Gênero, Subjetividades e Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina: a construção de um campo de pesquisa 1



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Transcrição:

Gênero, Subjetividades e Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina: a construção de um campo de pesquisa 1 Giovana Ilka Jacinto Salvaro (UFSC) 2 Resumo: Como proposta de pesquisa, iniciada em 2006, junto ao Programa de Pós- Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas/Doutorado, da Universidade Federal de Santa Catarina, área de concentração Estudos de Gênero, construí questões acerca da constituição dos sujeitos e das subjetividades no campo das lutas de gênero nas práticas do Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina (MMC/SC). Neste texto apresento reflexões sobre as relações intersubjetivas na construção do campo de pesquisa, com base em questionamentos suscitados ao longo da escrita do meu diário de campo. Trata-se do esforço de transformar em texto a experiência de estudo que venho produzindo à luz do modelo etnográfico de pesquisa, o qual, fundamentalmente, considera o encontro intersubjetivo pesquisador-pesquisado. Neste processo, ao me aproximar do cotidiano de lutas do MMC/SC, vivencio a relação (in) tensa entre os objetivos do fazer acadêmico e os da militância, entre a minha condição de participante não ativa nas lutas e a solicitação (nem sempre expressa claramente) por uma participação ativa, o que objetivamente justificaria o interesse pela causa e pela realização do estudo. Em um sentido mais amplo, percebo que estar identificada com as lutas se apresenta como condição desejável para a construção de um espaço de interlocução com as mulheres que integram o movimento. Palavras-Chave: gênero; encontro intersubjetivo; pesquisa de campo Considerações iniciais Como proposta, iniciada em 2006, junto ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas/Doutorado, da Universidade Federal de Santa Catarina, área de concentração Estudos de Gênero, construí questões acerca da constituição dos sujeitos e das subjetividades no campo das lutas de gênero nas práticas do Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina (MMC/SC) 3. Este texto, portanto, apresenta-se como uma 1 Trabalho apresentado na 26ª. Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil. 2 Doutoranda do PPG Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). 3 Orientado pela Profª. Drª. Mara Coelho de Souza Lago e co-orientado pela Profª. Drª. Cristina Scheibe Wolff. 1

primeira elaboração e comunicação de reflexões a propósito da experiência de construção de um campo de pesquisa, uma vez que, ao buscar seguir os pressupostos do modelo etnográfico de pesquisa, atento para os efeitos intersubjetivos produzidos no encontro pesquisadorapesquisadas. Expressa pontos da construção deste campo, ao mesmo tempo em que me auxilia na tarefa de pensar criticamente sobre as relações estabelecidas nesse processo, envolvendo objetivos da pesquisa acadêmica e da militância. A respeito do tema - encontro intersubjetivo na pesquisa etnográfica, cito Mirian Goldenberg (2001, p.23-24): Geertz inspirou a tendência atual da chamada antropologia reflexiva ou pósinterpretativa, que propõe uma auto-reflexão a respeito do trabalho de campo nos seus aspectos morais e epistemológicos. Esta antropologia questiona a autoridade do texto antropológico e propõe que o resultado da pesquisa seja não fruto da observação pura e simples, mas de um diálogo e de uma negociação de pontos de vista, do pesquisador e pesquisados. Inspirada nessa possibilidade reflexiva, dedico-me à escrita deste texto, na tentativa de relatar uma experiência e, para tanto, recorro ao projeto de pesquisa e ao meu diário de campo. As questões da pesquisa, voltadas para as lutas/práticas de gênero que constituem sujeitos e subjetividades, vêm orientando as minhas leituras no sentido da incorporação de elaborações teórico-metodológicas, as quais possam contribuir para a compreensão do objeto de estudo. Tarefa que tem se mostrado complexa, uma vez que, ao buscar dialogar com diferentes campos do conhecimento (psicologia, antropologia, sociologia, história, filosofia) para tratar das questões que construí, faz-se necessário diluir fronteiras disciplinares e assumir que este estudo não se enquadra nesta ou naquela ciência humana. Conforme alerta Mara Lago (1996, p.15): As ciências sociais humanas não têm limites muito definidos, embora os vícios da profissionalização e da formação acadêmica resultem na auto-restrição do campo científico e, mais comumente, na restrição das ciências afins, no interesse de uma espécie de reserva de mercado da atuação e do saber. Buscando renunciar aos vícios da profissionalização, pela possibilidade de estabelecer diálogos interdisciplinares, busquei uma aproximação com o método etnográfico, no modelo antropológico de pesquisa. No detalhamento acerca dos pressupostos metodológicos do projeto, discorri sobre o caminho e os procedimentos de pesquisa, sobre as aproximações do campo e dos sujeitos da pesquisa. É sobre os efeitos intersubjetivos desta aproximação que trata este texto. 2

A construção de um campo de pesquisa Como construção de um campo de pesquisa, concebo a elaboração e a escrita da proposta de estudo em suas dimensões teórico-metodológicas, incluindo as aproximações com os sujeitos da pesquisa, no intuito de estabelecer as condições de possibilidade para a realização do trabalho de campo.. Este último aspecto se coloca pelos objetivos do estudo e pela especificidade do método, visto que, conforme ressalta Fonseca (1999, p.10), em referência à etnografia, o ponto de partida desse método é a interação entre o pesquisador e seus objetos de estudo, nativos em carne e osso. A tarefa de construção deste campo foi norteada pela escolha do MMC/SC como locus da pesquisa. As delimitações que sucederam foram orientadas para a escolha da regional sul 4 (formada por diferentes municípios) para a realização da pesquisa de campo. Cumpre observar que, considerando a organização nacional, estadual, regional e municipal do MMC, o estudo de determinada regional só faz sentido a partir da análise também do contexto mais amplo, especialmente no que diz respeito às relações produzidas nesta rede. Significa considerar que atividades nacionais, estaduais, regionais e municipais poderão ser acompanhadas para os fins do estudo 5. Com base na experiência produzida ao longo do acompanhamento de algumas atividades municipais, regionais e estaduais, que caracterizei como aproximações do campo e dos sujeitos da pesquisa (como forma de produzir as condições de possibilidade do estudo), trago alguns pontos para a reflexão. As aproximações do campo e dos sujeitos da pesquisa vêm me mostrando que o encontro intersubjetivo pesquisador-pesquisado (requisito essencial do método etnográfico) se produz pelo estabelecimento de relações de poder. A propósito das relações de poder, lanço mão do que descreve Michel Foucault (1995, p.240), no artigo o sujeito e o poder, em termos de que [...] não há algo como o poder ou do poder que existiria globalmente, maciçamente ou em estado difuso, concentrado ou distribuído: só há poder exercido por uns sobre os outros; o poder só existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo de possibilidade esparso que se apóia sobre estruturas permanentes. A concepção de poder, elaborada por Foucault, apresenta-se como uma possibilidade interessante para se refletir criticamente sobre a relação pesquisador-pesquisado, porque 4 Tendo em vista que o MMC/SC se organiza em regionais, na ordem que segue: José do Cedro, São Miguel do Oeste, Descanso, Campo Erê, Maravilha, Pinhalzinho, Quilombo, Chapecó, Xanxerê, Concórdia, Iriniópolis, Caçador, Joaçaba, Lages, Mafra, Rio do Campo, Navegantes, Região Sul (MMC/SC, 2005). 5 No conjunto da proposta de estudo, serão analisados também relatórios de assembléias, congressos e encontros, revistas, cartilhas e informativos produzidos pela organização regional, estadual e nacional do movimento. 3

permite analisar a singularidade do trabalho de campo e suas regras de construção, ao invés de tomá-lo a partir dele mesmo, ainda que, apoiado em estruturas permanentes (pesquisadorpesquisado). Parece oportuno, então, perguntar como o poder está sendo exercido neste encontro e quais as regras que possibilitam a construção do campo de pesquisa. A chegada ao campo de pesquisa (em um dos municípios onde o movimento está organizado) foi possibilitada pelo convite de uma das integrantes do movimento, que conheci no II Encontro Estadual da Juventude Rural, realizado em outubro de 2005, em Florianópolis. Na ocasião, conversei com esta integrante sobre o interesse de produzir um estudo sobre as práticas/lutas de gênero no movimento. Em julho de 2007, como aluna do DICH e com o projeto em construção, retomei o contato com esta integrante, a fim de verificar a possibilidade de um encontro com o grupo, no referido município. Diante de uma resposta positiva, optamos pela participação em uma das reuniões do grupo, a ser realizada ainda no mês de julho. Dessa forma, ao me encontrar com estas integrantes, apresentei a proposta de pesquisa, a qual foi seguida por perguntas sobre o seu modo de realização, especialmente no que compreendia as entrevistas individuais e as atividades que poderiam ser acompanhadas. Todas as atividades do grupo, sem exceção, foram cogitadas como passíveis de serem acompanhadas, na dependência, apenas, de minha disponibilidade de tempo. Como regras de aceitação do estudo (e da pesquisadora), podem-se observar o fato de ter sido indicada por alguém do grupo e identificada como alguém que tem interesse pelas causas femininas (ou lutas feministas). Essas regras excluem a possibilidade de se chegar ao campo sem uma indicação e interesse de pesquisa aceitável. De modo geral, as atividades que acompanhei até o presente momento se desdobraram a partir de pautas produzidas a priori, em que as integrantes, de acordo com os objetivos delineados, lançaram mão da utilização de produções escritas, na forma de cartilhas, relatórios, comunicados, entre outros documentos. Passado o contato inicial, foi possível observar outras regras na construção deste campo, cujo foco é a relação entre o trabalho acadêmico e a militância. Parece adequado considerar que, de acordo com Foucault (1995, p.247), o exercício de poder não é um fato bruto, um dado institucional, nem uma estrutura que se mantém ou se quebra: ele se elabora, se transforma, se organiza, se dota de procedimentos mais ou menos ajustados. Observo que o encontro pesquisadora-pesquisadas movimenta discursos e objetivos diferentes, mostrando a necessidade de se estabelecer uma ponte entre dois universos de significações, como esclarece Roberto Da Matta (1978, p.27), ao falar da antropologia como uma disciplina que trata deste encontro. Participar de atividades produzidas pelos sujeitos de pesquisa, requer uma ponte entre os universos da pesquisadora (urbano e acadêmico) e das 4

pesquisadas (rural e militante). Uma tensão pode ser identifica no terreno das possibilidades e dos limites desta interlocução, quando, por exemplo, durante uma atividade de formação, sou chamada a me posicionar sobre determinado tema e a me identificar com o projeto em pauta. É possível considerar que, além de falar a língua dos sujeitos pesquisados, torna-se desejável que a pesquisadora também compartilhe práticas e lutas. Trata-se apenas de uma amostra daquilo que pode ser relacionado ao exercício do poder. Diante disto, retomo os procedimentos metodológicos descritos na proposta de pesquisa, em que elegi as etapas do trabalho do antropólogo, tal como ressalta Roberto Cardoso de Oliveira (2000), ou seja, olhar, ouvir e escrever. São etapas diferenciadas e disciplinadas pelas teorias que norteiam o trabalho do pesquisador, assim como se articulam ao longo da investigação. No que argumenta o autor, o olhar e o ouvir podem ser considerados como a etapa preliminar da investigação, de modo que o escrever consiste na configuração final do trabalho investigativo 6. A cada atividade com o grupo, percebo que as regras podem ser outras e, desse modo, ter que falar e me posicionar frente às demandas de luta passam a se configurar também como etapas desejáveis do trabalho. Em muitos momentos, considerando as discussões acerca da temática envolvendo o gênero, no decorrer de determinada atividade, pode-se dizer que o estranho se tornou familiar, o que propiciou integrar a discussão e participar da elaboração de atividades voltadas para o fortalecimento das ações do movimento, no conjunto das suas bandeiras de luta, a exemplo das atividades do Dia Internacional da Mulher (08 de março), realizadas em Florianópolis, em que me coloquei à disposição para auxiliar uma das equipes de organização. Foi uma experiência especial, uma observação participante no pleno uso do termo. Deparei-me com questões que me fizeram problematizar a minha trajetória e modo de vida, localizando aí formas de resistência ainda não identificadas, particularmente, no que diz respeito ao estudo de temas que me são caros. Desfaço os resquícios da neutralidade científica e reconheço que a subjetividade da pesquisadora e as relações que se estabelecem no contexto social mais próximo trazem implicações para o campo de estudo. Nestas aproximações do campo, deparo-me com mulheres que, pelo pacto união, propõem-se a fazer algo diferente, como anunciam suas bandeiras de luta, desdobramentos de uma luta central [...] contra o modelo neoliberal e machista e pela construção do socialismo. (MMCBRASIL, 2005). Vozes irrompem de práticas sociais que objetivam silenciar os sujeitos, resistências se produzem no mesmo lugar do assujeitamento, o que pode ser lido a 6 Cardoso de Oliveira (2000) faz referência às discussões de Clifford Geertz sobre o estando lá, situação de estar no campo, e o estando aqui, elaborando uma etnografia, com o material obtido no contato com os sujeitos em seus ambientes cotidianos de vida. 5

partir do que descreve Foucault (1995, p.244) sobre a relação entre o poder e a resistência, no sentido de demonstrar que não há relação de poder onde as determinações estão saturadas a escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado (trata-se então de uma relação física de coação) mas apenas quando ele pode se deslocar e, no limite, escapar. O que não sugere, por conseqüência, que os movimentos sociais são lugares privilegiados para o exercício da resistência. Como descreve Foucault (1995, p.234) sobre o desenvolvimento de algumas oposições: oposição ao poder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre os filhos, do psiquiatra sobre o doente mental, da medicina sobre a população, da administração sobre os modos de vida das pessoas. Tratam-se de lutas transversais e imediatas, que questionam os efeitos do poder e o estatuto do indivíduo (com ênfase no individual e relacional), que configuram uma oposição aos efeitos do poder/saber e, como todas as lutas contemporâneas, colocam no foco a questão de quem somos nós. Nesse sentido, de acordo com Foucault (1995, p.235), [...] o objetivo principal destas lutas é atacar, não tanto tal ou tal instituição de poder ou grupo ou elite ou classe, mas, antes, uma técnica, uma forma de poder. Quero chamar atenção para o fato de que, ao se opor aos efeitos do poder e ao estatuto do indivíduo, o movimento pode produzir linhas de fuga, bem como outras formas de subjetividade. E, se o pacto de união é essencial para que o movimento se oponha a estes efeitos, parece que não há espaço para regras que não dêem conta destes interesses. Trata-se de um convite ao exercício da militância, mesmo aos que se posicionam como pesquisadores/as, espectadores/as e expectadores/as de uma revolução molecular, tal como apresentada por Guattari & Rolnik (2005, p.55), produtora de condições não só de uma vida coletiva, mas também da encarnação da vida para si próprio, tanto no campo material quanto no campo subjetivo. Por fim, é neste campo que situo a relação (in) tensa entre os objetivos do fazer acadêmico e os da militância, entre a minha condição de participante não ativa nas lutas e a solicitação (nem sempre expressa claramente) por uma participação ativa, o que objetivamente justificaria o interesse pela causa e pela realização do estudo. Estar identificada com as lutas se apresenta como condição desejável para a construção de um espaço de interlocução com as mulheres que integram o movimento. 6

Referências Bibliográficas CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo. 2. ed. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Editora UNESP, 2000. DA MATTA, Roberto. O ofício do etnólogo, ou como ter Anthropological Blues. In: NUNES, Edson de Oliveria (Org.). A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 23-35. FONSECA, Claudia. Quando cada caso não é um caso: pesquisa etnográfica e educação. Revista Brasileira de Educação, n.10, p.58-78, 1999. FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p.231-249. GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 7. ed.rev. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. LAGO, Mara C. S. Modos de vida e identidade: sujeitos no processo de urbanização da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1996. MMCBRASIL. MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS DO BRASIL. Disponível em: <http://www.mmcbrasil.com.br/>. Acesso em: 02 ago. 2005. 7