O trabalho infantil no Brasil e o papel da inspeção do trabalho



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Transcrição:

BuscaLegis.ccj.ufsc.Br O trabalho infantil no Brasil e o papel da inspeção do trabalho José Adelar Cuty da Silva* * José Adelar Cuty da Silva é Auditor-Fiscal do Trabalho, Chefe da Divisão de Fiscalização do Trabalho Infantil do Ministério do Trabalho e Emprego. O trabalho infantil no Brasil deve ser entendido como aquele que é realizado por pessoas com idade abaixo de 16 anos, ressalvada a condição de aprendiz a partir dos 14 anos [1]. Até 15 de dezembro de 1998 a idade mínima para admissão ao trabalho era de 14 anos, ressalvada a condição de aprendiz a partir dos 12 anos. Considerando essa elevação da idade mínima para o trabalho no final de 1998, e para exposição da série histórica das taxas de trabalho infantil na última década, vamos utilizar a faixa etária de 5 a 14 anos, que é utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a divulgação de suas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNADs). As pesquisas do IBGE demonstram que no período de 1992 a 2003 a redução do trabalho infantil foi da ordem de 53,84% no número de crianças e adolescentes trabalhando. Em 2003 foi estimado um número de 1.897.000 crianças e adolescentes trabalhando no mesmo grupo etário. Representa uma taxa de trabalho infantil de 5,81%. Dito de outra forma, de cada 100 crianças e adolescentes, cerca de 6 estavam trabalhando em 2003. Em 1992 havia cerca de 4.100.000 trabalhadores infantis, significando um percentual de 12,13% em relação à população da mesma faixa etária. Ou seja, de cada 100 crianças e adolescentes em 1992, 12 estavam em situação de trabalho infantil. Considerando-se apenas os dados da PNAD 2003, verifica-se que na faixa etária de 5 a 9 anos a taxa de trabalho infantil é de 1,27%, representando 208.931 crianças em atividades laborais. Embora o índice relativo seja muito reduzido, estando próximo à erradicação, a quantidade de crianças trabalhando ainda representa um desafio. Na faixa etária de 10 a 14 anos o percentual de crianças e adolescentes trabalhando é de 10,37% da população de mesma idade. Significam cerca de 1.688.000 em trabalho precoce. Em 1992 eram cerca de 3.500.000 crianças e adolescentes trabalhando. Uma das principais causas do trabalho infantil é a pobreza das famílias, que as leva a lançar mão do trabalho precoce de seus filhos. E o mais perverso nesse fenômeno é que a pobreza é, a um só tempo, causa e conseqüência do trabalho infantil. É o chamado ciclo da

pobreza. É que a pobreza leva os pais a usarem a mão-de-obra de seus filhos. E o fazem para aumentar sua renda e para minimizar o risco de interrupção do fluxo contínuo da mesma, causado por perda de emprego, perda de safra agrícola, etc. [2] Com o trabalho precoce os filhos ou não podem freqüentar uma escola ou, quando o fazem, têm um desempenho abaixo dos demais que não trabalham. Com isso, quando na fase adulta, em razão da baixa escolaridade, não têm condições de competir por uma vaga de trabalho que lhe proporcione uma boa renda, restando-lhe ocupações que exigem baixa ou nenhuma escolaridade e com parca remuneração, levando-o a permanecer na faixa da pobreza. Inserido nesse contexto, ao constituírem família, reproduzem a prática dos pais, de usar o trabalho dos filhos como fonte de renda, repetindo assim o ciclo de pobreza. Todavia, há um forte componente cultural na sociedade que dificulta melhores resultados na luta pela erradicação do trabalho infantil. São aqueles que entendem ser melhor trabalhar do que estar no ócio. Há inclusive programas assistenciais que ainda cultuam esse pensamento, equivocado por certo, pois ao escolherem o social ao legal, demonstram por completo as conseqüências do trabalho precoce para pessoas que ainda estão em processo de desenvolvimento. Esse comportamento só se reverte com a sensibilização, conscientização e mobilização. Estudos acadêmicos [3] indicaram que a escolaridade dos pais tem o efeito de reduzir a probabilidade de as crianças trabalharem e de aumentar a probabilidade de elas estudarem. Estes efeitos foram maiores para os meninos do que para as meninas. Ademais, a escolaridade do pai teve um efeito maior do que a da mãe sobre o trabalho das crianças, enquanto a escolaridade da mãe teve um efeito maior do que a do pai sobre a escolaridade das crianças. Parece que os pais estão mais envolvidos com problemas relacionados à renda familiar, e as mães se preocupam mais com o desempenho escolar e a formação de seus filhos. Outro estudo indica que o trabalho infantil impacta o desempenho escolar, de forma que os trabalhadores infantis apresentam um índice de freqüência à escola menor do que aqueles que não trabalham. Do mesmo modo, os que trabalham apresentam uma defasagem escolar maior do que aqueles que não trabalham. Afora essas conseqüências de ordem socioeducacional, merecem destaque as conseqüências para a saúde e desenvolvimento das crianças e adolescentes que ingressam precocemente no trabalho, muitas vezes sob condições nocivas até mesmo para os adultos. Nesse espaço não será possível discorrer sobre eles, mas as informações mais completas estarão disponíveis na 4ª edição do Mapa de Indicativos do Trabalho da Criança e do Adolescente, uma publicação do MTE que compila as avaliações da fiscalização do trabalho quanto aos municípios visitados e que apresentam focos de trabalho infantil, descrevendo as atividades econômicas em cada município onde ocorre esse fenômeno, com a indicação dos riscos à saúde oferecidos nas principais atividades. O Brasil conta com um arcabouço jurídico dos mais avançados no que tange à proibição do trabalho infantil. Some-se a isso os vários instrumentos internacionais dos quais é signatário e que demonstram o seu compromisso com o tema dos direitos humanos, em especial no que tange à questão da infância, dos quais há três instrumentos que merecem destaque. O primeiro é a Convenção dos Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas (ONU), ratificada pelo Brasil e promulgada em 21 de novembro de 1990. Por segundo a Convenção 182, sobre as piores formas de trabalho infantil, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 02 de fevereiro de 2000 e que entrou em vigor no País em 02 de fevereiro de 2001. O terceiro é a Convenção 138, sobre a

idade mínima para admissão ao emprego, cujo depósito da ratificação ocorreu em 28 de junho de 2001, passando a vigorar no Brasil em 28 de junho de 2002. As origens da Inspeção do Trabalho estão diretamente ligadas ao combate ao trabalho infantil. Em 1802, na Inglaterra, surge a primeira norma voltada para a proteção da criança, a Lei de Peel, que limitava a jornada diária de trabalho dos menores de idade para doze horas! A Revolução Industrial estava em plena expansão, mas o desenvolvimento econômico resultante não tornou melhor a vida dos trabalhadores, muito pelo contrário. O trabalho de crianças e adolescentes era o mais aviltante. Surge assim a inspeção de fábricas, instituída na Inglaterra em 1802, que era atribuída a eclesiásticos, magistrados e industriais aposentados, que poderiam cobrar multas, que lhes corresponderiam em 50%. Além disso, tinha caráter facultativo. Embora não tenha dado resultados, marcou o início de um processo de institucionalização dessa atividade. No Brasil, o marco de criação da inspeção do trabalho veio através do Decreto n. 1.313, de 17 de janeiro de 1891, e também umbilicalmente vinculado à proteção dos menores de idade. O seu art. 1º assim dispunha: É instituída a fiscalização permanente de todos os estabelecimentos fabris em que trabalharem menores, a qual ficará a cargo de um inspetor-geral, imediatamente subordinado ao Ministério do Interior, (...). (grifo nosso). A Constituição Federal confere à União a competência de organizar, manter e executar a inspeção do trabalho [5], cuja atribuição está conferida ao Ministério do Trabalho e Emprego [6], estando sua execução a cargo da Secretaria de Inspeção do Trabalho, que tem entre suas finalidades regimentais o combate ao trabalho ao trabalho infantil [7]. Ajustando-se a um novo quadro normativo no Direito brasileiro, principalmente à vista dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) buscou o aperfeiçoamento dos instrumentos de ação da inspeção do trabalho no que se refere ao tema do trabalho infantil. Em 23 de março de 2000 foi editada a Portaria n.º 7, da Secretaria de Inspeção do Trabalho, que instituiu em cada Delegacia Regional do Trabalho os Grupos Especiais de Combate ao Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente (GECTIPAs), os quais, em verdade, vieram substituir os até então existentes Núcleos de Combate ao Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente, que haviam sucedido, por sua vez, as Comissões Estaduais de Combate ao Trabalho Infantil criadas no âmbito do Ministério do Trabalho em 1996 em todos os estados da federação. No atual momento a inspeção do trabalho passa por um processo de rearranjo institucional, fruto da Lei n.º 10.910, de 15 de julho de 2004, que reestrutura a remuneração das carreiras do fisco federal, impondo a elas metas de natureza arrecadatória, o que exigiu uma reorganização administrativa e funcional da inspeção do trabalho, adequando-a para uma linha de fiscalização voltada para a arrecadação. Por força das novas disposições legais foi editada a Portaria n.º 541/2004 [8], que, entre várias outras disposições, revogou a Portaria n.º 7/2000, tornando extintos os GECTIPAs, medida essa que gerou um impacto não só na própria instituição como também entre os inúmeros atores sociais envolvidos com o tema do trabalho infantil, porque, reconhecendo a importância do papel de tais grupos na rede de proteção social na prevenção e erradicação do trabalho infantil, preocuparam-se com a descontinuidade do trabalho que vinha sendo realizado. Ainda que compreensível a primeira reação, não se afigura correta a interpretação de ter havido um descompromisso do MTE com o combate ao trabalho infantil. A uma porque é

uma prioridade absoluta para o Estado, a sociedade e a família, conforme o comando do art. 227 da Constituição Federal. A duas em razão dos instrumentos ratificados pelo Brasil perante a comunidade internacional com o compromisso de promover os direitos humanos em todas as suas extensões, com destaque para o documento Um Mundo para as Crianças, aprovado na Sessão Especial da Assembléia Geral da ONU realizada em Nova York, EUA, em maio de 2002. Foi com base nesse documento que a Fundação Abrinq propôs a cada candidato à Presidência da República em 2002 a assinatura de uma cartacompromisso para comprometer a Administração Federal nas políticas para a infância, tendo por referência as metas do Um Mundo para as Crianças. O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu esse compromisso, e hoje está consolidado o Plano Presidente Amigo da Criança e do Adolescente, contemplando as ações voltadas para as metas da infância. Fiel a esse arcabouço jurídico-normativo interno e externo, mas também por um compromisso pessoal, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva elevou o combate ao trabalho infantil como uma das primazias da Administração Pública Federal no Plano Plurianual de seu governo (PPA 2004/2007), no qual o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil faz parte do rol de prioridades [9]. O referido Programa conta com cinco ações, entre as quais está a ação Fiscalização para o Combate ao Trabalho Infantil, sob a responsabilidade da Secretaria de Inspeção do Trabalho, cujo orçamento previsto no PPA é de R$ 2.579.220,00, a serem utilizados nos seus quatro anos de vigência. É nesse contexto e por força de uma nova normativa remuneratória da carreira de auditoria-fiscal do trabalho é que surge uma outra estrutura na inspeção do trabalho, dado que as suas atribuições envolvem também questões sociais relevantes, como o combate ao trabalho infantil, ao trabalho escravo, às práticas discriminatórias no ambiente de trabalho, a fiscalização para eliminação e prevenção dos riscos de acidentes de trabalho, a fiscalização do contrato de aprendizagem e da contratação de pessoas com deficiência física, entre outras atividades, que não poderiam ser relevadas pelo MTE. De modo a não prejudicar a execução dessas atividades específicas, mas também em função de medidas prementes que deveriam ser tomadas em exíguo prazo à luz da nova legislação, a Portaria n.º 541/2004, ao mesmo tempo em que revoga a portaria de criação dos GECTIPAs, cria nas Delegacias Regionais do Trabalho os Núcleos de Apoio às Atividades de Fiscalização (NAAFs), onde se concentram atividades tais como planejamento, inteligência fiscal, trabalho infantil, entre outras. Não obstante, seguindo um processo contínuo de mudanças e já tendo um horizonte de médio prazo para implementá-las (janeiro de 2005), a Secretaria de Inspeção do Trabalho deu continuidade a esse processo de aperfeiçoamento de sua atuação nessa nova conjuntura legal. Assim, com atenção especial voltada para os temas dos direitos humanos afetos ao MTE, estaremos criando os Núcleos de Temas Sociais nas Delegacias Regionais do Trabalho, incorporando exclusivamente temas dessa natureza, quais sejam: o combate ao trabalho infantil, a contratação de aprendizes e de pessoas com deficiência física, a discriminação no trabalho e questões de gênero e raça no trabalho, traduzindo corolários da política de garantir o trabalho decente preconizado pela OIT. Mas o tema do trabalho infantil demanda uma estratégia especial à luz das prioridades mencionadas. Desse modo, para executar as diretrizes do governo federal, a Secretaria de Inspeção do Trabalho está criando também Grupos Especiais de Fiscalização Móvel para o combate ao trabalho infantil, de modo semelhante ao modelo empregado no combate ao trabalho escravo. Tais grupos atuarão prioritariamente nas regiões Norte e Nordeste, com foco no meio rural. Importante ressaltar que o MTE, prestigiando o diálogo social, decidiu discutir o plano de ações dos grupos móveis e dos Núcleos de Temas Socais em conjunto com os órgãos e instituições

que integram a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (CONAETI), coordenada pelo MTE, que congrega representações do governo federal, dos trabalhadores, dos empregadores, da sociedade civil, além do Ministério Público do Trabalho, onde participam também como colaboradores permanentes a OIT e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Outro aspecto a destacar é que esses grupos móveis realizarão procedimentos que tenham uma interface direta com os programas sociais do governo federal, especialmente o Bolsa Família e o PETI, cujas execuções estão a cargo do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). De modo sintético, podemos dizer que a inspeção do trabalho passa por uma fase de transição, em que um novo modelo de atuação está sendo desenhado para o enfrentamento do trabalho infantil. É seguro afirmar que ao longo da última década a inspeção do trabalho acumulou consideráveis recursos de ordem institucional (atribuições legais e poder), organizacional (atuação especializada e capilarizada e direcionamento específico ao tema) e administrativo (verbas e meios de apoio) no enfrentamento do trabalho infantil, os quais, somados ao recurso técnico-cognitivo dos auditores-fiscais do trabalho e a uma atitude voltada para o diálogo social, consolidam um importante ativo político, no sentido da ação do Estado, para a atuação do MTE na sua missão de combater o trabalho infantil. Não é impróprio sustentar que esse ativo político teve uma importância tática para a consolidação da estratégia de articulação com outros atores sociais que compõem hoje a rede de proteção social criada em torno das crianças e adolescentes no Brasil. E esse ativo continuará a ser empregado para tecer de forma mais ampla essa rede. É que a inspeção do trabalho, em razão dos recursos mencionados, tem desempenhado um papel destacado nos níveis estadual e municipal no interior do País para a arregimentação e mobilização de atores locais, promovendo reuniões técnicas para focalizar e dar realce ao problema e propor articulações em torno de ações comuns voltadas para a prevenção e erradicação do trabalho infantil, principalmente nos municípios, papel esse que teve como aliado importante o Ministério Público do Trabalho. Uma das principais expressões desse ativo político da inspeção do trabalho é a sua participação efetiva em todos os Fóruns Estaduais de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, hoje instalados em todas as unidades da Federação. Não se poderia deixar de registrar o papel da inspeção do trabalho na mobilização e articulação dos integrantes dos fóruns estaduais em torno do Dia Nacional pelo Registro Civil de Nascimentos realizado em outubro de 2003, em todos os estados. A inspeção também está presente no Fórum Nacional, instância de discussões e proposições da qual participam órgãos dos governos federal, estaduais e municipais, organizações nãogovernamentais, representações de trabalhadores e de empregadores, fórum esse que tem sido ponto de partida de várias iniciativas e de boas práticas no tema do trabalho infantil, como é o exemplo da organização e a realização pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, como marco de seu 10º aniversário de criação, da Caravana Nacional Contra o Trabalho Infantil, que está percorrendo todos as unidades da Federação retomando a mobilização dos governos estaduais e da sociedade em torno do tema. O novo desenho que está sendo construído em torno dos grupos móveis vem para dar continuidade a esse processo, buscando um ganho de atuação institucional objetivando dar uma nova visibilidade para o problema. Os números obtidos pela inspeção do trabalho espelham os seus resultados. De janeiro de 2003 a outubro de 2004 foram encontrados em situação de trabalho infantil

15.311 crianças e adolescentes com idade inferior a 16 anos. Ao mesmo tempo, fruto da ação fiscal no mesmo período, foram admitidos como aprendizes no Brasil 39.943 adolescentes com idade entre 14 e 18 anos incompletos. As políticas governamentais e, sobremodo, a atuação conjunta e articulada de vários atores sociais governamentais e nãogovernamentais, tanto nas esferas federal, estadual ou municipal, seja na esfera pública ou privada, explicam o resultando na queda contínua do trabalho infantil no Brasil conforme apontado no início do texto. É por isso digno de reconhecimento a iniciativa da ARPEN de promover essa campanha contra a exploração do trabalho infantil. São medidas como essa que contribuem decididamente para a mudança de cultura da sociedade em relação a temas sociais como é o caso do trabalho infantil. Como já dito, é a através da sensibilização, conscientização, mobilização e engajamento que vamos obter sucesso naquele que deve ser o maior objetivo da sociedade: garantir uma infância e uma adolescência de qualidade para nossas crianças e adolescentes. O lema da campanha da ARPEN reflete com muita propriedade esse espírito, pois, de fato, não há dinheiro que pague por uma infância perdida. [1] Constituição Federal, art. 7º, inciso XXXIII, alterado pela Emenda Constitucional n.º 20, de 15 de dezembro de 1998. [2] KASSOUF, Ana Lúcia. Aspectos Socio-Econômicos do Trabalho Infantil no Brasil. Brasília : Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 2002, p. 23. [3] idem, p. 114. [4] SCHARTZMANN, Simon. Trabalho Infantil no Brasil Brasília : OIT, 2001. p. 14. [5] Constituição Federal, art. 21, inciso XXIV. [6] Lei n.º 10.683, de 28 de maio de 2003, art. 27, inciso XXI, alínea c. [7] Portaria do MTE n.º 483, de 15 de setembro de 2004, Anexo VI, art. 1º, inciso I. [8] Publicada no DOU n.º 201, de 19/10/2004, Seção I, p. 96/97. [9] Lei n.º 10.707, de... de 2003, art. 2º - Anexo III. Lei n.º 10.934, de 11 de agosto de 2004 Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) art. 2º, Anexo I. SILVA, José Adelar Cuty da. O trabalho infantil no Brasil e o papel da inspeção do trabalho. Disponível em http://www.arpenbrasil.org.br/artigos.view.asp?idartigo=35. Acesso em 18/07/2006.