O Alto rio Madeira e as ocupações humanas pretéritas: um diálogo entre a geomorfologia fluvial e a arqueologia (Rondônia, Brasil)



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Transcrição:

Versão online: http://www.lneg.pt/iedt/unidades/16/paginas/26/30/185 Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial II, 625-629 IX CNG/2º CoGePLiP, Porto 2014 ISSN: 0873-948X; e-issn: 1647-581X O Alto rio Madeira e as ocupações humanas pretéritas: um diálogo entre a geomorfologia fluvial e a arqueologia (Rondônia, Brasil) The Upper Rio Madeira and preterit human occupations: a dialogue between fluvial geomorphology and archeology (Rondonia State, Brazil) M. Mayumi Tizuka 1 Artigo Curto Short Article 2014 LNEG Laboratório Nacional de Geologia e Energia IP Resumo: Pesquisas arqueológicas na região do Alto rio Madeira apresentam contextos para a existência de sítios com uma longa história de transformação da paisagem pelo homem durante o Holoceno. Entretanto, utilizar-se apenas da localização dos sítios e compilação de documentação cartográfica sem adequação de escalas e entendimento dos processos de formação dos sítios arqueológicos podem induzir a um viés amostral de espacialização dos mesmos na paisagem às margens de grandes rios. Este viés por sua vez pode definir diferentes interpretações sobre os modelos de assentamento em determinada região. A discussão aqui apresenta uma iniciativa em se pensar na relação dos sítios arqueológicos com a paisagem pretérita e a problemática de inserir e integrar os dados geológicos e arqueológicos em grandes rios amazônicos. Palavras-chave: Quaternário, Geoarqueologia, Paisagem, Cronologia, Rio Madeira. sedimentares locais e processos que mudam ao longo do tempo conforme evoluem (Brown, 1997; Charlton, 2008), portanto considerar apenas o traçado atual de um rio é ignorar o caráter dinâmico do sistema fluvial e, no caso da arqueologia em específico, a possibilidade de associar sítios arqueológicos com canais fluviais pretéritos (Rubin et al., 2003) deve ser explorada. Estes estudos reforçam que as evidências geológicas e arqueológicas tendem a fortalecer umas às outras e mesmo uma estimativa básica de ordem geral de magnitude dos eventos geomorfológicos são essenciais para verificar a plausibilidade da cronologia cultural (Lathrap, 1968). Abstract: Archaeological research in the Upper Madeira River presents contexts for the existence of sites with a long history of landscape transformation by man during the Holocene. However, if you use only the location of the sites and compiling cartographic documentation without appropriateness of scales and understanding of the formation processes of the archaeological sites can lead to a biased sampling of spatial distribution of the same landscape on the banks of large rivers. And that in turn, can set different interpretations of the models of settlement in a particular region. The discussion here presents an initiative in thinking in respect of archaeological sites with the former landscape and the problem of integrating geological and archaeological data in large Amazonian rivers. Keywords: Quaternary, Geoarchaeology, Chronology, Madeira river. 1 Arqueotrop - Laboratório de Arqueologia dos Trópicos - Museu de Arqueologia e Etnologia. Universidade de São Paulo. Avenida Professor Almeida Prado, 1466 Butantã. CEP: 05508-070 São Paulo/SP. E-mail: mmtizuka@gmail.com 1. Introdução Apresenta-se neste trabalho uma discussão sobre a implantação na paisagem dos sítios arqueológicos précoloniais no Alto rio Madeira através de uma abordagem geoarqueológica (Fig. 1). As planícies de inundação são paisagens dinâmicas que exibem variedade de ambientes Fig. 1. Localização da área do presente trabalho (Alto rio Madeira) e sítios arqueológicos. Fig. 1. Location of the present work (Upper Rio Madeira) and archaeological sites area. Localizado na porção noroeste de Rondônia, sudoeste do Cráton Amazônico, o rio Madeira é o principal afluente do rio Amazonas (Filizola & Guyot, 2011), quarto maior rio do mundo em vazão (Latrubesse et al., 2005) e um dos nove mega-rios anabranching (Latrubesse, 2008). É um

626 M. Mayumi Tizuka / Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial II, 625-629 típico rio de águas brancas que transporta elevadas quantidades de sedimentos finos em suspensão desde as suas nascentes nos Andes, formado pelo encontro dos rios Beni e Mamoré em curso aproximado de 3 000 km, sendo parte do curso em questão recentemente impactado pela construção de dois empreendimentos hidroelétricos. Nesta área são identificadas rochas pertencentes de unidades paleoproterozóicas até coberturas sedimentares cenozóicas, cuja morfogênese é controlada por fatores litológicos, climáticos e tectônicos (Scandolara & Fuck, 2001; Souza- Filho et al., 1999). Pesquisas arqueológicas nesta região (Kipnis et al., 2010; Almeida, 2013; Neves, 2013) demonstram que a ocupação das suas margens e ilhas apresenta contextos que corroboram com dados de Miller (1992) para a existência de sítios com uma longa história de transformação da paisagem pelo homem durante o Holoceno. 2. Material e métodos Foram agrupados dados dos levantamentos arqueológicos na região (Miller, 1978; Furnas, 2005; Scientia, 2011a, b) e consulta no banco de dados na superintendência do IPHAN em Porto Velho, além da aquisição de material cartográfico, produtos de sensoriamento remoto (Imagens Topodata/INPE), e base cartográfica do sítio arqueológico Vista Alegre (Scientia Consultoria Científica). A análise de fácies sedimentares do mapeamento geológicogeomorfológico baseou-se em descrições verticais dos afloramentos, e da interpretação arquitetural dos depósitos fluviais com descrições das geoformas dominantes em cada unidade e seus componentes morfométricos. O Mapa geomorfológico utilizou os preceitos conceituais da classificação proposta por Latrubesse et al. (1998) e Latrubesse & Carvalho (2006) que já foram testados em diversos grandes rios sul americanos. 3. Resultados Foram identificados 139 sítios arqueológicos pré-coloniais nas ilhas e margens do Alto rio Madeira. Estes sítios apresentam evidências de material cerâmico e/ou lítico e/ou rupestres. As planícies aluviais apresentam morfologia da largura do canal em torno de 700 m, com o ponto mais estreito à jusante da Cachoeira de Jirau (380 m), atingindo máximos de 1920 m, a jusante da Cachoeira do Teotônio. Sua distribuição ocorre de forma generalizada, regular e muito próxima ao canal atual. Os depósitos de planícies de inundação apresentam coloração marrom escura nas areias médias/finas muito bem selecionadas no topo, e marrom avermelhado nos depósitos de canal/barra, com argilas cinzas na base. Óxidos de ferro frequentemente impregnam os sedimentos, além de folhas e troncos erodidos das margens. Na margem direita observase diversos locais com re-deposição e/ou erosão por sedimentos atuais decorrentes de variações anuais do nível d água com locais sazonalmente alagados. As ilhas são caracterizadas como barras centrais, longitudinais com acreções laterais de depósitos arenosos. Os terraços fluviais são caracterizados por arenitos muito grossos a conglomeráticos com estratificação cruzada na base, endurecidos com ferro, coloração alaranjada a cinza, com blocos de até 10 cm, mal selecionados, semiconsolidados, compostos por fragmentos de rochas, lateritas e minerais essencialmente de quartzo. Da base para o topo, há granodecrescência ascendente, por vezes com intercalação de arenitos finos-médios com argilas. O sítio arqueológico Vista Alegre, multicomponencial, localiza-se a jusante da cachoeira do Teotônio (62 m a 80 m) que de acordo com a base geomorfológica, situa-se sobre superfícies de aplainamento com baixo grau de dissecação (Fig. 2). O Setor I, mais próximo ao rio, apresenta do topo para a base, duas camadas arqueológicas (A e B), dispostas sobre sedimentos arenosos (C - depósitos aluviais), compostos por areias finas bem selecionadas, bruno amarelado a amareloavermelhado, raízes, fragmentos de carvões, radículas e concreções argilosos. A estratigrafia do setor II é semelhante, porém as investigações arqueológicas atingiram menores profundidades. No Setor III, em cotas superiores a 80m, do topo para a base, as três camadas identificadas com vestígios arqueológicos (A, B e C) estão dispostas sobre solos avermelhados, argilosos, com intrusões bióticas ou mesmo diretamente sobre o cascalho laterítico (camada D). Não há até o momento estudos que indiquem idades para a formação destes solos ou mesmo mapeamentos pedológicos de detalhe para este local. Neste setor, a estratigrafia representa de fato, a descrição existente no mapeamento base consultado como de superfície de aplainamento. Com as descrições estratigráficas das escavações arqueológicas foi possível construir um novo mapa de detalhe que atinge níveis de múltiplas unidades geomorfológicas, tanto em unidades agradacionais como em unidades de degradação (Fig. 3). 4. Discussão Os dados arqueológicos demonstram que durante o Holoceno os grupos humanos ocuparam as margens e ilhas do rio Madeira, principalmente nas áreas próximas as cachoeiras. Existe uma forte relação com áreas de cachoeiras e sítios arqueológicos, que pode ser atribuído à disponibilidade de recursos nestes locais e a importância do ponto de vista simbólico. A maior parte das ilhas, próximas ou distantes destas cachoeiras, apresentam afloramentos rochosos em seu entorno, e suportam sítios pré-coloniais de longa duração, sendo que em alguns deles ocorre inclusive a formação dos solos antrópicos conhecidos como terra preta indígena (Kampf & Kern, 1989). A análise destes dados demonstra que uma análise físico-paisagística para a formulação de um modelo preditivo (Kipnis, 1997) é complexa, uma vez que toda a margem do rio pode ser caracterizada como de alta sensibilidade arqueológica, com padrões de assentamento principalmente no entorno das áreas de cachoeiras, porém não exclusivos. Com o refinamento dos dados sobre a cronologia cultural da região (Zuse, 2011; Almeida, 2013), futuros modelos de

Ocupações humanas pretéritas no Alto Madeira (Rondônia) 627 assentamento da ocupação humana pretérita no Alto rio Madeira levando em consideração a evolução geomorfológica-fluvial do próprio rio como um dos fatores principais poderão ser construídos. Até o momento, os dados produzidos a partir da geoarqueologia contribuem para refinar o mapa geomorfológico, com escala de detalhe que permite revelar processos de formação/deposição importantes que outros levantamentos a níveis regionais não permitem. Entretanto, a problemática de adaptação de escalas reflete na dificuldade da integração dos dados arqueológicos em uma escala regional, mesmo para se comparar modelos de assentamento de ocupação em sítios entre duas áreas como o Alto rio Madeira e a Amazônia Central. Sítios arqueológicos que ocupam menor área podem desaparecer em mapas com maiores escalas, pois a montagem de mapas temáticos com escalas de maior detalhe não é sempre realizada. A avaliação do entorno do sítio arqueológico, assim como a coleta de amostras são ainda pouco exploradas. Ressalta-se que da mesma forma que a floresta é dinâmica, os rios também apresentam dinâmica intensa e devem ser analisados em conjunto. Não considerar essa dinâmica e evolução da paisagem associada a grandes rios pode levar a quadro enganoso da densidade de populações pretéritas e acentuar a questão da não evidência de sítios, uma vez que pode ser desconsiderado o total de sítios já erodidos. No sudoeste amazônico, existem dados que indicam há pelo menos 8 000 anos o início da ocupação humana em diversos ambientes, podendo ser ainda mais antigos (Miller, 1983). Em algumas partes da Amazônia verifica-se, no entanto hiatos nas sequências cronológicas locais durante o Holoceno médio, que de acordo com Neves (2013) devem representar menos o sinal da ausência de ocupações e talvez a adoção de estratégias econômicas que deixaram menor visibilidade no registro arqueológico. Diversas questões permanecem em aberto com relação aos rios tropicais, como as interações da morfologia, hidrologia e ecologia (Sinha et al.2012). Seja por uma questão paleoclimática mais ou menos favorável em determinadas áreas, seja por um viés amostral de levantamento e identificação de sítios as margens de grandes rios ou por modificações do curso destes rios devido a sua dinâmica fluvial, existem incertezas sobre o que aconteceu durante o Holoceno e a sua relação com a permanência ou não de populações pré-históricas em uma determinada região. Fig. 2. Implantação na paisagem do sítio Vista Alegre. Fig. 2. Implementation of the site Vista Alegre in the landscape.

628 M. Mayumi Tizuka / Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial II, 625-629 Fig. 3. Mapa temático produzido com exemplo do sítio Vista Alegre. Fig. 3. Thematic map produced with the example site Vista Alegre. 5. Conclusões As análises geoarqueológicas podem fornecer importantes informações em relação à evolução da planície aluvial holocênica e auxiliar no refinamento do mapa geomorfológico local, como no caso do sítio Vista Alegre. É necessário além de adaptar uma escala de trabalho com os estudos arqueológicos, criar algumas classificações de padrões de assentamento específicas, como unidades múltiplas onde caberia ali a inserção de sítios em diferentes unidades geológica e/ou geomorfológicas. Com o refinamento dos estudos sobre a cronologia humana, os estudos da paisagem pretérita, sob o ponto de vista geoarqueológico, modelos de ocupação humana detalhados para todo o Holoceno podem ser construídos. A produção de mapas em escala de detalhe pode ser realizada através de múltiplos atributos, demonstrando o alto potencial ainda iminente de pesquisas para esta região. A discussão aqui apresentada demonstra uma iniciativa em se pensar na relação dos sítios arqueológicos com a paisagem pretérita e a problemática de inserir e integrar os dados geoarqueológicos em grandes rios amazônicos. Agradecimentos A autora agradece ao Dr. Renato Kipnis da Scientia Consultoria Científica e IPHAN/RO pela disponibilização dos dados, à Silvana Zuse pelas contribuições técnicas, à Juliana Santi e Francisco Pugliese pelas informações compartilhadas durante as escavações arqueológicas do sítio Vista Alegre. Referências Almeida, F.O., 2013. A Tradição Policroma no Alto rio Madeira. Tese de doutorado, Museu de Arqueologia e Etnologia/Universidade de São Paulo (não publicada), 650 p. Brown, A.G., 1997. Alluvial geoarchaeology: floodplain archaeology and environmental change. Cambridge manuals in Archaeology, 404 p. Charlton, R., 2008. Fundamentals of Fluvial Geomorphology. London: Routledge, 256 p. Filizola, N., Guyot, J.L., 2011. Fluxo de sedimentos em suspensao nos rios da Amazônia. Revista Brasileira de Geociências, 41, 566-576. Furnas, 2005. Estudo de Impacto Ambiental - Complexo do rio Madeira, UHE Santo Antônio e UHE Jirau. Furnas. Kampf, N., Kern, D.C., 1989. Antigos assentamentos indígenas na formação de solos com Terra Preta Arqueológica na Região de Oriximiná, Pará. Revista Brasileira de Ciência do Solo, 13, 219-25. Kipnis, R., 1997. O Uso de modelos preditivos para diagnostica recursos arqueológicos em áreas a serem afetadas por empreendimentos de impacto ambiental. In: S.B. Caldarelli, (Ed.). Simpósio sobre Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural: Repercussões dos Dez Anos da Resolução CONAMA nº 001/86 sobre a Pesquisa e a Gestão dos Recursos Culturais no Brasil. Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia. IGPA-UCG, Goiania, Goiás, 34-40. Kipnis, R., Tizuka, M.M., Zuse, S., Santi, J.R., 2010. Arqueologia do Alto Madeira Rondônia. In: Atas do II Encontro Internacional de Arqueologia Amazônica. Resumos. CD. Manaus, Amazonas.

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