Política de Línguas na América Latina 1



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Transcrição:

Política de Línguas na América Latina 1 Eduardo Guimarães * Num momento como o atual, em que as relações internacionais vêm mudando rapidamente e que se caracteriza, entre outras coisas, pelo fato político e econômico da globalização, pode parecer sem pertinência falar de política lingüística. Como se uma política desta ordem não tivesse interesse algum, já que ela derivaria naturalmente das determinações econômicas das relações internacionais. Se é verdade que estas determinações são decisivas para qualquer plano das atividades sociais, a questão da linguagem não deixa de ter interesse, até porque podemos considerar, inclusive na linha do modo como faz E. Orlandi em Terra à Vista (1990) ou Rancière em La mésentente (1995), que o político diz respeito ao modo de poder tomar a palavra. Mas para entrar no assunto vou começar por um aparente desvio. 1. O Litígio entre Córax e Tísias Faz parte da história da retórica a narrativa sobre o litígio entre Córax e Tísias. Segundo este relato Tísias se recusa a pagar Córax sob o argumento de que se Córax foi um bom professor ele (Tísias) seria capaz de apresentar argumentos que convencessem Córax a não cobrar por suas aulas. Caso contrário, ele não seria capaz disso, mas neste caso Córax não deveria ser pago por ser mau professor. segue: Do ponto de vista da enunciação, esta narrativa pode ser descrita como * DL-IEL/Labeurb - Unicamp

a) Há uma divisão social entre professor e aluno. Assim Córax e Tísias estão em posições sociais diferentes e hierarquizadas. b) A narrativa conta que Tísias produz um conflito. Para isso ele enuncia da posição da ética: coloca a questão de considerar o valor, bom ou mau, da ação do professor. c) Ao falar da posição da ética, Tísias faz a diferença de posições entre ele e Córax significar. d) Nesta medida Tísias pode atribuir à posição do professor a necessidade de atender ao princípio ético, desobrigando o aluno de atendê-lo (ou a um princípio correspondente). Córax. e) Ao operar esta diferença, Tísias enuncia da posição de um igual a O relato, que acima descrevemos, ligado ao momento em que a retórica se reconhece como fundando-se, coloca como incontornável a questão da Ética. De um lado porque só a partir de um princípio ético, sobre a responsabilidade dos alunos, Córax poderia se defender. Por outro lado porque, como vimos, Tísias coloca como fundamento de sua argumentação um princípio ético: o bom como apreciável e o mau como condenável. Mas esta narrativa, pensada num certo discurso da história da retórica, pode ter outros efeitos. Numa história da retórica que simplesmente faz um relato dos fatos, ele é colocado como forma exemplar para mostrar que para a retórica, a argumentação, não há nada de substantivo no seu interior. Em verdade a narrativa é contada como significando a vacuidade e falta de princípios éticos da retórica. A Tísias é atribuída a atitude de se eximir de qualquer princípio ético. Tísias é assim o personagem sem ética numa história e nela, no entanto, inscreve a pergunta sobre a Ética. Esta posição de uma

certa história da retórica, ao desqualificar eticamente Tísias, desqualifica-o politicamente, transforma seu argumento em fala sem sentido. Por outro lado, Tísias é o personagem que inscreve no interior da retórica, e assim do pensamento ocidental, o político. Em que sentido? Na medida em que ele instala como questão a considerar a diferença social: ser professor é diferente de ser aluno. Ser professor estabelece uma posição no corpo social diferente de ser aluno. É preciso avaliar se o professor é bom. E, mais que isso, esta diferença instala um conflito no seio das relações sociais. E que conflito é esse? Tísias se coloca na posição de quem pode julgar o professor, julgar o que lhe é dado como hierarquicamente superior, e que portanto não lhe caberia julgar. Tísias assume a palavra como um igual ao professor, sustentando contraditoriamente a diferença para caracterizar a necessidade de avaliação do professor e não do aluno. E esta diferença, este conflito, este pôr-se para dizer do mesmo lugar, a materialidade do político, portanto, é o argumento fundamental de Tísias. Assim a narrativa do litígio de Tísias contra Córax inscreve na história ocidental, ao mesmo tempo, o ético e o político. Esta narrativa, aceita marginalmente como um episódio curioso, instala a indissociabilidade do ético e do político. E não se trata de conteúdos ou intenções, trata-se de relações que constituem a materialidade histórica do corpo social. O que espero poder dizer a partir da análise desta pequena narrativa é que se o ético é atravessado pelo político, então podemos pensar os princípios éticos como não absolutos, e não podemos pensar o político sem inscrever no seu interior a reflexão sobre seus princípios éticos. 2. As Posições Sociais e suas Éticas

A narrativa do litígio que enuncia a fundação da retórica nos coloca de pronto uma relação entre as posições sociais e os lugares enunciativos dos princípios éticos. Sobre isso poderia lembrar aqui o que diz Eni Orlandi 2 distinguir três posições que configuram diferentemente as políticas lingüísticas. Estas apresentam-se: ao a. como razões de Estado, das Instituições: o que coloca o princípio da unidade como valor; b. como razões que regem as relações entre povos, entre nações, entre Estados: o que coloca o princípio da dominação como valor; c. como razões relativas aos que falam as línguas: o que coloca o princípio da diversidade como valor. Considerar esta diversidade de posições é colocar de início o espaço do litígio, do conflito como parte do objeto que nos cabe ao se falar de política de línguas. E não se trata de discutir sobre o modo de unificar estes princípios como forma de superar o conflito. Ao contrário, trata-se de refletir sobre o modo de funcionamento do litígio no qual as posições procuram sustentar a igualdade de direito à enunciação, à significação. 3. As Línguas Não-Só-Nacionais da América Latina Os países da América Latina (Brasil e países de língua espanhola) se definem por terem como línguas oficiais línguas que não são somente línguas de uma nação. De um lado porque o Espanhol é língua oficial de um grande número de países e é falado em regiões do Brasil; e de outro porque o Português é também língua de muitos outros países, mesmo que não da América Latina. Mas o principal é que o Português é língua de muitas comunidades de países da América Latina que não o Brasil.

Esta noção de línguas não-só-nacionais coloca em projeção um conjunto de línguas de intercâmbio supra-regional (francês, alemão, inglês, espanhol, português,etc.). Mas, diante do fato da globalização, em que medida isto é colocado em pauta? Como pensar esta questão relativamente ao Mercosul, por exemplo? A questão é que a Ética se constitui na história ocidental como universalista. E assim se separa do político. Deste modo ela é incapaz de produzir princípios que levem em conta as divisões sociais, suas diferenças e oposições. E ao mesmo tempo considerem a ação homogeneizadora do Estado. Ou seja, na medida em que se toma a ética como homogênea e universal, ela funciona ao lado dos princípios de unidade da normatividade do Estado, e não sobra espaço para pensar a heterogeneidade lingüística no plano das ações de governo e das relações internacionais, a não ser como procedimento de hegemonias entre culturas. Do ponto de vista da produção de conhecimento, é preciso que se pense a questão política a partir de posições teóricas que incluam a consideração do político no seu próprio objeto para não se limitar a uma producão massiva de artefatos de ação normativa. Pois, se isto se faz assim, se estará sujeito a uma mera reprodução de instrumentos marcados pela evidência ideológica e, assim, incapazes de atravessar seus efeitos imaginários. Nesta medida estaremos, somente, construindo instrumentos incapazes de produzir uma prática efetivamente política, pois o político fica, neste caso, reduzido à normatividade ou diretividade das posições de poder. 4. A Abertura das Fronteiras entre as Nações. Os Mercados Comuns, a Globalização

O que é a globalização enquanto espaço de produção lingüística? É a ampliação do espaço enunciativo 3 de línguas não-só-nacionais. Ou seja, é a ampliação do espaço enunciativo de línguas como o Francês, o Alemão e principalmente o Inglês. E não se trata do inglês simplesmente. É o inglês enquanto língua, primeiramente, dos Estados Unidos. A Língua está marcada por uma geografia hierarquizada. Este processo nos dá de um lado a quebra da relação língua/nação [país] e de outro o espaço substitui, neste movimento, o tempo, a memória, a história. É preciso repor o tempo, a memória, a história ao refletir sobre isso. E não simplesmente dar continuidade à escansão da história que o movimento de globalização faz, como forma atual de estabelecimento de relações de dominação. Se tomamos o Mercosul, o que poderia ser visto como um novo espaço de produção lingüística? Não se trata simplesmente de dizer que este espaço é o Brasil e os países de língua espanhola. Esta resposta não considera que o espaço aqui é o espaço enquanto configurado por sua relação com as línguas que nele se falam e pelos falantes que as falam. Portanto, estes espaços são os espaços da Língua Portuguesa do Brasil e da Língua Espanhola dos países limítrofes do Brasil ao Sul. Mas este espaço de línguas é um espaço configurado pela presença de outras línguas em funcionamento, de um lado as línguas indígenas e o espanhol, além de seu contato com a Língua Portuguesa, e de outro as línguas indígenas, as línguas africanas e o Português, além de seu contato com o espanhol. Neste sentido estamos configurando este espaço por uma memória que lhe é própria, sem a qual ele não é este espaço. E nesta medida cabe pensar, inclusive, a história de constituição do espanhol e do português como línguas nacionais 4.

Como colocar, então, a questão de uma política de línguas neste quadro? É preciso não deixar de lado a questão que se põe das línguas nãosó-nacionais que coloquei em 3. Neste sentido é preciso trabalhar a ampliação dos espaços de enunciação destas línguas (no caso o Português e o Espanhol). Não no sentido de que cada uma deve envolver mais falantes. No sentido, isso sim, de que se deve trabalhar para que os espaços de cada língua sejam também os espaços da outra. Isto corresponde a projetar minimamente um bilingüismo como modo de ocupação de um espaço de poder que decline a globalização em territorialidades marcadas por uma afirmação do direito de não falar a mesma língua de todos. Um todos que sequer é real, mas que opera com a força aparentemente irresistível do imaginário, do ideológico. 5. Política e Instrumentação das Línguas Trata-se, então, de desenvolver não só uma reflexão política sobre Línguas para a América Latina, mas também o conhecimento sobre elas que possa levar a uma instrumentação capaz de trabalhar a representação imaginária destas línguas no espaço da América Latina e capaz de estabelecer, pela ampliação de seus espaços de enunciação, um cotejo de forças que trabalhe a pluralidade das línguas e não a extensão de uma língua como língua franca para o mundo. Toda a América Latina é, como sabemos, multilíngüe. O multilinguismo nunca foi uma exceção na vida dos povos. Ao contrário, faz parte da história de quase todos eles desde tempos os mais remotos. Toda vez que há um trabalho na direção da unificação lingüística nas relações entre povos se está vivendo uma relação em que algum tipo de processo de dominação está em curso. Está envolvido o princípio da dissimetria entre as posições sociais envolvidas.

Como pensar, do ponto de vista da produção do conhecimento e suas tecnologias, estes aspectos? Antes de tudo é preciso que, do ponto de vista da comunidade científica, ela se dedique a formular perguntas específicas sobre estes aspectos de modo a encontrar procedimentos e formulações capazes de constituir um discurso que signifique no confronto com as posições tomadas a partir do princípio da dominação, embutido na noção de globalização. É preciso que a ciência seja capaz de produzir um lugar de enunciação anti-hegemônico que faça sentido no conjunto das relações internacionais. Para isto seria fundamental tratar a questão lingüística no Mercosul como distinta de outros lugares. Seria preciso produzir um trabalho que efetivamente incorporasse a posição que a história destas línguas produziu nestes novos espaços políticos. Como consequência direta desta ação, torna-se necessário produzir materiais nesta direção. Ou seja, é preciso produzir uma instrumentação linguística específica que acabe por colocar estas línguas como línguas nãosó-nacionais para todos os países concernidos. Desta forma esta questão lingüística deixará de ser uma questão regional para ser uma questão das relações internacionais globalmente. Ou seja, é preciso reescrever a globalização a partir das posições que a globalização coloca, sem enunciar das posições periféricas. É preciso fazer com que o que é posto como espaço agregado ao centro, pela globalização como nova forma de dominação, seja ele próprio parte que enuncia e significa. CONCLUSÃO Estas são questões que devem presidir nosso modo de pensar uma política científica relativamente a uma política das línguas, hoje, na América

Latina. Uma posição como essa envolve um tipo de posição teórica que ao ser tomada desloca o imaginário que vem dirigindo até aqui as distâncias entre os países latino-americanos. Refiro-me, notadamente, às relações entre o Brasil e os demais países latino-americanos. Há nestas relações efeitos de imaginário que nenhum instrumento não-refletido pode romper e mudar. Só para dar uma exemplo, lembremos o efeito ideológico que leva a certas comunidades de fala espanhola a não compreenderem a língua dos brasileiros. É preciso construir, nesta época de novos instrumentos tecnológicos, instrumentações das línguas nacionais da América Latina capazes de reconstituir as hiperlínguas (Auroux, 1994,1998) envolvidas, de reconfigurar o espaço de enunciação latinoamericano. BIBLIOGRAFIA AUROUX, S. A Hiperlíngua e a Externalidade da Referência. Gestos de Leitura. Campinas, Editora da Unicamp,1994. AUROUX, S. Língua e Hiperlíngua. Línguas e Instrumentos Linguísticos, 1. Campinas, Pontes, 1998. GUIMARÃES, E. Os Limites do Sentido. Campinas, Pontes, 1995. ORLANDI, E.P. Terra à Vista. São Paulo, Cortez/Editora da Unicamp, 1990. ORLANDI, E.P. Ética e Política Linguística. Línguas e Instrumentos Linguísticos, 1. Campinas, Pontes, 1998. ORLANDI, E.P. e GUIMARÃES, E. La Formation d un Espace de Production Linguistique. La Grammaire au Brésil. Langages, 130. Paris, Larousse, 1998. RANCIÈRE, J. La Mésentente. Paris. Galillé, 1995.

1 Texto apresentado no Congresso sobre Política Lingüística na América Latina, Universidade de Buenos Aires, em 1997. 2 Ela formulou esta questão em participação neste mesmo Congresso. Esta formulação aparece também em Orlandi (1998). 3 Para minha concepção de enunciação, ver Os Limites do Sentido (Guimarães, 1995). 4 Sobre a Constituição do Português como Língua Nacional ver, por exemplo, Orlandi e Guimarães (1998).