) destacam que as quadras, pátios e espaços vazios das escolas ainda são, quase que integralmente, frequentados por meninos, resultando em uma dominação masculina, o que contribui com o afastamento das meninas desses espaços e consequentemente das práticas esportivas. O contexto cultural de meninos e meninas é permeado por condutas, estereótipos e representações do que é ser homem e mulher o que, comumente, leva à demarcação e separação das experiências masculinas e femininas no ambiente escolar (DAOLIO, 1996; VIANA, 2008). Estas demarcações têm contribuído, por exemplo, com a exclusão de meninas das práticas de jogos coletivos de invasão com a justificativa de que seus corpos não foram preparados biologicamente para enfrentar o contato característico destes tipos de modalidades esportivas. O Quadro 2 nos mostra os números de ações táticas realizadas por meninos no jogo de futsal e handebol, na filmagem diagnóstica (PRÉ) e na final (PÓS). FUTSAL HANDEBOL Meninos Meninos PRÉ/n= 8 PÓS/n= 10 PRÉ/n= 9 PÓS/n= 12 ofensivas com bola 35 26 ofensivas com 25 22 bola ofensivas sem bola 19 23 ofensivas sem 38 38 bola defensivas 54 85 24 43 defensivas Total de ações no jogo 108 134 Total de ações no jogo 87 103 Quadro 2: Quadro dos números de ações táticas realizadas pelos meninos na filmagem diagnóstica (PRÉ) e na final (PÓS) do jogo de futsal e handebol Livro 3 - p.001063

8 Com relação aos jogos de futsal e handebol dos meninos, é possível verificar que as ações com bola no futsal são maiores que as ações com bola no handebol, o que pode nos dar indicativos de que a cultura do atacante está mais presente no jogo de futsal, com a figura do goleador, embora as ações defensivas também tenham sido significativamente maiores. No quadro das ações táticas dos meninos, podemos notar que na fase pós houve uma diminuição das ações tanto para o futsal quanto para o handebol o que demarcou uma pequena abertura da participação das meninas neste cenário. Podemos dizer que ainda que este resultado não seja significativamente expressivo em termos da igualdade entre os gêneros, ele releva uma proposta metodológica que avança se comparada com o ensino que não tematiza a questão do gênero nas aulas de educação física. Com os resultados apresentados nos dois quadros, é importante destacar que as ações totais dos meninos, tanto para o jogo de handebol quanto para o jogo de futsal, foram expressivamente maiores que as ações totais das meninas para esses dois esportes, o que nos atenta para o fato de que não somente o futsal ou o futebol fazem parte de uma mobilização de experiências de movimento mais acentuada entre os meninos, mas o handebol também. Tais resultados nos alertam para a responsabilidade da educação física oportunizar para meninos e meninas, desde as séries iniciais, a experimentação de diferentes modos de se movimentar com bola, seja com a mão, com os pés, arremessando, chutando, rebatendo, enfim, é preciso reconstruir um cenário em que as condições sejam iguais, garantindo uma participação ativa e de modo satisfatório para todos. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A relação entre meninos e meninas nas aulas de educação física ainda é marcada por muitas questões que precisam ser discutidas com eles e elas, porém ao longo da intervenção verificamos que alguns processos foram reconstruídos, como por exemplo, a participação das meninas no futsal: no início da pesquisa era muito baixa, já no final ela passou a ser maior. Também ficou evidente que mesmo com o trabalho de intervenção de quatro meses, as ações táticas totais dos meninos no jogo de handebol e futsal eram muito maiores que as ações táticas totais das meninas. Este dado nos permite apontar que as experiências e vivências culturais de ambos, meninos e meninas, sobretudo na educação Livro 3 - p.001064

9 física precisam se aproximar da igualdade, dando condições para novas reconfigurações corporais e de movimento que, certamente, contribuirão significativamente para um novo olhar acerca da questão do gênero. Neste sentido, como sugere Ferreira (2005), é importante que o professor seja um sujeito ativo nesse processo, garantindo em suas aulas, oportunidades iguais para meninos e meninas, dando condições para o diálogo e a construção de novas formas de sentir, pensar e agir diante de um fenômeno ainda nutrido por um cenário de exclusão. REFERÊNCIAS ALTMANN, Helena. Rompendo fronteiras de gênero: Marias (e) homens na educação física. Dissertação de mestrado em educação. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1998. BODGAN, R. C. e BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994. COSTA, I.; GARGANTA, J.; GRECO, P.; MESQUITA, I. Avaliação do Desempenho Tático no Futebol: Concepção e Desenvolvimento da Grelha de Observação do Teste GR3-3GR. Revista Mineira de Educação Física, v.17, n.2, p.36-64. 2009. DAOLIO, J. Educação Física Escolar: Em busca da pluralidade Rev. Paul. Educ. Física, São Paulo, supl.2, p.40-42, 1996. DAOLIO, J.; MARQUES, R. F. R. Relato de uma experiência com o ensino de futsal para crianças de 9 a 12 anos. Motriz, Rio Claro, v.9, n.3, p.169-174, set./dez. 2003. FERREIRA, L. A. O professor de educação física no primeiro ano da carreira: análise da aprendizagem profissional a partir da promoção de um programa de iniciação à docência. Tese de doutorado em Educação, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2005. FONTES, J. C. M. As relações de gênero que permeiam meninos e meninas nas práticas do futebol. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 15. e CONGRESSO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 2., 2007, Recife. Anais eletrônicos... Recife: CBCE, setembro 2007. 5 p. Disponível em: <http://www.cbce.org.br/cd/resumos/148.pdf>. Acesso em: 17 Fev. 2012. Pôster FRANCO, M. A. R. S. Pedagogia da pesquisa-ação. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005 GARGANTA, J. Para uma teoria dos jogos desportivos colectivos. In: GRAÇA, A.; OLIVEIRA, J. O ensino dos jogos desportivos. 3ª. ed. Centro de Estudos dos Jogos Desportivos. Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física. Universidade do Porto. Portugal, p 11-25, 1992. Livro 3 - p.001065

10 GORETI, M.; FERRAZ, C. Questões de gênero na aula de Educação Física: Representações de alunas e de alunos do 9º Ano da Escola Básica do 2º, 3º Ciclos de Santiago. Dissertação de mestrado em desporto para crianças e jovens. Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física da Universidade do Porto, Porto/Portugal, 2002. HILDEBRANDT, R; LAGING, R. Concepções abertas no ensino da educação física. Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 1986. SOUZA, E. S.; ALTMANN, H. Meninos e meninas: Expectativas corporais e implicações na educação física escolar. Caderno Cedes. Campinas, Ano XIX, n 48, agosto de 1999. p. 52-68. VIANA, A. E dos S. Futebol: Das Questões de Gênero à Prática Pedagógica. Revista Conexões, Campinas, v. 6, n. especial, 2008. WENETZ, I.: STIGGER, M, P. A Construção do Gênero no Espaço Escolar. Revista Movimento, Porto Alegre, v.12, n. 01, p. 31-58, janeiro/abril de 2006. Livro 3 - p.001066