CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA GERAL E ANÁLISE DO COMPORTAMENTO PSICOLOGIA CLÍNICA NA ANÁLISE DO COMPORTAMENTO ENFOQUE ANALÍTICO COMPORTAMENTAL SOBRE A ENURESE Julia Rangel Silva No presente trabalho, abordar-se-á uma temática bastante recorrente no cotidiano de crianças e seus cuidadores e, contudo, pouco elucidado em bibliografias científicas. Trata-se da enurese, definida como incontinência urinária ou, popularmente, como o não controle do fazer xixi. Catalogada como uma desordem da eliminação, a enurese é definida no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV) segundo alguns critérios: - Micção repetida, diurna ou noturna, na cama ou na roupa, involuntária ou intencional; - Ocorrer no mínimo duas vezes por semana, por pelo menos três meses, ou então causar sofrimento ou prejuízo significativo nos funcionamentos social, acadêmico (ocupacional) ou outras áreas importantes na vida do indivíduo; - Idade cronológica ou mental de no mínimo cinco anos; - A micção não se deve exclusivamente aos efeitos fisiológicos diretos de substâncias (diuréticos) ou a uma condição geral (diabetes, espinha bífida, transtorno convulsivo) (INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP, 2002). Ademais, a enurese pode se apresentar em dois tipos: primária ou secundária. No primeiro caso, define-se o critério de a criança nunca ter apresentado a continência urinária, ao passo que no segundo caso, tal disfunção é desenvolvida após um período de continência urinária estabelecida (por volta dos cinco a oito anos de idade). Um segundo critério define-se pela ocorrência da incontinência urinária do período diurno
ou noturno (durante o sono), classificando-se como enurese diurna no primeiro caso - e noturna, no segundo caso (OLIVEIRA; SANTOS; SILVARES, 1999). Comumente, a população atribui à enurese causas emocionais, neurológicas, fisiológicas ou, ainda, à má educação por parte dos pais. Entretanto, na literatura científica, dentre ela a Análise do Comportamento, encontra-se que tal distúrbio advém de um déficit comportamental na aquisição e na manutenção do controle do ato de urinar. Portanto, enquadra-se em uma falha na aprendizagem do controle mictório. Assim, considerando-se a falha na aprendizagem do controle moctório como possível desencadeadora da enurese, torna-se necessário retroceder ao contexto de tal aprendizagem. Sabendo-se que a falta de controle mictório é considerada patológica na criança com no mínimo 5 anos de idade, o que pode ter ocorrido antes disso para que este controle fosse empobrecido? Galuppo e Neri (1987) apontam que a análise da literatura sobre treino de toalete revela uma clara escassez de trabalhos educacionais ou preventivos, contra uma esmagadora maioria de estudos sobre tratamento da enurese [...] (p. 72). Há um momento no desenvolvimento infantil, anterior ao quinto ano de idade, em que a incontinência urinária ainda não é considerada um distúrbio, uma vez que a criança ainda não está pronta e/ou treinada para o controle de micção. Logo, o treino de toalete consiste em práticas destinadas a desenvolver na criança hábitos relacionados à continência urinária. Este treino está, por sua vez, inserido dentre os aspectos de socialização infantil, como o autocuidado, o autogorverno, atendimento a normas, ordens e limites, aquisição de papéis sexuais, e autoconhecimento. Tais aspectos da socialização infantil possibilitam que a criança integre-se ao seu ambiente social, de modo a nele atuar. Destarte, as habilidades relacionadas ao controle de micção, como os demais aspectos socializantes, são socialmente definidas, de modo a divergir entre culturas. O comportamento de toalete, por sua vez, inclui uma extensa cadeia de estímulos-respostas, como por exemplo: dirigir-se ao banheiro sob o controle da bexiga cheia, levantar-se do toalete após sensação de bexiga esvaziada, e assim por diante. Tendo em vista que o treino de toalete é um aspecto bastante relevante do desenvolvimento infantil, há preocupação entre vários autores de que ele ocorra de maneira mais suave e gradual, menos aversivo e mais reforçador para os adultos e crianças envolvidos, já que a teoria e a prática confirmam as consequências adversas de um treino demasiado precoce, intensivo ou punitivo. Nunca é demais lembrar que a
própria enurese pode se manifestar como um efeito colateral de inadequações no treino de controle de micção (GALUPPO; NERI, 1987, p. 68). Ainda segundo as autoras: Segundo Litrownik (1974), o treino de toalete em geral inclui três passos. No primeiro, treinando o hábito, a criança é colocada no penico ou vaso sanitário (S D ) e qualquer resposta de eliminação é seguida pela atenção dos pais ou outras recompensas. [...] Depois de algumas tentativas, a criança aprende a responder apropriadamente quando os pais colocam-na sentada no penico, mas ainda podem ocorrer acidentes. No segundo estágio, a criança começa a informar os pais, oralmente ou não, que quer ir ao banheiro, quando a eliminação está prestes a ocorrer. [...] O passo final frequentemente envolve um esmaecimento gradual, não sistemático, da intervenção dos pais, resultando num comportamento independente de toalete, por parte da criança (p. 69). A compreensão do senso comum a respeito da enurese, por sua vez, chama atenção para o recorrente fato: o adio da procura de ajuda profissional, na esperança de que a enurese se resolva sozinha, constituindo-se em um problema vivenciado silenciosamente pelas famílias. Além disso, nos casos em que há procura por ajuda, esta se dá muito frequentemente em direção a tratamentos farmacológicos. Segundo Oliveira; Santos; Silvares (1999): No Brasil, têm sido propostos tratamentos, mas, no geral, eles incorporam crenças e mostram desconhecimento acerca de diversas pesquisas já há muito realizadas e que envolvem metodologia científica. A própria bibliografia voltada para o público leigo é escassa e reflete, talvez, a pouca produção nacional de conhecimento sobre a enurese. [...] Essa problemática acerca da possibilidade de tratamento é fundamental, pois, enquanto se mantém o problema da enurese, outros problemas comportamentais se ampliam ou se perpetuam e a criança e sua família sofrem com o distúrbio nas mais diversas esferas (discriminações sociais, impedimento para realizar certas atividades etc.), recebendo um impacto negativo sobre sua auto-estima (p. 123). A referida citação alude para uma questão bastante relevante, no tocante dos efeitos da enurese sobre os demais âmbitos da vida do indivíduo portador de tal distúrbio. Este déficit comportamental pode se tornar um fator desencadeante de problemas emocionais para o indivíduo e daí, talvez, advenha a atribuição de causas emocionais para a enurese. Dentre os problemas emocionais decorrentes, podem-se citar alguns: ansiedade, vergonha, tristeza, desânimo e baixa auto-estima. Os pais também
podem sofrer os efeitos desta disfunção, já que muitas vezes não compreendem sua causa ou a compreendem erroneamente (COSTA; SILVARES, 2003). Por conta disso, torna-se preponderante que haja o envolvimento tanto dos indivíduos acometidos, como dos cuidadores, no tratamento da enurese. Como dito, o problema da enurese não implica uma solução baseada em intervenções farmacológicas, mas na aprendizagem e manutenção do comportamento de continência urinária, que pode afetar tanto os mecanismos fisiológicos como os que mantém o problema (OLIVEIRA; SANTOS; SILVARES, 1999). Habitualmente, a ajuda de um profissional da psicologia é requisitada pelos cuidadores depois que estes já consultaram a opinião médica e que se pôde, então, descartar causas físicas que requeiram tratamentos médicos específicos. A partir de então, entra em cena a avaliação psicológica (no caso, comportamental), a qual deve identificar as condições antecedentes e conseqüentes do comportamento enurético de cada caso, assim como as relações funcionais existentes entre essas condições e o comportamento. Para tanto, utilizam-se a entrevista clínica, os registros de conduta e, em menor medida, os questionários. Bragado (2002) assinala algumas áreas que deveriam ser exploradas durante a entrevista clínica. São elas: - Análise do comportamento enurético e de outras respostas implicadas: natureza do problema (tipo de enurese, origem, duração, freqüência); circunstâncias nas quais ocorre com maior probabilidade; conseqüências advindas de urinar-se ou de estar seco; habilidades aprendidas em relação à continência urinária; grau de autonomia da criança; hábitos de higiene e desenvolvimento evolutivo geral da criança. - Condições ambientais: averiguar se existem condições que estejam interferindo na apresentação do comportamento enurético (ex.: dificuldade para se chegar ao banheiro, para se acender a luz, etc). - Entorno familiar e atitudes ante a enurese: analisar como é o ambiente afetivo da criança, e quais as atitudes dos cuidadores perante o comportamento enurético da criança. - Tratamentos anteriores para a enurese: verificar se já foram utilizados tratamentos farmacológicos, psicológicos, alimentar, despertar noturno, etc; quais os resultados obtidos e suas ineficácias, afim de que não sejam repetidos os mesmos possíveis erros. - Outros problemas concomitantes e decorrentes da enurese (ex.: aleijamento social, baixa auto-estima).
- Fatores motivacionais para a realização do tratamento. Sobre os registros de conduta, a autora considera sua importância no sentido de colher dados objetivos que permitam estabelecer uma linha de base a dar consistência a futuros progressos. Tais dados poderiam ser: freqüência, hora e lugar de ocorrência dos episódios enuréticos, número de idas ao banheiro (no caso de enurese diurna), e freqüência de acidentes noturnos e de despertar espontâneo (no caso de enurese noturna). Na bibliografia consultada para este trabalho de base analítico comportamental, foi encontrada unanimidade no tratamento sugerido para a enurese noturna: o uso do Alarme de Urina, juntamente com a psicoterapia. Em Bragado (2002), encontra-se sobre este método: Em comparação com o tratamento farmacológico, é o procedimento mais seguro, não tem efeitos secundários, e, também, é o que consegue mais resultados efetivos a curto e a longo prazo. Ainda assim, é pouco comum que os profissionais médicos recomendem este procedimento, provavelmente porque a maioria entende que a enurese é um problema fundamentalmente fisiológico e não de aprendizagem, ou, até, como disse Moffat (1997), porque a farmacologia é mais familiar para os médicos do que o condicionamento (p. 120, texto original em espanhol). No cenário brasileiro, o Alarme de Urina foi desenvolvido no Projeto Enurese do Instituto de Psicologia da USP, em parceria com a Escola Politécnica. Basicamente, constitui-se, segundo a descrição do Projeto, em um "tapete" de plástico macio (colocado sob o colchão ou lençol), composto por um sensor que detecta umidade, conectado por um circuito aberto a um dispositivo que emite um som. O aparelho é alimentado por uma bateria de 9V que pode ser encontrada facilmente. Quando a pessoa urina em cima do tapete, o circuito fecha, e o alarme dispara. Com isso, o indivíduo desperta, interrompe a micção, contraindo o esfíncter, e tem de concluir a micção no banheiro (INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP, 2002). O que embasa este procedimento é a noção de condicionamento respondente, na qual se espera que, com a repetição de tal procedimento, acabe-se estabelecendo uma conexão funcional, progressivamente mais forte, entre a estimulação procedente da distensão da bexiga e as respostas de acordar e contrair o esfíncter. Dessa maneira, após a efetivação do condicionamento, ambas as respostas (acordar e contrair o esfíncter) ocorreriam sem o alarme (BRAGADO, 2002).
Além do Alarme de Urina, Oliveira; Santos; Silvares (1999) referem outros métodos de aprendizado da continência urinária. Tais como: Método de recompensa, Método do despertar, Treino de bexiga, Treino da cama seca (conjugados o Treino da bexiga e o Alarme de Urina) e Superaprendizagem (redução da possibilidade de recaídas ao usar o aparelho de alarme de urina). Para mais detalhes sobre estes métodos, sugere-se consultar a bibliografia supracitada. Faz-se aqui uma breve explicação de cada um destes métodos: Método de recompensa: Utilizado em crianças com mais de cinco anos, tanto em casos de enurese diurna, quanto de enurese noturna. Durante seu processo, os pais devem combinar com a criança que, se ela conseguir ficar seca durante um período de tempo o qual deve ser aumentado gradativamente até que se atinja o ficar seca durante todo o dia ou toda a noite - será recompensada com reforçadores positivos também graduados. Método do despertar: Consiste em os cuidadores despertarem a criança de seu sono, em período de tempo preestabelecido, para que ela vá urinar. Para isso, os cuidadores devem fazer um registro dos horários em que a criança faz xixi na cama, por meio de anotações do período em que ela permanece seca. Treino de bexiga: Inclui exercícios de controle de esfíncter, de retenção e liberação da urina. Neste treino, portanto, os pais devem acompanhar a criança ao banheiro, três vezes ao dia, e solicitarem que ela interrompa o fluxo de urina, alternando com reinícios deste fluxo. Este método pode contribuir na discriminação, por parte da criança, das sensações associadas a interromper e reiniciar o fluxo de urina, assim como no aumento da habilidade de controle esfincteriano. Treino da cama seca: Utilizado juntamente com o Treino da bexiga e com o Alarme de urina. Consiste em ensinar a criança a utilizar o alarme de urina, fazendo-se role playings da situação. Durante o período de uso do aparelho, deve-se fazer o registro da frequência de noites em que a criança faz xixi na cama. A principal característica deste método é o enfoque na responsabilização da criança sobre os procedimentos do uso do aparelho. É importante que os pais acompanhem constantemente o desempenho da criança sem, entretanto, executar as tarefas por ela. Cabe enfatizar que este procedimento só deve ser feito quando haja um desenvolvimento motor/cognitivo da criança suficiente para tal. Superaprendizagem: Tendo o objetivo de reduzir as possibilidades de recaídas da criança no uso do aparelho de urina, seu método consiste em fornecer à criança uma
quantidade maior de líquido antes de ela se deitar. Assim, tendo em vista que tal método deve ser utilizado quando a criança já tiver passado por 14 noites secas com o aparelho de urina, a superaprendizagem pode contribuir no fortalecimento progressivo da bexiga. Juntamente com qualquer um desses procedimentos, a psicoterapia comportamental é importante e necessária, pois, realizando a análise funcional do comportamento enurético de cada cliente, possibilita a identificação das contingências atuantes em cada caso, ou seja, a relação funcional entre eventos antecedentes, o comportamento e suas conseqüências. Assim, torna-se possível que sejam implementadas mudanças coerentes e funcionais no ambiente daquela criança, as quais contribuam para o aprendizado e manutenção do comportamento não-enurético (OLIVEIRA; SANTOS; SILVARES, 1999). Ainda, a psicoterapia comportamental enfatiza a prioridade que deve ser dada ao reforçamento positivo no processo de aprendizagem comportamental. Reforçadores arbitrários como elogios, reconhecimento, afeto, tempo com os pais demonstram-se relevantes para que a criança mantenha-se comprometida com o tratamento da enurese. Isso contribui para que, mais a longo prazo, o próprio comportamento não-enurético seja um reforçador natural para a criança, já que estaria associado ao manter-se seco, ganho de alta auto-estima, autonomia, e demais reforçadores sociais, assim como à eliminação de outros problemas associados à enurese. Referências BRAGADO, C. Características Clínicas, evaluacíon y tratamiento de La enuresis. In: CABALLO, V. E.; SIMÓN, M. A. (Org.). Manual de Psicología Clínica Infantil y Del Adolescente: Transtornos específicos. Madrid: Ediciones Pirámide, 2002. p. 99-134. COSTA, N. J. D. da; SILVARES, E. F. M. Enurese na adolescência: estudo de caso com intervenção comportamental. Interação em Psicologia, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 9-17. 2003. Disponível em: < http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&sqi=2&ve d=0cfsqfjaa&url=http%3a%2f%2fojs.c3sl.ufpr.br%2fojs2%2findex.php%2fpsic ologia%2farticle%2fdownload%2f3202%2f2564&ei=xc25t6fdjywhgwfbmddlc g&usg=afqjcnffr9hqyx0jhodpfjk_-eygy4g4pw>. Acesso em: 7 mai. 2012. GALUPPO, M. S. P.; NERI, A. L. Treino de toalete e tratamento da enurese: Conceitos básicos. In: NERI, A. L. (Org.). Modificação do Comportamento Infantil. Campinas: Papirus, 1987. p. 65-84.
OLIVEIRA, D. S. de; SANTOS, G. T.; SILVARES, E. F. M. A enurese infantil e o uso de alarme no seu controle. In: SILVARES, E. F. M. (Org.). Estudos de caso em psicologia clínica comportamental infantil: Vol. II. Campinas: Papirus, 1999. p. 121-155. INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP. Projeto Enurese. 2002. Disponível em: < http://www.projetoenurese.com.br/index.php>. Acesso em: 7 mai. 2012.