ÉTICA, POLÍTICA E EPISTEMOLOGIA: BREVE ENSAIO SOBRE O PÓS-POSITIVISMO E A TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS*



Documentos relacionados
1.3. Planejamento: concepções

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES SCHLA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Construtivismo. UNICURITIBA Curso de Relações Internacionais Teoria das Relações Internacionais II Professor Rafael Reis

Análise de discurso como ferramenta fundamental dos estudos de Segurança Uma abordagem Construtivista

FILOSOFIA SEM FILÓSOFOS: ANÁLISE DE CONCEITOS COMO MÉTODO E CONTEÚDO PARA O ENSINO MÉDIO 1. Introdução. Daniel+Durante+Pereira+Alves+

SOCIEDADE E TEORIA DA AÇÃO SOCIAL

METODOLOGIA DO ENSINO DA ARTE. Número de aulas semanais 4ª 2. Apresentação da Disciplina

A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A IMPORTÂNCIA DAS DISCIPLINAS DE MATEMÁTICA E FÍSICA NO ENEM: PERCEPÇÃO DOS ALUNOS DO CURSO PRÉ- UNIVERSITÁRIO DA UFPB LITORAL NORTE

OS CONHECIMENTOS DE ACADÊMICOS DE EDUCAÇÃO FÍSICA E SUA IMPLICAÇÃO PARA A PRÁTICA DOCENTE

ESTUDO DE CUSTOS E FORMAÇÃO DE PREÇO PARA EMPREENDIMENTOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA. Palavras-Chave: Custos, Formação de Preço, Economia Solidária

CURSO PREPARATÓRIO PARA PROFESSORES. Profa. M. Ana Paula Melim Profa. Milene Bartolomei Silva

Katia Luciana Sales Ribeiro Keila de Souza Almeida José Nailton Silveira de Pinho. Resenha: Marx (Um Toque de Clássicos)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA

Palavras-chave: Políticas Curriculares; Formação de Professores; Qualidade da Educação; Plano Nacional de Educação

ESTRATÉGIAS DE ENSINO NA EDUCAÇÃO INFANTIL E FORMAÇÃO DE PROFESSORES. Profa. Me. Michele Costa

Período Tuma 1: Quinta-feira: 14h00 as 18h00 Turma 2: Quinta-feira: 19h00 as 22h20

USO DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES PRESENCIAL E A DISTÂNCIA

Módulo 11 Socialização organizacional

O Planejamento Participativo

VIII JORNADA DE ESTÁGIO DE SERVIÇO SOCIAL

Midiatização: submissão de outras instituições à lógica da mídia.

ENTREVISTA. Clara Araújo

7 Conclusões e caminhos futuros

EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E POLÍTICAS PÚBLICAS SOCIAIS

SUGESTÕES PARA ARTICULAÇÃO ENTRE O MESTRADO EM DIREITO E A GRADUAÇÃO

Algumas vantagens da Teoria das Descrições Definidas (Russel 1905)

PROJETO DE PESQUISA. Antonio Joaquim Severino 1. Um projeto de bem elaborado desempenha várias funções:

As mudanças climáticas globais e as ONGs socioambientais brasileiras: novas estratégias de conservação para a Amazônia.

Projeto de Sistemas I

EMENTAS DAS DISCIPLINAS ESTUDOS REGIONAIS, TEMAS EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS E TÓPICOS EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS 2 /2015 TURNO MANHÃ

Aula 05 Raciocínio Lógico p/ INSS - Técnico do Seguro Social - Com Videoaulas

Unidade II FUNDAMENTOS HISTÓRICOS, TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DO SERVIÇO SOCIAL. Prof. José Junior

Texto base para discussão na Jornada Pedagógica julho/2009 O PLANO DE ENSINO: PONTE ENTRE O IDEAL E O REAL 1

Construção, desconstrução e reconstrução do ídolo: discurso, imaginário e mídia

Fluminense (UFF/RJ). Palavras-Chaves: Graduação, Licenciamento Ambiental, prática crítico-reflexivo, periódicos científicos.

Análise e Desenvolvimento de Sistemas ADS Programação Orientada a Obejeto POO 3º Semestre AULA 03 - INTRODUÇÃO À PROGRAMAÇÃO ORIENTADA A OBJETO (POO)

PROJETO DE PEQUISA CURSO: BACHAREL EM TEOLOGIA

Universidade de Brasília

Entrevista com Heloísa Lück

EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA E AS NOVAS ORIENTAÇÕES PARA O ENSINO MÉDIO

Uma globalização consciente

CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ECONÔMICO CONCEITO DE DIREITO ECONÔMICO SUJEITO - OBJETO

ITINERÁRIOS DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: O ESTÁGIO SUPERVISIONADO E A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA

Curso de Economia da Conservação

REALIZAÇÃO DE TRABALHOS INTERDISCIPLINARES GRUPOS DE LEITURA SUPERVISIONADA (GRULES)

TIPOS DE REUNIÕES. Mariangela de Paiva Oliveira. As pessoas se encontram em diferentes âmbitos:

Um espaço colaborativo de formação continuada de professores de Matemática: Reflexões acerca de atividades com o GeoGebra

universidade de Santa Cruz do Sul Faculdade de Serviço Social Pesquisa em Serviço Social I

Amigos concurseiros, Administração Pública (Banca FGV)

APADRINHAMENTO AFETIVO. PROJETO AFETO QUE AFETA

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO 2º SEMESTRE DE 2015

Por uma pedagogia da juventude

REVEL NA ESCOLA: LINGUÍSTICA APLICADA A CONTEXTOS EMPRESARIAIS

PRAXIS. EscoladeGestoresdaEducaçãoBásica

Pedagogia Estácio FAMAP

Estética, Filosofia, Cultura e outras Linguagens. Felipe Szyszka Karasek

O TIGRE E A DEMOCRACIA: O CONTRATO SOCIAL HISTÓRICO

Objetivos da aula: Emile Durkheim. Ciências Sociais. Emile Durlheim e o estatuto da cientificidade da sociologia. Profa. Cristiane Gandolfi

O professor que ensina matemática no 5º ano do Ensino Fundamental e a organização do ensino

I. INTRODUÇÃO. 1. Questões de Defesa e Segurança em Geografia?

A efetividade das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil

PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: ELABORAÇÃO E UTILIZAÇÃO DE PROJETOS PEDAGÓGICOS NO PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM

TENDÊNCIAS RECENTES DOS ESTUDOS E DAS PRÁTICAS CURRICULARES

Projeto Político-Pedagógico Estudo técnico de seus pressupostos, paradigma e propostas

ASSISTÊNCIA SOCIAL: UM RECORTE HORIZONTAL NO ATENDIMENTO DAS POLÍTICAS SOCIAIS

Uma reflexão sobre Desenvolvimento Económico Sustentado em Moçambique

PROJETO DE LEITURA E ESCRITA LEITURA NA PONTA DA LÍNGUA E ESCRITA NA PONTA DO LÁPIS

CENTRO UNIVERSITÁRIO UNA ANÁLISE DOS INDICADORES E METAS DO ACORDO DE RESULTADOS DA DIRETORIA DE FISCALIZAÇÃO DO DER/MG.

RELAÇÃO ENTRE FONÉTICA E FONOLOGIA. Miguél Eugenio Almeida UEMS Unidade Universitária de Jardim. 0. Considerações iniciais

DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE) Bom-dia, Excelentíssimo. Senhor Ministro-Presidente, bom-dia aos demais integrantes

PRÓ-MATATEMÁTICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

CASTILHO, Grazielle (Acadêmica); Curso de graduação da Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de Goiás (FEF/UFG).

HISTÓRIAS EM REDE. Programa de valorização da relação do indivíduo com a empresa, sua identidade, seus vínculos e o sentimento de pertencimento.

Empresa como Sistema e seus Subsistemas. Professora Cintia Caetano

Puerta Joven. Juventud, Cultura y Desarrollo A.C.

SOCIEDADE, EDUCAÇÃO E VIDA MORAL. Monise F. Gomes; Pâmela de Almeida; Patrícia de Abreu.

Anaís Medeiros Passos Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGPOL UFRGS)

Aula 1: Demonstrações e atividades experimentais tradicionais e inovadoras

Resumo Aula-tema 01: A literatura infantil: abertura para a formação de uma nova mentalidade

A GESTÃO INTEGRADA DOS RECURSOS NATURAIS E DO MEIO AMBIENTE: CONCEITOS, INSTITUIÇÕES E DESAFIOS DE LEGITIMAÇÃO

A APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA NA EDUCAÇÃO BIOLÓGICA: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

(Prof. José de Anchieta de Oliveira Bentes) 3.

O consumo de conteúdos noticiosos dos estudantes de Ciências da Comunicação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

difusão de idéias A formação do professor como ponto

DEMOCRÁTICA NO ENSINO PÚBLICO

Vera F. Rezende Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo- UFF. Todas as cidades são comuns, complexas e diversas. Esse é o argumento que

O olhar do professor das séries iniciais sobre o trabalho com situações problemas em sala de aula

O PROCESSO DE INCLUSÃO DE ALUNOS COM DEFICIÊNCIAS NO MUNICÍPIO DE TRÊS LAGOAS, ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL: ANÁLISES E PERSPECTIVAS

Alfabetizar e promover o ensino da linguagem oral e escrita por meio de textos.

ATIVIDADE DE NEGOCIÇÃO

ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS: que lugar é este?

A PESQUISA NO ENSINO DE CIÊNCIAS NATURAIS: RELAÇÃO ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA DOCENTE DE ENSINO

Oficina Cebes DESENVOLVIMENTO, ECONOMIA E SAÚDE

PROJETO RECICLAR PARA PRESERVAR

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM DO ESPORTE NA ESCOLA POR MEIO DE UM ESTUDO DE CASO

MUDANÇAS NA ISO 9001: A VERSÃO 2015

Inclusão Digital em Contextos Sociais

A Interdisciplinaridade como Metodologia de Ensino INTRODUÇÃO

Transcrição:

ÉTICA, POLÍTICA E EPISTEMOLOGIA: BREVE ENSAIO SOBRE O PÓS-POSITIVISMO E A TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS* Arthur Bernardes do Amaral** Na medida em que os teóricos das Relações Internacionais derrubam os muros do gueto ajudados por seus amigos do outro lado e deslizam para dentro da metrópole do pensamento social e político na esperança de juntar-se à vida da cidade e ajudar a moldar seu futuro, um olhar descontente lhes encontra os olhos (Chris Brown, Turtles All the Way Down, 1994, p. 1656). O ano de 1989 foi um divisor de águas no desenvolvimento da disciplina de relações internacionais. A publicação de World of Our Making de Nicholas G. Onuf (1989) [1] e do volume organizado por Michael Shapiro e James Der Derian (1989) em torno da questão da intertextualidade viabilizaria o deslanchar de vias intelectuais alternativas ao mainstream: o chamado espírito de 1989 (Debrix, 2003: 3) impulsionaria contestações das bases fundacionalistas do pensamento positivista/racionalista. Neste mesmo ano, Yosef Lapid (1989) identificaria na questão epistemológica a base do chamado Terceiro Debate. Segundo o autor, estaríamos diante da cisão entre duas maneiras de pensar a realidade internacional: a disciplina se dividiria entre as perspectivas positivistas e póspositivistas. A critica pós-positivista desfiaria os pressupostos do mainstream em vários âmbitos. Da questão da linguagem às normas e regras, da identidade ao Estado, múltiplos foram os (novos e velhos) campos pelos quais se enveredaram estas análises alternativas da questão internacional. Nesse sentido, caso tenhamos como proposta explorar novas temáticas e repensar antigas categorias, uma investida no sentido de refletir sobre a política faz-se indispensável. Esta empreitada, contudo, tem sido vitima freqüente de reações nada hospitaleiras [2]. Durante considerável parcela do século XX, o positivismo buscou ditar os limites dentro dos quais poderia se desenvolver a disciplina das Relações Internacionais de modo a efetiva e sistematicamente deslegitimar, desautorizar e marginalizar quaisquer abordagens que não se alinhassem a sua ortodoxia. Essa visão convencional requisita para si a prerrogativa de ter desvendado a realidade da política. A política teria uma essência própria a ela. Esta política propriamente

dita, nos termos realistas, seria a política do poder: para os autores desta corrente a política trata da busca individual (nacional) pelo poder e seu gerenciamento coletivo (Guzzini, 2005: 519). Esta busca é informada pela distinção entre um ambiente internacional onde prevaleceria, em última instância, a razão de estado e um âmbito interno onde prevalece a moralidade nacional. A dinâmica desta política (aspas minhas) internacional seria determinada pelos diferenciais de poder e sua distribuição. Esta divisão entre espaços nos quais a moralidade é possível e locais onde ela não se aplicaria permeia tanto a concepção moderna de política quanto a noção convencional do caráter específico das RI (Walker, 1993). É a partir da contraposição binária entre a política dentro do estado territorial soberano e as meras relações interestatais no âmbito do sistema internacional que se constitui a fronteira entre as esferas nacional e internacional. Pautada por uma epistemologia positivista, esta concepção do mainstream se pretende objetiva, isto é, livre da influência de valores e decididamente atemporal. Contudo, esta resolução do problema da política na modernidade é, também ela, informada por um comprometimento ético específico. Ao admitir uma separação geopolítica de várias particularidades e a conseqüente incapacidade de se estabelecer uma forma de vida política sujeita a princípios éticos nas relações internacionais, estamos tecendo considerações acerca das possibilidades éticas da boa vida política (Walker, 1993). O próprio fato de se negar a aplicabilidade de princípios éticos para além de certas fronteiras (nacionais) passa por um comprometimento igualmente normativo com a ética da absoluta exclusão (idem: 66). Em poucas palavras, só se torna possível advogar a impossibilidade da ética nas relações internacionais através de alegações éticas: mesmo as (meta)teorias com pretensão (sic!) de alcançar alguma neutralidade têm um inescapável componente normativo, pois implicam escolhas e de todas as escolhas decorrem exclusões. Nesse sentido, se política tem algo próprio dela, isto seria a responsabilidade ética dos agentes e nunca a absoluta ausência de moralidade. Em última instância, a política propriamente dita é intrinsecamente normativa, assim como todas as demais atividades humanas. Caso admitamos que a política é a arte do possível (Guzzini, 2005) e aceitemos que nossa concepção de horizonte de possibilidades (éticas) está intimamente relacionada a nossos parâmetros ontológicos [o que compõe ou poderia compor o mundo], evidenciamos o caráter constitutivo, mais que meramente descritivo, que disciplinas (sic!) como as Relações Internacionais têm sobre a realidade das relações internacionais (Walker, 1993). Sendo uma realidade 6

social e/ou discursivamente constituída, ela não pode ser desvinculada da História. Tentativas de se alcançar leis gerais, ahistóricas e objetivas são equivocadas, pois tanto a política quanto o conhecimento duas esferas indissociáveis, sobretudo, mas não unicamente, para autores pós-modernos tem um caráter contingente e historicamente situado. A empresa pós-positivista almeja, exatamente, denunciar este caráter. No sentido de reforçar este perspectivismo teórico, nunca é demais lembrar que: A Teoria é [feita] sempre por alguém e para algum propósito. Todas as teorias têm uma perspectiva. Perspectivas derivam de uma posição no tempo e no espaço, [mais] especificamente tempo e espaço social e político. O Mundo é observado de um ponto de vista..., [logo] não há algo como a teoria em si mesma. (Cox, 1986: 1539). Desta maneira, toda política é ética, e toda ética é conjunto dinâmico de práticas históricas (Walker, 1993: 51). As abordagens pós-positivistas não meramente substituem a política propriamente dita ; muito mais que isso, elas retomam o componente normativo esquecido pelas abordagens convencionais de modo a politizar as Relações Internacionais enquanto disciplina e prática política (Guzzini, 2005). Assim operando, estaríamos mais aptos a analisar a política propriamente dita (agora sem aspas). A politização mencionada anteriormente implica o reconhecimento do caráter social do poder e da política, nos permitindo pensar em contrafactuais e questionar a inevitabilidade do status quo (idem: 520). Em poucas palavras, a preocupação com a mudança e a potencialidade transformadora presente nas perspectivas pós-positivistas viabiliza uma postura crítica e engajada no sentido de pensar alternativas não só (meta)teóricas como também políticas para as a questão da comunidade política. Tal movimento, obviamente, tem gerado um certo desconforto entre abordagens mais conservadoras, que acusam as perspectivas críticas de não mais que se comprometer com uma concepção ética de transformação da esfera internacional em um mundo de fins. A acusação procede, ao menos em parte. Efetivamente, informados pela rejeição de um ponto arquimediano a partir do qual entes particulares possam julgar inequivocamente a alteridade, as perspectivas críticas buscam se afastar de um engajamento político excludente e etnocêntrico (Brown, 1995). Abordagens assim comprometidas reconhecem que há um dever [ético-normativo] de alargar as fronteiras das comunidades moral e política de modo a fazer com que todas as partes tanto insiders quanto outsiders desfrutem de direitos iguais como co-legisladores em um imaginário reino universal de fins (Linklater, 1998: 84). Esta responsabilidade moral de se engajar 7

com a alteridade por meio de uma política/ética do diálogo, é claro, implica tratarmos a esfera internacional e os entes que a povoam como fins em si mesmos. Contudo, como argumentamos anteriormente, optar por não tomar esta via é uma escolha igualmente ética e, por isso, comprometida com um determinado mundo de fins em si mesmos: um mundo onde a soberania excludente e totalizadora da modernidade etnocêntrica é o fim em questão (Linklater, 1998). Dessa forma, a acusação de que os pós-positivistas negligenciariam a política propriamente dita na tentativa de transformar a esfera internacional em um mundo de fins simples e obviamente não procede. Denunciando a contingência espaço-temporal da política e do conhecimento, as abordagens críticas expõem a fragilidade de argumentos convencionais que buscam desvincular a ética da política: torna-se claro que ao invés de mutuamente excludentes, estamos diante de categorias que se co-constituem. Conceitos como o de poder efetivamente define[m] o reino da ação política e a justificam (Guzzini, 2005: 508) ao nos informar discursivamente os limites de nosso horizonte de possibilidades. Este poder performativo e o papel constitutivo que tanto o discurso quanto o conhecimento desempenha sobre as práticas políticas é uma das principais contribuições do pensamento pós-positivista. Em última análise, se há alguma política propriamente dita, estaria seria uma política inexoravelmente ética, como quaisquer outras relações sociais. A questão é, pois, com que sorte ética nos engajamos. Uma vez profanado o épico positivista, cabe aos agentes a responsabilidade da escolha entre, de um lado, uma ética/política/epistemologia conservadora, excludente, ahistórica e, de outro, um comprometimento normativo com projetos mais dialógicos, inclusivos, talvez emancipatórios. NOTAS [1] Para uma versão mais didática do argumento original de 1989, ver Onuf (1998). [2] Para uma competente discussão das reações contrárias mais comumente referenciadas e de maior repercussão na área, ver Smith (2000). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BROWN, Chris. 'Turtles All the Way Down': Anti-Foundationalism, Critical Theory and International Relations. LINKLATER, Andrew (Editor). International Relations: 8

Critical Concepts in Political Science, Volume 4. Florence, KY, USA: Routledge, 2000 [1994]. BROWN, Chris. International Political Theory and the Idea of World Community. International Relations Theory Today. BOOTH, Ken e SMITH, Steve. University Park: Pennsylvania State University Press, 1995. COX, Robert. W. Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory. LINKLATER, Andrew (Editor). International Relations: Critical Concepts in Political Science, Volume 4. Florence, KY, USA: Routledge, 2000 [1986]. DEBRIX, François. Language, Nonfoundationalism, International Relations. Language, Agency, and Politics in a Constructed World. DEBRIX, François. Armonk, New York: M.E. Sharpe, 2003. GUZZINI, Stefano. The Concept of Power: a Constructivist Analysis. Millennium: Journal of International Studies 33 (3), 2005, p. 495-522. LAPID, Yosef. The Third Debate: On the Prospects of International Theory in a Post-Positivist Era. International Studies Quarterly 33(3), 1989, p. 235-254. LINKLATER, Andrew. The Transformation of Political Community: Ethical Foundations of the Post-Westphalian Era. Columbia: University of South Carolina Press, 1998. DER DERIAN, James e SHAPIRO, Michael J. International/Intertextual Relations: Postmodern Readings of World Politics. New York, Lexington Books, 1989. p. 207-229. ONUF, Nicholas. Constructivism: A User's Manual. International Relations in a Constructed World. KUBALVOVA, Vendulka; ONUF, Nicholas Greenwood; KOWERT, Paul. Armonk, New York, M. E. Sharpe, 1998. SMITH, Steve. The discipline of international relations: still an American social science? British Journal of Politics and International Relations 2(3), 2000, p. 374-402. WALKER, R. B. J. Inside/Outside: International Relations as Political Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. RESUMO: Durante a maior parte do século XX, o positivismo buscou ditar os limites dentro dos quais poderia/deveria se pensar a disciplina das Relações Internacionais. Neste contexto, as teorias tradicionais requisitavam para si a prerrogativa de terem descoberto a realidade da política. Neste breve ensaio, critico esta pretensão, demonstrando as contradições inerentes aos discursos que negam a possibilidade de existência ética e normativa no ambiente internacional. Defendo, como alternativa, que exploremos o potencial analítico das abordagens pós-positivistas para que possamos compreender melhor o nexo entre Ética, Política e Epistemologia no âmbito da teoria/prática das relações internacionais. 9

PALAVRAS-CHAVE: Ética; Política; Epistemologia; Pós-positivismo; Teoria das Relações Internacionais. ABSTRACT: During most of the 20th century positivism sought to impose the limits within which the International Relations discipline could/should be thought. In this context, traditional theories claimed the prerogative of uncovering the reality of politics. In this short essay, I criticize this pretension showing the inherent contradictions present in discourses that denies the possibility of an ethical and normative existence in the international realm. I proposed, alternatively, that we should explore the analytical potential of the post-positivist approaches for a better understanding of the nexus between Ethics, Politics and Epistemology in the theory/practice of International Relations. KEY-WORDS: Ethics; Politics; Epistemology; Post-positivism; International Relations Theory. * Agradeço ao professor João Pontes Nogueira (IRI PUC-Rio) pela oportunidade de participar dos instigantes debates promovidos em suas aulas. Sem o estímulo do professor, esta humilde contribuição não seria possível. Possíveis falhas e/ou omissões, obviamente, são de minha exclusiva responsabilidade. ** Mestrando em Relações Internacionais (PUC-Rio). Pesquisador do Laboratório de Estados do Tempo Presente (UFRJ). Contato: arthur.bernardes@gmail.com 10