DUAS ÓTICAS NUM FOCO: DRUMMOND ENTRE POEMA E CINEMA
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- Estela Corte-Real de Sousa
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1 DUAS ÓTICAS NUM FOCO: DRUMMOND ENTRE POEMA E CINEMA Rosana Pereira Lima 1 Silvana Faria Doria 2 Introdução O poema Caso do Vestido (anexo 01), de Carlos Drumond de Andrade, apresenta um diálogo entre mãe e filhas carregado de muita sentimentalidade. Na conversa, movida pelo curioso interesse das meninas em conhecer a origem do vestido que se encontrava pendurado na sala da casa, a mãe revela a causa da partida do marido, o adultério. Portanto, a ideia central do poema está em torno da traição do seu esposo que se apaixona por outra mulher. O desejo de possuí-la era tão maior que, em nome da submissão ao casamento, a esposa pede a tal mulher que dê ao seu marido o prazer de deitar-se com ele. Após a consumação do adultério, ambos abandonam a cidade juntos. A amante, que, a princípio, não manifestava afeto pelo homem, vê-se apaixonada por ele, no entanto, ao fim, é arrasada pelo seu desprezo e desgosto. Decide, então, retornar à cidade da esposa para devolver-lhe o vestido que guardara durante todo esse tempo em companhia do seu esposo e pedir-lhe perdão. A figura do marido de volta ao lar não aparece de forma tão entusiasta; ao contrário, é narrada de maneira muito comum, sem surpresas, fortes emoções, como se já se esperasse pela volta (ANDRADE, 1985, p.157). A leitura do poema em paralelo com a leitura do cinema A palavra no texto literário permite que o leitor induza, tenha impressões variadas a respeito do universo temático da obra, por meio das próprias marcas linguísticas explícitas ou, muito frequentemente, pela dedução a que é motivado o leitor. Nesse aspecto, o texto escrito apresenta-se como um campo vasto de possibilidade de interação semântica. O não dito pelo escritor no poema, muitas vezes, o antes, o depois, a motivação dos atos, não apresentados na obra, aguça pressuposições de quem a lê. Para tanto, conhecer o perfil, o contexto de produção 1 Pós-graduanda pela Faculdade José Augusto Vieira 2 Mestranda PROFLETRAS/UFS 1
2 dos autores aflora ainda mais o imaginário do leitor. Além disso, o processo da intertextualidade construído é justificado na obra literária, por reunir experiências fictícias da problemática do cotidiano, fazendo o leitor/receptor encontrar-se nela. Em referência a Umberto Eco, Patrícia e Suely (2005) salientam a força da polifonia que o texto literário proporciona, ou seja, as várias vozes, e a lacuna deixada pelo escritor, para enfim ser preenchida pelo receptor do texto, capaz, então, de também construí-lo. A arte que se utiliza prioritariamente da imagem, difundida, por exemplo, no cinema, não consegue causar esse mesmo efeito no espectador, haja vista o trabalho que se dá além do código escrito. Todavia, pode-se concluir que a linguagem não verbal provoca outras sensações e até reações no espectador incapaz de ser proporcionada pelo código escrito. Assim, os dois meios, poema e cinema, têm diferenças na reprodução. Na tela, os efeitos técnicos viabilizam um trabalho com a estética, no plano da expressividade, do cenário, do figurino, da música, os quais têm maior artifício para agradar o público, conforme defendem Patrícia e Suely (2005). Desse modo, linguagem verbal e não-verbal fundem-se na construção de sentido. Esta, no entanto, recebe, na maioria das vezes atenção secundária por motivo de maior atração existente entre o que diz a imagem e a receptividade do espectador, que é conduzido a um pensamento já induzido dentro dessa relação. Fato é que ambas as linguagens tem em comum a representação de uma visão de mundo, cada qual respeitando as suas especificidades. É o que afirma Lopes: A palavra, instrumento de que se serve a literatura, e a imagem, de que se serve o cinema, são duas linguagens que se assemelham a princípio, porque ambas expressam a visão do mundo, mas distintas por usarem dois códigos diferentes. (2007, p. 322). Essas discussões ganharão respaldo maior a partir da comparação que adiante se fará entre o poema Caso do vestido, de Drumond, apresentado no início desta seção e sua adaptação para o cinema. Com essa análise comparativa será possível identificar elementos que fidelizam a adaptação em relação à obra de origem e/ou aspectos que se distanciam ou complementam a narrativa. Antes, faz-se necessário pontuar que a obra cinematográfica se torna um trabalho complementar ao texto original quando este é de propriedade do espectador, que, no momento em que assiste, já dispõe da capacidade, enquanto leitor, de 2
3 estabelecer ou romper ligações entre os dois meios. Esse conhecimento prévio da obra, por vezes, frustra ou concretiza as expectativas do leitor-espectador. Quanto as principais diferenças no meio pelo qual a história é contada, vê-se que eles exploram diferentes elementos. No texto lido, o papel do leitor nas inferências necessárias é bem maior, já no teatro, muitas informações são passadas pelo cenário, pelo narrador ou diretamente pelos personagens. A televisão, por outro lado, mostra ao receptor a mensagem de uma forma bem mais clara, a leitura passa a ser um processo mais coletivo, e conduz os telespectadores a conclusões comuns. Suelly e Patrícia discutem sobre a mudança de discursividade, em que o perfil dos espectadores do material televisivo é alienado e não crítico diante do que vê, de forma que apenas buscam a ocupação para o tempo ocioso (Patrícia e Suely, 2005). Entretanto, se o espectador do filme já passou pela experiência da leitura do poema, conforme propõe o presente artigo, há a ressalva de que se trata de um público mais seleto e crítico. Conceber os dois gêneros sob a ótica em que cada qual se realiza também é importante para a compreensão das especificidades e intenção de cada um. De acordo com Lopes (2007), a linguagem literária proporciona maior amplitude e profundidade, capaz de transcender tempo e espaço e se renovar a cada leitura. Ao contrário, o cinema dispõe da vantagem de usar paralelamente o tempo e o espaço, de apresentar ao espectador os fatos acontecendo no mesmo instante em que ele assiste e, ainda mais, articular os espaços sem que para percebê-los o telespectador faça qualquer esforço. Uma vez colocadas genericamente as semelhanças e diferenças proporcionadas pela leitura do poema em paralelo com a leitura do cinema, faz-se importante demonstrar, em dados específicos, como O caso do vestido se apresenta em ambos os meios, na construção das palavras em Drummond, e na configuração das cenas em Paulo Thiago. A transposição da palavra em movimento: do poema ao cinema O vestido, filme de 2003, dirigido por Paulo Thiago, foi livremente inspirado no poema O caso do Vestido de Carlos Drummond. O triângulo é representado por Gabriela Duarte, como Bárbara, Ana Beatriz Nogueira, como Ângela, Leonardo Vieira, como Ulisses; aliás, primeira particularidade notada, uma vez que o poema não 3
4 designa nomes a nenhum dos personagens, fato que o cinema não poderia preservar. O ar de mistério na personagem do poema, citada como a dona permanece nas telas através das características de Bárbara, incógnita, usando disfarces, e peruca, a princípio, e sempre imprevisível. Um dado interessante de se destacar é a exploração que o filme faz de recitações literárias, misturando as cenas com a declamação de algumas poesias, a princípio o próprio Drummond é citado por Ulisses ao recitar Canção amiga : Caminho por uma rua que passa em muitos países. Se não se vêem, eu vejo e saúdo velhos amigos. Eu distribuo um segredo como quem anda ou sorri. Carlos Drummond de Andrade A referência inicial a tal poema estabelece uma clara intertextualidade com o poeta, a qual permanece em outros personagens, como Bárbara ao falar eu sou a mulher que veio de longe, mensagem que o verso de Drummond já anunciava Era uma dona de longe no próprio poema O caso do vestido. Além disso, o filme usa compositores como Caetano Veloso e Gil na fala da personagem: Estou aqui de passagem, sei que algum dia adiante aqui vou morrer, de susto, de bala, ou de vício. No filme há ainda outras cenas que misturam as artes literária e cineasta, como em uma apresentação de Dom Casmurro, descrita pelo personagem como o Otelo brasileiro. No final do filme a frase de Ângela De tudo fica um pouco ao questionar seu marido Ulisses sobre a sua partida, volta a recitar Drummond, agora na poesia Resíduo. Inclusive, o teor dessa poesia é forte se comparado ao enlace do filme, bem como da poesia homônima, uma vez que o esposo volta para casa ao final, num momento que faz tudo parecer um sonho, e o resíduo evidente, no filme, é o vestido sendo queimado lá fora. Considerações Finais Analisar ambas as manifestações literárias permite que se aponte o quanto a poesia de Drummond apresenta artifícios fecundos à expressividade artística. Inúmeros pontos do poema o fazem expressivo e vivo, características fundamentais para à transposição cinematográfica. Uma linguagem próxima do popular, um nível de 4
5 intimidade na fala do eu lírico e o ritmo dinâmico da narrativa já simulam no imaginário do leitor uma visualização, uma vez que o poema por si já sugere ação e imagem. Assim, o artigo buscou discutir em quais momentos o poema e o cinema se imbricaram ou divergiram. Por mais que haja, como se expôs na análise, uma correspondência estreita entre ambos os planos, cada manifestação artística explora, diferentemente, os recursos que lhes são inerentes. Uma vez analisados os principais pontos, é válido enaltecer o quanto a expressividade literária de Drummond pode ser estendida em diversos recursos, sempre surpreendendo e atraindo o público alvo, sejam leitores ou telespectadores. REFERÊNCIAS ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova reunião. Rio de Janeiro: José Olympio, LOPES, Moacir C. Literatura x cinema x literatura. ALCEU v. 8 n.15 p. 322 a 330 jul./dez FLORY, Suely Fadul Villibor (org.). Narrativas ficcionais: da literatura às mídias audiovisuais. São Paulo: Arte & Ciência, acesso em 06 de dezembro, 2013, às 9h 30min acesso em 06 de dezembro, 2013, às 10h 57min 5
6 ANEXO 01 Caso do Vestido Carlos Drummond de Andrade Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego? Minhas filhas, é o vestido de uma dona que passou. Passou quando, nossa mãe? Era nossa conhecida? Minhas filhas, boca presa. Vosso pai evém chegando. Nossa mãe, dizei depressa que vestido é esse vestido. Minhas filhas, mas o corpo ficou frio e não o veste. O vestido, nesse prego, está morto, sossegado. Nossa mãe, esse vestido tanta renda, esse segredo! Minhas filhas, escutai palavras de minha boca. Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se. E ficou tão transtornado, se perdeu tanto de nós, se afastou de toda vida, se fechou, se devorou, chorou no prato de carne, bebeu, brigou, me bateu, me deixou com vosso berço, foi para a dona de longe, mas a dona não ligou. Em vão o pai implorou. Dava apólice, fazenda, dava carro, dava ouro, beberia seu sobejo, lamberia seu sapato. Mas a dona nem ligou. Então vosso pai, irado, me pediu que lhe pedisse, a essa dona tão perversa, que tivesse paciência e fosse dormir com ele... Nossa mãe, por que chorais? Nosso lenço vos cedemos. Minhas filhas, vosso pai chega ao pátio. Disfarcemos. Nossa mãe, não escutamos pisar de pé no degrau. Minhas filhas, procurei aquela mulher do demo. 6
7 E lhe roguei que aplacasse de meu marido a vontade. Eu não amo teu marido, me falou ela se rindo. Mas posso ficar com ele se a senhora fizer gosto, só pra lhe satisfazer, não por mim, não quero homem. Olhei para vosso pai, os olhos dele pediam. Olhei para a dona ruim, os olhos dela gozavam. O seu vestido de renda, de colo mui devassado, mais mostrava que escondia as partes da pecadora. Eu fiz meu pelo-sinal, me curvei... disse que sim. Sai pensando na morte, mas a morte não chegava. Andei pelas cinco ruas, passei ponte, passei rio, visitei vossos parentes, não comia, não falava, tive uma febre terçã, mas a morte não chegava. Fiquei fora de perigo, fiquei de cabeça branca, perdi meus dentes, meus olhos, costurei, lavei, fiz doce, minhas mãos se escalavraram, meus anéis se dispersaram, minha corrente de ouro pagou conta de farmácia. Vosso pais sumiu no mundo. O mundo é grande e pequeno. Um dia a dona soberba me aparece já sem nada, pobre, desfeita, mofina, com sua trouxa na mão. Dona, me disse baixinho, não te dou vosso marido, que não sei onde ele anda. Mas te dou este vestido, última peça de luxo que guardei como lembrança daquele dia de cobra, da maior humilhação. Eu não tinha amor por ele, ao depois amor pegou. Mas então ele enjoado confessou que só gostava de mim como eu era dantes. Me joguei a suas plantas, 7
8 fiz toda sorte de dengo, no chão rocei minha cara, me puxei pelos cabelos, me lancei na correnteza, me cortei de canivete, me atirei no sumidouro, bebi fel e gasolina, rezei duzentas novenas, dona, de nada valeu: vosso marido sumiu. Aqui trago minha roupa que recorda meu malfeito de ofender dona casada pisando no seu orgulho. Recebei esse vestido e me dai vosso perdão. Olhei para a cara dela, quede os olhos cintilantes? quede graça de sorriso, quede colo de camélia? quede aquela cinturinha delgada como jeitosa? quede pezinhos calçados com sandálias de cetim? Olhei muito para ela, boca não disse palavra. Peguei o vestido, pus nesse prego da parede. Ela se foi de mansinho e já na ponta da estrada vosso pai aparecia. Olhou pra mim em silêncio, mal reparou no vestido e disse apenas: Mulher, põe mais um prato na mesa. Eu fiz, ele se assentou, comeu, limpou o suor, era sempre o mesmo homem, comia meio de lado e nem estava mais velho. O barulho da comida na boca, me acalentava, me dava uma grande paz, um sentimento esquisito de que tudo foi um sonho, vestido não há... nem nada. Minhas filhas, eis que ouço vosso pai subindo a escada. Texto extraído do livro "Nova Reunião - 19 Livros de Poesia", José Olympio Editora , pág
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