Vigilância e Visibilidade. espaço, tecnologia e identificação



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Transcrição:

Vigilância e Visibilidade espaço, tecnologia e identificação

Conselho Editorial da Coleção Cibercultura André Lemos Alex Primo Clóvis Barros Filho Denize Araújo Erick Felinto Francisco Menezes Juremir Machado da Silva Luis Gomes Paula Sibilia Simone Pereira de Sá Apoio: Secretaria Acadêmica PÓS-GRADUAÇÃO ECO UFRJ

Vigilância e Visibilidade espaço, tecnologia e identificação Organizadores Fernanda Bruno Marta Kanashiro Rodrigo Firmino

Os organizadores, 2010 Imagem da capa: Woody Vasulka Capa: Letícia Lampert Projeto gráfico: Daniel Ferreira da Silva Revisão: Lúcia Carolina Editor: Luis Gomes Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( cip ) Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960 V677 Vigilância e visibilidade: espaço, tecnologia e identificação / organizado por Fernanda Bruno, Marta Kanashiro e Rodrigo Firmino. -- Porto Alegre : Sulina, 2010. 296 p. ISBN: 978-85-205-0553-3 1. Tecnologia Digital Vigilância. 2. Redes de Vigilância. 3. Ciências Sociais. 4. Comunicação Social Tecnologia da Informação. 5. Espaço Urbano Vigilância Digital. I. Bruno, Fernanda. II. Kanashiro, Marta. III. Firmino, Rodrigo. CDD: 302.23 303.4833 CDU: 004.738.4 316.77 Todos os direitos desta edição reservados à Editora Meridional Ltda. Av. Osvaldo Aranha, 440 cj. 101 Cep: 90035-190 Porto Alegre-RS Tel: (051) 3311-4082 Fax: (051) 3264-4194 www.editorasulina.com.br e-mail: sulina@editorasulina.com.br {Maio /2010} Impresso no Brasil/Printed in Brazil

Sumário Introdução - 7 Fernanda Bruno, Marta Kanashiro e Rodrigo Firmino Parte I Espacialidades vigiadas Orquestração da vigilância eletrônica: uma experiência em CFTV no México - 17 Nelson Arteaga Botello Redes de vigilância: experiência da segurança e da visibilidade articuladas às câmeras de monitoramento urbano - 36 Rafael Barreto de Castro e Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais - 61 André Lemos Espaço, visibilidade e tecnologias: (Re)caracterizando a experiência urbana - 94 Fábio Duarte e Rodrigo Firmino Parte II Vigilância e visibilidade nas tecnologias de comunicação 11 de setembro, sinóptico e escopofilia: observando e sendo observado - 115 David Lyon Vigilância, comunicação e subjetividade na cibercultura - 141 Henrique Antoun

Mapas de crime: vigilância distribuída e participação na cultura contemporânea - 155 Fernanda Bruno Assista à fronteira 24/7 do seu sofá: o programa de observação virtual da fronteira do Texas e a política do informante - 174 Hille Koskella A mídia, a rotina e a vítima virtual - 188 Paulo Vaz Práticas artísticas e estéticas da vigilância - 211 Consuelo Lins e Fernanda Bruno Parte III Dispositivos de identificação no Brasil A enunciação da vigilância nas fotografias da polícia política brasileira - 223 Maurício Lissovsky e Teresa Bastos Inclusão ou repressão? Questões de identificação e exclusão no Brasil - 248 David Murakami Wood e Rodrigo Firmino A transformação da identificação e a construção de bancos de dados: o caso do documento único no Brasil - 272 Danilo Doneda e Marta Kanashiro

Introdução Este livro parte de uma inquietação comum a diversos domínios de saber, de práticas sociais, de experiências e experimentações do espaço urbano, de produções midiáticas e artísticas: os parâmetros e limites segundo os quais estávamos habituados a ordenar o ver e o ser visto estão em trânsito. Ampliam-se e modificam-se as margens do visível, os modos de fazer ver, assim como os modos de ser visto. A lista de exemplos é extensa: desde o alto e a amplitude da visão dos satélites e tecnologias de geolocalização (GPS, GIS) até a visualização miniaturizada e individualizada das pequenas telas de celulares, palmtops e laptops, passando pelas câmeras de vídeo-vigilância cada vez mais presentes tanto nos espaços públicos quanto privados, ou ainda pelos discretos sensores e tecnologias que monitoram o espaço físico e o informacional, tornando sensíveis processos usualmente desapercebidos e criando o que se convencionou chamar de realidade ou espaço ampliados, assim como formas sutis de vigilância de dados. Uma reordenação dos regimes de visibilidade está em curso nas sociedades contemporâneas, o que implica uma reorientação da experiência dos espaços em que vivemos e das tecnologias com as quais lidamos cotidianamente. Esta reordenação dos modos de ver e de ser visto, envolve, num mesmo movimento, os dispositivos de vigilância, os quais são cada vez mais diversos em suas técnicas, modos de atuação e significações. A experiência e a presença, atual ou potencial, de tecnologias e procedimentos de vigilância tornaram-se cada vez mais corriqueiras nas arquiteturas urbanas, nos meios de comunicação, nas formas de deslocamento pelo espaço físico e informacional. Em certos casos, a observação e inspeção visual ocupam a frente da cena, em outros, a vigilância se exerce nos fluxos invisíveis das redes informacionais e das tecnologias infil- 7

tradas no espaço ampliado. Em outros casos ainda, estão em jogo combinações e partições variadas do visto e do não visto, atestando distintas relações entre vigilância e visibilidade nas sociedades contemporâneas e suas manifestações na organização do espaço. Tais relações podem ser apreendidas segundo a noção de regimes de visibilidade, sendo estes sempre pertinentes a épocas e sociedades. Cada sociedade e cada época te m seu regime de visibilidade próprio e ele não pode ser deduzido nem dos atributos ou atos de um sujeito universal da visão, nem dos dados empíricos de um mundo em si mesmo visível. Pois um regime de visibilidade consiste não tanto no que é visto, mas no que torna possível o que se vê. Dessas condições de visibilidade (Deleuze, 1998) participam máquinas, práticas, regras, discursos que estão articulados a formações de saber e jogos de poder (Foucault, 1983), em uma construção constante, social e histórica, de fatos e artefatos (Bijker & Law, 1992 ; Callon, 1989; Latour, 1994). Tudo isso não constitui um campo visual unificado de teorias e práticas, mas um terreno de disputas e embates em que concorrem modelos mais dominantes e uma série de práticas e culturas menores. Os dispositivos de vigilância participam ativamente desses múltiplos e concorrentes modos de fazer ver e de ser visto em nossas sociedades e os articulam com procedimentos mais ou menos explícitos de monitoramento, identificação, controle, coleta e produção de informações sobre os indivíduos e suas ações. Neste livro, priorizamos reunir perspectivas que exploram a relação entre os atuais dispositivos de vigilância e nossos regimes de visibilidade privilegiando três domínios: a experiência e ordenação do espaço, os nexos entre visibilidade e vigilância nos meios de comunicação e na produção audiovisual contemporânea, e os dispositivos de identificação no Brasil. O primeiro domínio, que constitui a primeira seção do livro, conta com capítulos que exploram o modo como os atuais dispositivos de vigilância têm produzido formas específicas de experiência e ordenação do espaço e seus regimes de visibilidade, sobretudo o espaço urbano e suas interfaces com o espaço informacional. Os dois primeiros capítulos enfatizam o que hoje é o dispositivo de vigilância mais evidente e contundente nos centros 8

urbanos as câmeras de vídeo-vigilância. O texto de Nelson Arteaga abre essa seção analisando a recente instalação de sistemas de vídeo-vigilância no município mexicano de Huixquilucan. Arteaga ressalta como a orquestração de tais sistemas vem delimitando uma fronteira segura que visa proteger as zonas residenciais de grupos sociais considerados violentos ou perigosos. Podemos dizer que as câmeras de vigilância demarcam uma fronteira entre um interior seguro e um exterior ameaçador, atuando como dispositivo de controle social e como demarcação visual e psicológica de limites pré-estabelecidos. É significativo notar como o processo de instalação das câmeras de vídeo-vigilância neste município contou com uma apresentação teatral do sistema à população, que consistia em visitas programadas e demonstrações do funcionamento e suposta eficiência do sistema. O recurso a tais apresentações como meio de legitimar a instalação das câmeras mostra como a retórica da segurança e da vigilância está intimamente atrelada a estratégias de visibilidade, como se esta visibilidade per se não fosse suficientemente um manifesto de intenções atribuídas aos sistemas de vídeo-vigilância. O segundo capítulo concebe a vigilância como dispositivo sociotécnico e analisa as controvérsias em torno da presença de circuitos de vídeo-vigilância nos espaços públicos da cidade do Guarujá, uma das primeiras a usar tais circuitos no Brasil. Contemplando as falas de diferentes atores desse contexto moradores, visitantes, operadores de câmeras e instâncias responsáveis pela segurança pública Rafael Castro e Rosa Pedro buscam evidenciar o jogo de forças envolvido nas diferentes apropriações destes atores, enfatizando especialmente os seus efeitos sobre a subjetividade e a sociabilidade. O foco nas câmeras de vigilância é ampliado no terceiro capítulo, incluindo, além destas, dispositivos mais discretos e também mais invasivos e ubíquos, que passam a integrar o cotidiano das cidades. Multissenhas bancárias, life-loggs, redes sociais móveis, etiquetas RFID e celulares com redes bluetooth, constituem, segundo André Lemos, uma forma de controle invisível e modular que traz ameaças expressivas à privacidade e ao anonimato dos 9

indivíduos. Enfatizando as implicações das mídias locativas para a vigilância, o autor analisa os dispositivos mencionados a partir das noções de bolha digital, parede virtual e território informacional, tendo como pano de fundo a condição de insegurança do sujeito contemporâneo. Um espectro similar de tecnologias é abordado no capítulo que encerra a seção, ampliando a discussão sobre cidades, espacialidades e tecnologias de informação e comunicação. Considerando que um mesmo espaço pode ser a matriz de distintas espacialidades, isto é, de percepções e experiências singulares do e no espaço, Rodrigo Firmino e Fábio Duarte analisam o papel de tecnologias de informação e de vigilância na formação de espacialidades, explorando projetos de arte-tecnologia. Os autores priorizam as espacialidades geradas a partir de ambientes urbanos vigiados por câmeras, tendo em vista as apropriações críticas e estéticas da arte nesses contextos. A segunda seção do livro é constituída por perspectivas diversas sobre as relações entre vigilância e visibilidade nas tecnologias e meios de comunicação contemporâneos. David Lyon abre esta seção explorando as implicações do regime de visibilidade midiático para a legitimação e ampliação das práticas de vigilância nas sociedades contemporâneas, sobretudo após o 11 de setembro de 2001. O autor analisa as complementaridades e tensões entre os modelos sinóptico, em que muitos veem poucos (Mathiesen, 1997), e o panóptico, em que poucos veem muitos (Benthan, 2000; Foucault, 1983), buscando evidenciar as relações entre a escopofilia e o voyeurismo vigentes na cultura visual midiática e os sistemas de poder das atuais práticas de vigilância. No capítulo seguinte, Henrique Antoun trata dos embates entre as mídias irradiadas de massa e as mídias distribuídas de grupo, especialmente a Internet. Explora, neste contexto, as disputas pela verdade do sujeito e das narrativas sociais, tendo em vista seus vínculos com os mecanismos de monitoramento e as práticas de vigilância, entendidas como um sobre-cuidado seja com a ação coletiva, seja com a imagem do eu ou com os efeitos dos discursos geradores de reputação nas redes de comunicação contemporâneas. 10

As práticas de vigilância nas redes de comunicação distribuída permanecem no foco da análise do terceiro e quarto capítulos desta seção. Fernanda Bruno mostra em seu texto como os indivíduos vêm sendo incitados a participar não apenas das formas de entretenimento e da produção de bens e serviços na Internet, como também das práticas de vigilância. A autora problematiza as relações entre participação e vigilância na cibercultura a partir da noção de vigilância distribuída, analisando mapas de crime disponibilizados na rede mundial de computadores. A dimensão participativa da vigilância também é abordada por Hille Koskela no capítulo seguinte, que trata de um programa de observação virtual da fronteira do Texas, criado pelo governo dos Estados Unidos. O programa consiste num website que permite a qualquer cidadão registrar-se e acessar uma rede de webcams e sensores que alimentam vídeos em tempo real que monitoram a fronteira entre os Estados Unidos e o México. Dessa forma, os visitantes podem não apenas colaborar com a vigilância do território, como enviar um alerta à guarda de fronteira caso teste- munhem algo suspeito. Koskella explora as implicações sociais e políticas deste voyeurismo patriótico, evidenciando seus nexos com os atuais regimes de segurança, participação e verificação. No penúltimo capítulo dessa seção, Paulo Vaz aborda o problema da segurança e do risco no âmbito das narrativas midiáticas sobre o crime. Apreende as consequências éticas, políticas e psíquicas destas narrativas a partir das noções de vítima virtual, decisiva na constituição da audiência, e de sofrimento evitável, que caracteriza o modo como se compreende as causas do crime e o poder da ação humana em evitá-lo. Finalizando essa seção, o texto de Consuelo Lins e Fernanda Bruno dedica-se à apreensão de uma estética da vigilância na produção audiovisual contemporânea, das mídias de massa ao cinema e às práticas artísticas. Diferentemente do regime clássico dos anos 1960 e 1970, que focalizava crítica e plasticamente os circuitos internos de televisão, próprios ao fechamento dos espaços disciplinares, o regime estético da vigilância contemporânea dialoga com um outro estado do mundo, em que vige uma diversidade de dispositivos, agentes, práticas e imagens 11

de vigilância circulando pelos mais distintos setores do corpo social e não mais circunscritos aos confinamentos disciplinares. A última seção do livro trata dos dispositivos de identificação no Brasil e inicia com o capítulo de Mauricio Lissovsky e Teresa Bastos sobre a enunciação da vigilância nos arquivos fotográficos da polícia política brasileira, desde a Era Vargas até o fim da ditadura militar. Os autores esboçam uma cartografia desse olhar policial, ressaltando nele o traço de uma enunciação da vigilância que envolve o testemunho tanto do vigiado quanto do vigilante, à diferença da vídeo-vigilância contemporânea, que consiste num enunciado maquínico desprovido de enunciação. David Wood e Rodrigo Firmino analisam, no capítulo seguinte, os sistemas de identificação dos cidadãos pelo Estado brasileiro e argumentam que nesse país o medo da exclusão e do anonimato perante o Estado é significativamente maior do que o medo da vigilância e da invasão à privacidade, diferentemente da maior parte dos países do hemisfério norte, onde prevalece esse segundo receio. Tal perspectiva, propõem os autores, permite matizar e problematizar abordagens universalizantes acerca dos temores frente às sociedades de vigilância e de controle. Os sistemas de identificação dos cidadãos brasileiros permanecem o tema central do nosso último capítulo, voltado para a implementação do novo documento de identidade único no Brasil, o Registro de Identidade Civil (RIC). Danilo Doneda e Marta Kanashiro fomentam o debate acadêmico e político sobre este novo dispositivo de identificação, ressaltando as suas especificidades, sobretudo quanto a incorporação de informações biométricas e a constituição de bancos de dados, com fortes implicações para o controle dos cidadãos brasileiros. A articulação entre os três domínios aqui propostos certamente não esgota as discussões sobre os nexos entre os regimes de visibilidade, os dispositivos de vigilância e a produção do espaço contemporâneo. O desafio aqui iniciado é o da construção comum de problematizações que interconectam diversos campos do saber, da comunicação à psicologia, passando pela sociologia, história, geografia, direito, arquitetura e urbanismo. 12

Finalmente, gostaríamos de agradecer às instituições que apoiaram o projeto deste livro, o Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura (EcoPós) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana (PPGTU) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e o Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LabJor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Referências: Fernanda Bruno, Marta Kanashiro e Rodrigo Firmino. Setembro de 2009. BENTHAN, Jeremy. O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. BIJKER, W. E. e LAW, J. (orgs.) Shaping Technology / Building Society: Studies in Sociotechnical Change. Cambridge: MIT Press, 1992. CALLON, M. La Science et ses Réseaux. Paris: La Découverte, 1989 DELEUZE, G. Foucault. Lisboa: Vega, 1998. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1983. LATOUR, B. Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. MATHIESEN, T. The viewer society: Michel Foucault s panopticon revisited. Theoretical Criminology 1 (2): 215-34, 1997. 13