A integração da redação de O Globo: questões sobre o jornalismo na era da incerteza Sylvia Debossan Moretzsohn 1 Felipe Pontes Teixeira 2 Resumo: Este artigo é um resultado parcial da pesquisa A internet e as transformações no mundo do trabalho jornalístico: o caso do Infoglobo, voltada ao mapeamento das transformações no mercado de trabalho jornalístico no Rio de Janeiro a partir do estudo de caso dessa empresa que é uma das maiores do país. A análise se concentra no processo de integração das redações de impresso e on line do Globo e demonstra o sentido de permanente reorientação de rumos que confirma a incerteza como marca desses tempos inaugurados pela internet, além da exigência de competências multimídia para um profissional idealizado, talvez longe da realidade concreta. Procura também articular a discussão sobre a convergência tecnológica a uma abordagem etnográfica, embora preliminar, da redação do jornal. Palavras-chave: jornalismo; O Globo; convergência; integração; internet. Introdução Vinte e dois repórteres credenciados, 14 fotógrafos, 5 editores e nenhuma menção à internet. Assim se descreve a cobertura do Carnaval de 2008 na coluna Por Dentro do Globo, espaço na primeira página do jornal O Globo onde a própria redação do periódico é tratada como fonte de notícias. Em 2012, essa mesma coluna traz, no dia 9 de fevereiro, a descrição da cobertura do carnaval que há semanas o jornal já colocou nas ruas : repórteres com bloquinho, caneta e celular 3G com câmera; flashes pelo site e 1 Professora de jornalismo na Universidade Federal Fluminense, mestre em Comunicação (UFF) e doutora em Serviço Social (UFRJ). 2 Graduando em Comunicação Social/Jornalismo na UFF, bolsista de iniciação científica (CNPq-UFF).
pelo twitter; eleição da musa dos blocos pelo site; e mais instantaneidade nas informações. A comparação entre os dois textos acima simboliza bem a relevância que o jornal passou a dar e a querer demonstrar ao uso dos recursos multimídia proporcionados pela tecnologia digital. Não que, em 2008, já não investisse firme nessa tecnologia; pelo contrário, aquele foi o ano em que a empresa lançou a campanha muito além do papel de um jornal, com intensa propaganda em TV, rádio, jornal e internet. Mas a ênfase na mobilidade dos repórteres, nessa coluna de 2012, indica o sentido que vem orientando as mudanças introduzidas na redação nos últimos anos. Este artigo é um resultado parcial da pesquisa A internet e as transformações no mundo do trabalho jornalístico: o caso do Infoglobo, voltada ao mapeamento das transformações no mercado de trabalho jornalístico no Rio de Janeiro a partir do estudo de caso dessa empresa que é uma das maiores do país e que, atualmente com três títulos O Globo, Extra e Expresso, procura abranger todos os segmentos do público carioca. Aqui, nos detemos sobre o processo de integração das redações de impresso e on line do Globo. O lançamento do novo projeto gráfico, em 29 de julho de 2012, data do aniversário de 87 anos do jornal, foi anunciado como uma síntese de um processo de atualização que, por definição, continua em curso. É esse sentido de permanente reorientação de rumos que pudemos observar durante a pesquisa, e que confirma a incerteza como marca desses tempos inaugurados pela internet. Metodologia A primeira etapa da pesquisa foi reunir as colunas Por Dentro do Globo, publicadas ao pé da página 2 do caderno principal, através das quais o jornal apresenta ao leitor os aspectos de bastidor que deseja divulgar, desde a produção de determinadas reportagens até informações sobre as mudanças ocorridas na redação, além de curiosidades potencialmente agradáveis ao público. Foi realizada a leitura atenta de todas as colunas, de 7 de abril de 2007 a 9 de fevereiro de 2012, seguida por uma indexação cronológica. Para cada item ficou registrado um resumo compreensivo do conteúdo, em que entre os elementos preferencialmente destacados estiveram os nomes de todos os profissionais citados; a menção ou não a qualquer tipo de tecnologia eletrônica/digital; a presença ou não de endereços eletrônicos por extenso; a presença ou não de fatos nos
acontecimentos manchetados na capa do jornal; o nível de relevância do conteúdo de cada coluna para o tema da pesquisa, ranqueado em um sistema numeral de um a cinco, do menos ao mais relevante. Todas essas informações foram compiladas em arquivos.doc e posteriormente compostas em planilhas. Merecerão estudo à parte, mas desde já fornecem elementos passíveis de serem aproveitados, como na abertura deste artigo. Em seguida, relacionamos as fontes fundamentais para a realização de entrevistas, de editores executivos e subeditores a repórteres com variado nível de experiência, e nos valemos também de entrevistas feitas para pesquisas anteriores que, em algum momento, tratavam do tema aqui abordado. Tal procedimento foi importante inclusive para uma comparação no momento de retorno a essas mesmas fontes, pois pôde demonstrar que algumas afirmações feitas apenas um ano atrás já não eram mais válidas. No campo teórico, desenvolvemos a pesquisa em dois eixos: o da convergência, nas categorias editorial e profissional, conforme definição adotada por Barbosa (2009), e o etnográfico este, ainda em fase inicial, baseado especialmente na pesquisa de Teixeira de Mello (2009) sobre a redação de O Globo. Procuramos demonstrar como ambos os eixos estão articulados, tendo em vista que o processo de integração entre as plataformas impressa e on line exigiu uma reconfiguração do espaço físico ocupado pela redação do jornal, no segundo andar do prédio da rua Irineu Marinho nº 35. A transição do jornalismo na era da convergência O mercado de trabalho jornalístico no Brasil vem passando por intensas transformações desde a informatização das redações, nos anos 1980. Este foi um ponto de clivagem porque aí ocorreram mudanças radicais na configuração do mercado de trabalho para os jornalistas: o enxugamento progressivo do quadro de contratados, com a eliminação pura e simples de funções tradicionais, como a de copidesque, e a redução significativa de outras, como a de redator. Tratando do que ocorreu na Folha de S.Paulo, jornal pioneiro nessas mudanças, que acabou servindo de modelo para as grandes empresas de comunicação no país, Lins da Silva (2005) defende o Projeto Folha, do qual foi um dos principais idealizadores, sob o argumento de que era necessário adequar o jornal às necessidades do mercado do final do século 20, e discute as resistências que ocorreram durante esse processo. No caso do Jornal do Brasil, que hoje sobrevive precariamente apenas na internet, Patrícia Fernandes (1995) colheu um depoimento sig-
nificativo de um repórter, então obrigado a desempenhar uma série de funções antes exercidas por outros profissionais: aqui o significado de terceirização é outro: um trabalha por três. Tais transformações se intensificaram vigorosamente na última década, com o desenvolvimento e a disseminação da tecnologia digital, que provocou uma série de consequências. A primeira, mais óbvia, foi a abertura a novas formas de veicular a informação, de modo que as empresas jornalísticas passaram a ter seus próprios sites, nos quais reproduzem digitalmente o jornal publicado em papel, investem na atualização das notícias em tempo real e buscam uma progressiva interatividade com o público, seja através de blogs de jornalistas contratados, seja através do incentivo à participação do cidadão no envio de informações. Outra, igualmente relevante, foi a demanda por profissionais com competências variadas o chamado jornalista multimídia, capaz de apurar, redigir, fotografar, filmar, editar e veicular informações, adequado ao novo modelo de produção de notícias. Esse processo demandou a reorganização das próprias redações, buscando-se a articulação entre as equipes responsáveis pelo jornal impresso e pelo noticiário on line. Há três anos, Suzana Barbosa (2009) realizou estudo sobre as iniciativas para integração de redações no Brasil, no qual trata, entre outros, do caso de O Globo. Oferecia o esboço de um cenário que, desde então, se tornou mais complexo e contraditório, como poderemos verificar adiante. Embora as empresas jornalísticas dificultem o acesso a dados vitais para pesquisas sobre o mercado de trabalho, como o número de profissionais contratados e o nível salarial conforme a hierarquia, é possível obter, a partir de depoimentos de jornalistas de vasta experiência, algumas informações preciosas. Por exemplo, no caso de O Globo, da década de 80 até hoje houve uma redução drástica na editoria Rio a alma do jornal, que trata dos assuntos ligados ao cotidiano da cidade: eram 82, hoje são menos de 30. Ao mesmo tempo, em relação ao conjunto da redação, ocorreu movimento inverso a partir do ano 2000, quando a empresa começou a investir na internet: o lançamento do Globo on line, mais tarde substituído pelo site do jornal, e a abertura de novas editorias ligadas ao mundo virtual, como a de mídias sociais, arte digital e outras, representaram
grosso modo um acréscimo de 50 pessoas, ou 14% em relação ao contingente anterior. Atualmente, são cerca de 400 profissionais, com diferentes atribuições. A integração em O Globo O processo de integração das plataformas impressa e on line começou em 2007, sob o comando do editor executivo Orivaldo Perin. Até então, a equipe do on line funcionava no prédio anexo ao principal, no número 70 da rua Irineu Marinho, ligado à sede por um corredor suspenso na altura do terceiro andar. A primeira tentativa, de integração virtual, não funcionou, como relata o jornalista: Eu fiquei um ano tentando fazer a integração virtual. Em tese é mole, né, que por computador você integra até o Japão... Mas não dá certo, depois de um ano vimos que, ó, tem que conviver, (...) se não eles não vão se falar e não tem jeito. Aí fizemos toda uma arquitetura aqui (...) e encaixamos. Não tinha ipad 3, mídia social, e tinha de arrumar lugar pra esses caras. A redação tá esse aperto hoje aqui por causa disso. (PERIN, 2012) A integração física ocorreu em 2009 e exigiu a transferência da equipe do Jornal de Bairros para o prédio anexo, além de mudanças no próprio ambiente, com a abertura de um corredor à esquerda da entrada da redação, batizado de Alameda Perin por uma iniciativa do colunista Ancelmo Góis que teve a adesão dos colegas 4. O aperto é visível: a circulação é dificultada pelo estreito espaço entre as fileiras de mesas de trabalho, reunidas em editorias contíguas sem uma clara delimitação entre si e identificadas por pla- 3 A referência ao ipad diz respeito ao lançamento, em 30/1/2012, do vespertino digital, produto exclusivo para ipads (ou tablets), realizado por equipe própria, com a colaboração de jornalistas de outras editorias. 4 Essa manifestação indica uma mudança de ares no clima outrora pesado que imperava na redação de O Globo, conforme testemunho pessoal da autora, que trabalhou ali nos anos 80, e depoimentos de jornalistas que também viveram essa época. Entrevistada para outra pesquisa, em 7/7/2011, Solange Duart fez toda a sua carreira na empresa e tem hoje 26 anos de casa. Seu relato é significativo: (...) aqui era um inferno. A ordem era... eu fui da primeira turma de computador daqui, né. Tem e-mail, você não precisa falar. [Uma colega] foi demitida porque riu, deu uma gargalhada e foi demitida. Horrível, horrível, era muito pesado trabalhar aqui. Nenhum repórter falava com o pessoal do aquário [onde ficam os editores executivos e outros que exercem cargos de direção]. Tinha aquela hierarquia braba. Hoje a gente entra, vai lá sacanear o Perin. Solange ri ao contar que, além da alameda, o pessoal afixou um cartaz na lanchonete: Aqui também: era o Boteco do Perin, é que tiraram o cartaz... eu falei pra ele tirar porque aqui não vende chope, ia queimar a imagem dele.... São comentários relevantes para o aprofundamento do eixo etnográfico dessa pesquisa, mas desde logo é possível constatar essa mudança de ares que, pelo menos em parte, há de decorrer da própria escolha dos profissionais para os cargos de chefia. Da mesma forma que Ancelmo, Perin construiu sua carreira no Jornal do Brasil (começou como repórter em 1969, ainda na antiga sede da Av. Rio Branco, e entre idas e vindas passou 19 anos lá). O JB, hoje sobrevivendo precariamente apenas no meio virtual, se caracterizava pela informalidade nas relações entre os colegas, que se tratam como jotabenianos e em 2010 lançaram um blog para cultivar a memória dos velhos tempos (http://albumfotojotabeniano.blogspot.com.br/2010/06/abre-se-o-album-jotabeniano.html).
cas que pendem do teto, e o trânsito entre os profissionais a esbarrarem-se uns nos outros uns apressados, outros conversando com colegas. Caminhar pela nova redação é também acostumar-se ao barulho produzido pelos passos sobre as placas quadradas móveis revestidas de carpete cinza escuro, que tapam o cabeamento sob o piso. Um dos elementos significativos desse projeto de integração, de acordo com Natanael Damasceno (2012), repórter que começou a trabalhar na empresa em 2000, foi a compra de laptops para toda a redação, pouco depois de todos os computadores terem sido trocados por um sistema de terminais, centralizado. O problema é que hoje cada vez menos o repórter sai à rua, de modo que esse instrumento que permite mobilidade acaba sendo subaproveitado. Cada repórter ganhou um laptop. Só que, como não há mesa para todos, não havia onde por todos esses laptops. A ideia do Perin era que cada um levasse o seu pra casa, fizesse o que quisesse, é seu. (...) Eu acho que sou a única pessoa que faz isso, utilizo o laptop como um equipamento pessoal, levo para a rua, adianto o trabalho, etc. Sou o único que usa o modem (...). Os laptops ficam ali, empilhados na redação. A integração significou uma mudança radical na divisão de trabalho: hoje, o mesmo profissional produz para impresso e on line. Houve também integração hierárquica, de modo que o editor do impresso é também o do on line, e o antigo editor do on line passou a subeditor o que, inevitavelmente, se tornou fonte de conflitos ainda não resolvidos. Em compensação, houve uma equiparação salarial, beneficiando quem cuidava do on line (DORIA, 2011) 5. Natanael recorda que, no começo, a relação foi tensa. Por que tensa? O repórter do impresso, ainda mais o repórter que é muito antigo, tem para ele aquela realidade, na qual você chega, vai para a rua, apura tudo que é possível, volta para o jornal e aí, no jornal, você senta, toma um café, fuma um cigarro, e começa a bater a matéria, vê se falta alguma coisa... Porque o jornal só fecha às 21 horas. Com o site surgiu a obrigação de mandar conteúdo para o online. Então a primeira briga aqui, (...) foi que os repórteres tiveram que mandar flashes da rua. E ninguém mandava, até o Ali Kamel [então editor-chefe] estabelecer cota de flashes. E foi um inferno. Aí o pessoal começou a mandar um flash cumpre-cota, tipo pegava o release, cortava um pedaço e mandava. Na época era tudo pelo telefone. O repórter tinha que mandar! Nisso o Globo on line virou uma referência, mas era um inferno. 5 A entrevista com o editor executivo Pedro Doria foi realizada por Larissa de Morais Ribeiro Mendes em 14 de dezembro de 2011, para sua tese de doutorado, O lugar complexo do leitor no jornalismo contemporâneo: potencialidades, limites, dilemas e o caso do jornal O Globo, apresentada em abril de 2012 ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF. Agradecemos à colega a colaboração ao nos ceder a entrevista, essencial para este trabalho.
Não se tratava apenas de flashes, mas da exigência da produção de vídeos para o site. No início a ideia era ter produção, quantidade. Todo mundo era obrigado a voltar com um vídeo na mão. Depois, com a reformulação, o Pedro [Doria, editor executivo para o site] falou que não queria isso mais não. Queria mais qualidade, então tem uma editoria só para vídeo. Ainda assim, a sobrecarga de trabalho continua: você, como repórter, acaba produzindo mais, inevitavelmente. Você chega com o factual, joga na internet, e depois você ainda vai fazer uma análise para o impresso. Outro aspecto é o desdobramento da cobertura para diversas plataformas: Em algumas coberturas inclusive, os editores pedem que a gente vá para a rua, nos dão um equipamento, um celular, com um programa, para você passar não só os flashes [para o site], como [para] o twitter também. Isso acontece muito no carnaval, por exemplo. Na avenida você tem que passar os flashes, tem que produzir o que tem que produzir, e alem disso é incentivado a tuitar muito o que está acontecendo, fotos inclusive, faz pelo celular e manda pelo Twitter. É uma coisa nova, muito recente. Faço o carnaval já há uns seis anos, isso é de uns três anos para cá. Então você vê como as redes sociais estão infiltrando, até na hora de planejar essas coberturas. Na queda do prédio no centro da cidade, muitos flashes foram passados pelo twitter... Então todo mundo tem que saber mexer nesse negócio. (...) Foi muito difícil, houve muita resistência, até gente que teve que aprender a mexer no computador, que não sabia... O repórter diz que o panorama atual é de uma integração cada vez maior: Você não só tem que passar flashes, tem que pensar em produção. Antigamente você fechava o jornal às nove da noite. Hoje, são vários horários de fechamento. Houve uma mudança nas editorias, nas hierarquias, nos horários. Há três horários de virada no site e isso mexeu na dinâmica dos editores que fecham a produção e o impresso. Perin reconhece que o fim das barreiras, inclusive físicas, entre as duas equipes, ainda não foi capaz de sedimentar a ideia de que não existe mais pessoal do impresso e pessoal do on line. Considera a dificuldade desse processo, que diz respeito a heranças culturais e à formação de jornalistas de diferentes gerações: Essa mágica ainda não deu certo. (...) Hoje dá pra dizer que metade é nativa da internet e a outra é nativa do papel. Vai chegar um dia em que a redação será formada apenas por nativos digitais. (...) hoje na redação do Globo todos os [editores] nativos do papel já estão embarcados no digital. Os hábitos é que ainda não, a gente ainda trabalha no horário do papel. (PERIN, 2012) Esta é uma das questões significativas: quem está acostumado a produzir apenas para o papel tem uma rotina diferente. O trabalho começa pela manhã, mas se intensifica a partir do meio-dia até o fim da tarde. Já a internet começa a bombar no início da
manhã, quando as pessoas procuram informações de serviço, especialmente as condições do trânsito. Mas há outro entrave para a idealizada integração: as próprias ferramentas utilizadas para a produção. O Globo alterou seu sistema e passou a usar o News Gate, que permitiria ao editor receber do repórter um texto e disponibilizá-lo para todas as plataformas. Hoje o que a gente chama de integração é difícil porque você não tem ainda um sistema de computador, de produção eficiente... ainda está sendo desenvolvido, a gente quando comprou [o News Gate] sabia que estava sendo desenvolvido (...), mas ainda não chegou a uma versão final, uma versão que realmente permita a esse repórter escrever e a- quilo ficar disponível em todas as plataformas. Isso vai facilitar a integração, mas ainda não funciona plenamente, a eficiência ainda não é satisfatória. (PERIN, 2012) A sobrecarga de trabalho tende a ser minimizada com o desenvolvimento previsto do programa adquirido pelo jornal: vai ter uma versão lá na frente que essa ferramenta vai fazer isso automaticamente, o tamanho pra twitter é esse, pra outra coisa é outro, e o editor vai definir. O que abre uma série de questões a respeito da qualidade e da responsabilidade requeridas para as várias plataformas de noticiário, e que aqui podem apenas ser mencionadas, para uma futura abordagem. O fim e a volta do plantão no site Essas observações demonstram que o processo é ao mesmo tempo dinâmico e precário: põem-se em execução projetos que não podem ser realizados plenamente, o que, além de conflitos internos cuja intensidade não pode ser tratada nos limites deste artigo, causa frustração de expectativas e discrepâncias entre o discurso e a prática. O caso mais evidente dessa discrepância foi a mudança do site do jornal, em 5 de novembro de 2011. Responsável por esse setor, o editor executivo Pedro Dória justificou a reforma como parte do processo de integração, dizendo que o site só vira realmente site de jornal quando uma mesma equipe produz ambos o jornal de papel e o noticiário na internet, e que era necessário um sistema capaz de viabilizar a disponibilização de um mesmo texto para ser publicado em diferentes plataformas. Porém, pelo menos num primeiro momento, o novo site causou surpresa e decepção, tanto entre os jornalistas quanto entre o público os depoimentos dos entrevistados até o momento não citam números, mas atestam uma vertiginosa queda de audiência, sobretudo pelo súbito desaparecimento do Plantão uma das primordiais funções de qualquer site de jornal
e pela drástica redução do número de matérias passíveis de acolher comentários, além da eliminação dos comentários postados em reportagens produzidas antes da reforma, o que tem evidentes implicações na consideração sobre o respeito à memória produzida pelo próprio jornal. Isso foi uma cagada, reconheceu Doria, a gente entrar sem comentários foi a decisão mais difícil de todo o [processo de reformulação do] site. Argumentou ainda que não sabia desse dano colateral do sumiço dos comentários antigos provocado pela mudança: Isso foi alguém que tomou essa decisão na tecnologia e achou que não precisava avisar... Bom, isso são as dificuldades do mundo corporativo, um bando de gente tomando decisões.... E logo se defendeu evocando seu passado de blogueiro 6 entusiasta da interatividade. A cagada vai sendo consertada aos poucos: o número de reportagens passíveis de comentários foi se ampliando, a caixa para o Eu-repórter a seção de jornalismo cidadão do Globo se tornou muito maior. A home não estava pronta, argumentou o jornalista, mas a gente tinha de lançar o site em novembro, porque senão o lançamento ficava para depois do carnaval, considerando a tradicional queda de audiência entre dezembro e fevereiro. Por que não aguardar o lançamento para março, então? Talvez porque a empresa não quisesse esperar tanto tempo 7, mas essa precipitação interfere diretamente no impacto que as anunciadas mudanças geram, tanto internamente quanto pelo menos previsivelmente na expectativa do público, ainda mais nesses tempos em que as reações nas redes sociais não se fazem esperar. Quanto ao Plantão, a exclusão foi mesmo uma decisão de Pedro Doria e diz respeito à sua concepção do que deva ser a reportagem para o site: matérias vivas, que possam ser alimentadas ao longo do dia e talvez deem desdobramentos nos dias seguintes. 6 Na entrevista, Pedro Dória lembrou que foi o primeiro jornalista a ser pago para ter um blog no Brasil e que desde 1991 lidava com comunidades virtuais. Eu era um blogueiro do tipo que metade do meu tempo era dedicado a ficar dentro da caixa de comentários conversando com as pessoas. Por isso se ressentiu quando percebeu que, ao menos num primeiro momento, não seria possível manter o espaço para comentários como no sistema anterior. 7 Essa expectativa pode ser percebida na coluna Por dentro do Globo de 7/4/2011, que anunciava uma reestruturação em prol da agilidade : a consultoria espanhola Cases i Associats (também responsável pela reforma gráfica do jornal, no ano seguinte) foi contratada para repensar produtos digitais e a Editoria Online virou Editoria Executiva de Plataformas Digitais, encabeçada pelo recém-contratado Pedro Dória, que viria a comandar a reestruturação completa do site.
(...) o Plantão, que é o último resquício do flash, isso foi uma decisão, foi proposital. Eu não queria aquela coisa de flash sendo publicado, entendeu? Eu não queria coisinha de três linhas sendo publicada. Eu queria que a gente tivesse matérias vivas que fossem alimentadas. E a única exceção é para a [editoria] Rio, porque a Rio, de fato, tem muita notícia curtinha... Economia para mim não faz nenhum sentido ter um flash. Você tem uma matéria de mercado sendo atualizada o dia todo, e ali você vai colocar toda a informação. Se às três horas da tarde acontece alguma coisa importante, você muda o lide da matéria. Na contramão do que havia sido praticado até então, Doria ressaltava a necessidade de equiparação do noticiário do site ao do jornal impresso: (...) a redação estava muito acostumada com o critério principal ser pressa... Não. O critério principal é qualidade. Pressa deixou de ser importante? Não. Pressa é importante. Mas qualidade é mais importante, para a gente. Então uma das coisas que foi acabar com o Plantão, e que talvez a gente traga de volta para a Rio, e só para a Rio, o resto do site não precisa... uma das coisas foi um choque brutal na redação do Globo, para lembrar que isso aqui é O Globo, que a gente está fazendo um troço tão importante quanto o jornal. A gente não pode se permitir pequenas irresponsabilidades, pequenas pressas. A gente tem que ter o mesmo rigor jornalístico que o jornal. A hipótese de retorno do Plantão precisaria deixar claro para o leitor que a- quilo é uma coisa de menor qualidade (...), uma coisa rápida, (...) não é uma coisa densa. No site anterior, o layout da coisa que aparecia no Plantão e o do que aparecia como matéria era muito parecido. De fato, o Plantão acabou retornando, agora como últimas notícias, e está mais bem localizado, na linha fina no alto da tela, para demarcar bem a diferença de status entre essa informação rápida e a proposta de maior aprofundamento das matérias que compõem o site. As incertezas da transição A campanha Muito além do papel de um jornal, de 2008, apontava para uma decidida aposta na interatividade que sugeria a progressiva redução de importância do meio impresso. Entretanto, na última semana de julho de 2012, O Globo começou a anunciar sua reforma gráfica, apresentada no domingo seguinte, dia 29. Todos os textos enalteciam a relevância do jornal de papel. Entrevistado em 6 de julho de 2011, Orivaldo Perin mostrava números que indicavam as dificuldades para a sobrevivência do impresso: 70% do custo referem-se à produção industrial gastos com papel, tinta, oficina, etc. Ele argumentava: Se você conseguir fazer um jornal com cara de impresso aqui na tela do computador, gastando menos 70%, você não precisa comprar tanta publicidade, entendeu? (...) Ago-
ra, isso também pode não acontecer. Hoje, ninguém tem certeza de nada, sobre o futuro da nossa indústria. Quando era só o papel você tinha um monte de certeza. (...) Projetar um jornal só pra internet tem riscos, um hacker pode atrapalhar a tua vida... Mais adiante, apostava na reorientação do sentido do impresso, e ao mesmo tempo levantava dúvidas quanto à qualificação dos novos profissionais para essa tarefa: O jornal impresso vai ter de ser um bicho diferente, ninguém sabe como vai ser, quem descobrir fica rico [ri]. Não pode ser isso que ele é hoje, se você passar a tarde inteira lendo o on line, tá mole adivinhar qual a manchete de amanhã: é a queda do ministro 8. É fácil você acertar pelo menos metade da primeira página de metade dos jornais do país. Então o leitor pensa, tô perdendo meu tempo aqui, pra quê eu vou esperar o jornal de amanhã se eu tô com ele inteiro aqui hoje? Então os jornais impressos, todo mundo fala, tendem a ser mais analíticos, mais reflexivos, mais críticos, mais não sei quê, enfim, mas quem vai fazer esse jornal, diz aí pra mim? O cara que pega uma notícia como a queda do ministro pra transformar numa análise, o que tá por trás disso, o cara tem que ter uma quilometragem, uma experiência muito grande né? As redações hoje não formam esse cara. Esse dinossauro que é capaz de fazer isso está acabando. (...) O maior perigo que eu vejo é esse, acaba essa geração nossa, de puta velha, e quem é que entra? Entra um pessoal que nasceu nessa transição que não sabe onde investe, internet ou papel, e depois vai ter essa geração que vai mandar nas redações, e vai ficar flutuando, pra onde é que nos vamos?, e você não vai ter o cara analítico. Era o mesmo discurso de Pedro Doria, embora sem a referência à qualificação dos profissionais nativos da internet. Um ano depois, Perin exibe argumentos distintos: Lá atrás (...) chegou-se a achar isso. Pô, isso vai ser uma beleza [acabar com o papel], reduzir o custo pra poder investir em massa cinzenta, em pessoas. Apaga isso: as pessoas gostam de folhear o jornal, é meio lúdico também. No momento, essa tendência tá zerada. A aposta no impresso agora é clara: No Brasil, a vaca leiteira das empresas é o impresso. E ainda vai ser por muitos anos. A indústria produtora de máquinas impressoras, rotativas, tá em expansão. (...) Hoje o jogo está favorável ao papel. (...) Essa transição é devagar, não dá pra ter certeza nenhuma hoje. Eu tenho uma certeza hoje hoje, daqui a um ano não sei: jornal de papel não morre mais. Não morre tão cedo. Se morrer, eu não vou estar aqui pra ver, entendeu? Vai morrer antes? Eu espero.... 8 No contexto da entrevista, o tema da vez eram as denúncias contra o então ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, primeiro sobre um suposto esquema de superfaturamento de obras e, finalmente, do enriquecimento ilícito de seu filho. O ministro deixou o cargo em 6/7/2011.
A perspectiva em relação ao jornal de papel também mudou, embora o jornalista ressalte ser esta uma opinião pessoal que, aliás, diverge da própria propaganda do lançamento do redesenho, que investia na ideia de reinvenção permanente do jornal: Eu acho que jornais impressos não têm de se reinventar porra nenhuma, são eles os curadores da notícia. A notícia que bomba na internet é a que O Globo está dando, a Folha está dando, o Estadão está dando. Eu administro o meu conteúdo, eu posso escolher o que eu vou botar na internet e o que vou botar no papel, e as redações estão aprendendo isso. A dificuldade é a já citada tradição das cabeças de papel, que pensam apenas na conhecida rotina da publicação impressa, quando a da internet é completamente diferente. Outra dificuldade é encontrar o profissional adequado às desejadas exigências multimídia: Você não tem ainda esse cara que faz um puta texto, uma puta matéria pro site, um puta vídeo, uma puta foto, não tem esse cara ainda..., lamenta Perin. Algum dia terá? Pode ser. Os melhores vídeos nossos são feitos por fotógrafos. Fotógrafos que aprenderam a fazer vídeo. E tem repórter que faz texto e faz vídeo de forma bem aceitável. Saem com celular, têm até câmera se quiser. Não é diferente apurar uma informação e ao mesmo tempo ter essa responsabilidade de filmar? Eu não seria capaz de fazer isso, mas lá no futuro... quando você começou, quando eu comecei, tinha que fazer uma matéria em três vias, uma pra rádio, outra pra agência e outra pro jornal. E eu não tinha que pensar nisso, eu só tinha que botar o papel carbono [entre as laudas de papel, para datilografar à máquina]. Hoje o cara que mergulha nisso tem de pensar nessa parafernália tecnológica toda, e quanto mais ele se entregar a isso mais sucesso ele vai fazer. Isso não prejudicaria a densidade? Não sei, não sei... não dá pra dizer, vai depender do talento, da capacidade do cara. Você não tem nenhum modelo ainda... Resta saber a serviço de quê estão todas essas transformações. Nas reportagens que anunciaram o redesenho do jornal, foi recorrente a referência à submissão de todo o aparato tecnológico à credibilidade da notícia, apontada como o valor fundamental para qualquer jornal de qualidade. Artigo publicado no Observatório da Imprensa (MORETZSOHN, 2012) aponta a falácia desse discurso, a partir de exemplos recentes de reportagens e do questionamento em relação à filiação ideológica do jornal. Mas este é um tema que mereceria análise à parte. Conclusão
A observação do processo de convergência instituído pelo Globo permite perceber os problemas enfrentados por uma grande empresa jornalística na integração das redações que antes atuavam em suas plataformas próprias: questões de relacionamento, atribuições e hierarquias entre os profissionais, sobrecarga de trabalho sem a devida contrapartida salarial e problemas relativos à própria tecnologia comprada e sua adequação aos objetivos pretendidos. Ao mesmo tempo, deixa claro que o processo é dinâmico, contraditório e marcado pela incerteza quanto ao futuro. O que, do ponto de vista empresarial, é um problema, porque envolve gastos em apostas que podem não se concretizar. Como diz Orivaldo Perin, o esforço que as empresas de comunicação têm de fazer para acompanhar a tecnologia é muito grande. Você não sabe se vai dar lucro, mas você tem que estar lá. Além disso, a verificação de que novos produtos são lançados ainda inacabados, por uma necessidade injustificada, equivale à decisão de uma empresa automobilística apresentar um novo modelo de carro sem todos os equipamentos prometidos. Se, neste caso, a opção seria inaceitável para os consumidores, por que seria diferente no caso do jornalismo? Da mesma forma, a necessidade de o novo profissional desenvolver múltiplas habilidades esbarra numa impossibilidade prática. Talvez possa surgir alguém capaz de realizar apuração, texto, áudio e imagem de maneira igualmente competente, mas provavelmente será uma exceção, e nenhum mercado trabalha com exceções. Talvez resida aí uma das contradições elementares entre o discurso idealizado da valorização do profissional multimídia e a prática incompatível com tais exigências, sobretudo se considerarmos a formação atual desse profissional nativo digital, que, de acordo com o próprio Perin, é capenga, é muito mais da instantaneidade que da profundidade, coerente com a velocidade incentivada pela existência da internet. Como os editores de O Globo pretendem exigir profundidade de quem está acostumado ao imediato e instantâneo, é algo ainda carente de resposta. Referências
BARBOSA, Suzana. Convergência jornalística em curso: as iniciativas para integração de redações no Brasil. in RODRIGUES, Carla (org). Jornalismo on-line: modos de fazer. Rio de Janeiro/Porto Alegre: PUC-Rio/Sulina, 2009, p. 35-56. DAMASCENO, Natanael. Entrevista aos pesquisadores em 17/7/2012. DORIA, Pedro. Entrevista a Larissa Morais em 14/12/2011. DUART, Solange. Entrevista à autora em 7/7/2011. LINS DA SILVA, Carlos Eduardo. Mil dias, seis mil dias depois. São Paulo: Publifolha, 2005. FERNANDES, Patrícia. O jornal impresso na era da informática. Niterói: I- acs/uff (monografia de conclusão de curso), 1995. MORETZSOHN, Sylvia. A reforma do Globo. Além das aparências, in Observatório da Imprensa, 7/8/2012. Disponível em www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed706_alem_das_aparencias PERIN, Orivaldo. Entrevista à pesquisadora em 6/7/2011 e 7/8/2012. THIAGO DE MELLO, Pedro Paulo. Por trás da notícia. Um olhar etnográfico sobre os ritos de interação numa redação de jornal. Niteroi: Programa de Pós-Graduação em Antropologia-UFF (tese de doutorado), 2009.