O FILÓSOFO DO SENTIDO E A COMUNICAÇÃO
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- Tomás de Abreu Branco
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1 O FILÓSOFO DO SENTIDO E A COMUNICAÇÃO Marialva Barbosa * Resumo: O objetivo do texto é descortinar a teoria da narrativa de Paul Ricoeur nos aspectos em que ela pode ser mais rica para pensar os aportes comunicacionais. A questão da intriga, da mimese, da configuração, da refiguração e da pré-figuração do texto, o mundo do texto e o mundo do leitor e a questão da temporalidade são alguns conceitos trabalhados por Ricoeur que este artigo enfoca, procurando compreender o sentido global da obra desse que é, sem dúvida, um dos maiores filósofos do século XX. Palavras-chave: narrativa; Paul Ricoeur; temporalidade. Abstract: The objective of the text is to disclose the theory of the narrative of Paul Ricouer in the aspects where it can be richer to think arrives in communication relation. The question of intrigues, of mimese, of the configuration, re-figuration and daily pay-figuration of the text, the world of the text and the world of the reader and the question of the temporality are some concepts worked for Ricoeur that this article focuses, looking for to understand the global direction of the workmanship of that it is, without a doubt, one of the biggest philosophers of century XX. Key words: narrative; Paul Ricoeur; temporality. Ainda que sua obra não enfoque diretamente a comunicação, Paul Ricoeur, ao desenvolver um complexo aporte teórico em relação à questão da narrativa, * Professora no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em História pela mesma universidade. Pós-Doutora em Comunicação pelo LAIOS-CNRS Paris, França. Conexão Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p , jan./jun
2 oferece uma contribuição ímpar para se pensar a comunicação como um processo complexo. Inscrita na teoria dos gêneros, a questão da narrativa, na obra desse que foi um dos mais importantes filósofos do século XX e que é chamado filósofo do sentido, não se resume a uma problemática lingüística. Para o pensador francês, narrar é uma forma de estar no mundo e, dessa forma, entendê-lo. É através da narrativa que se pode reunir e representar no discurso as diversas perspectivas existentes sobre o tempo. Essa unificação se dá por uma operação mimética. Nos inúmeros trabalhos consagrados à função narrativa, mas sobretudo em Tempo e narrativa, existem três preocupações essenciais: a de preservar a amplitude, a diversidade e a irredutibilidade dos usos da linguagem ; a de associar as formas e as modalidades que existem nos jogos de narrar e, finalmente, por à prova a capacidade de selecionar e de organizar a linguagem, quando essa se estrutura em unidades textuais. Nesse sentido, o texto se torna meio apropriado para fazer uma espécie de ponte entre o vivido e o narrado. (RICOEUR, 1987). A evidência de que a nossa cultura produz inúmeras definições do ato de narrar, transformando-o em gêneros plurais, fez com que se produzisse também uma dicotomia básica entre os textos: de um lado, as narrativas que têm pretensão à verdade (o discurso da ciência e do Jornalismo, por exemplo) e de outro, as narrativas ficcionais, sejam as que utilizam a linguagem escrita (literatura), sejam as que utilizam a imagem (filmes, fotografia, telenovelas, etc.). É contra esta classificação sem fim, que Ricoeur constrói a sua hipótese: a existência de uma unidade entre os múltiplos modos e gêneros narrativos. Para isso parte do pressuposto de que o caráter temporal é o comum da experiência humana. Tudo o que se narra acontece no tempo, desenvolve-se temporalmente; e o que se desenvolve no tempo pode ser contado. (RICOEUR, 1987, p. 24). Para ele, só se pode reconhecer o processo temporal porque é narrado. Essa reciprocidade entre narratividade e temporalidade é o tema de Tempo e narrativa. E ao tratar da qualidade temporal da experiência como referência comum da história e da ficção, o que o autor está fazendo é constituir, em um único problema, ficção, história e tempo. A questão central é identificar a característica fundamental do ato narrativo. Seguindo Aristóteles, Ricoeur designa como intriga (o muthos) a composição verbal que faz com que o texto se transforme em narração. A organização da intriga consiste, pois, na operação de seleção e organização dos acontecimentos (as ações contadas) a qual permite a história contada (qualquer que seja ela) ser completa e uma, com começo, meio e fim. Nesse sentido, a ação é apenas o começo de qualquer história, que se converte em meio se provocar, na história contada, uma mudança de destino, uma peripécia surpreendente, uma sucessão de incidentes aterradores. E essa mesma his- 140 Barbosa, Marialva. O filósofo do sentido e a comunicação
3 tória só constrói o seu fim quando conclui o curso da ação, desatando o nó inicial, selando, por exemplo, o destino do herói e produzindo no ouvinte a katharsis da piedade e do terror. Nas narrativas quotidianas dos meios de comunicação e, particularmente nos atos jornalísticos, observamos o quanto a questão da peripécia é fundamental para instaurar o acontecimento jornalístico. Baseado em convenções de veracidade, o discurso jornalístico é acreditado como verídico por antecipação, mas só se configura em algo a ser publicizado se instaurar uma ruptura. A excepcionalidade do Jornalismo, nada mais é do que a peripécia indicada por Ricoeur. Por outro lado, as narrativas do cotidiano, sobretudo aquelas que apelam aos valores imemoriais de contar as histórias como é o caso, por exemplo, das narrativas policiais, o Jornalismo de sensações, como gostamos de classificar (BARBOSA, 2005) os apelos à piedade, ao terror, as emoções são constituintes mesmo desses textos. O que se produz com essas narrativas é a katharsis do público, no sentido particularizado por Ricoeur. Por outro lado, ao transformar os acontecimentos em história, ou ao possibilitar que se retire dos acontecimentos uma história inteligível, o que os textos jornalísticos instauram é a construção da intriga, constituindo-se em uma espécie de mediadores entre o acontecimento e a história. Nesse sentido, Ricoeur define acontecimento como aquilo que contribui para a progressão de uma história, sendo mais do que algo que acontece: o acontecimento é componente intrínseco da própria narrativa. Em suma, a intriga, em Ricoeur, é unidade inteligível que conjuga circunstâncias, finalidades, meios, iniciativas, conseqüências não-desejadas, ou, nas suas próprias palavras, o ato de tomar em conjunto (conjugar) os ingredientes da ação humana, que na experiência diária aparecem muitas vezes como heterogêneos e discordantes. A partir dessas pressuposições iniciais, Ricoeur vai analisar dois conjuntos de textos considerados distintos, muito mais pelas convenções culturais do que pelas particularidades narrativas: o histórico e o ficcional. A sua pressuposição primeira é a de que é impossível estruturar a história senão de modo narrativo. Mesmo quando a história se afasta do modo narrativo presente nas crônicas antigas, na história eclesiástica ou política que conta batalhas, tratados, partilhas, ou seja, mudanças de destino que afetam o exercício do poder por determinados indivíduos, ela continua narrativa. Ainda que seja a história da longa duração, ao tornar-se social, econômica, cultural, ela permanece ligada ao tempo e procura enfocar múltiplas mudanças que ligam sempre uma questão final à situação inicial. Ao ficar ligada ao tempo e à mudança, continua o autor, fica também ligada à ação dos homens que, segundo Marx, fazem a história em circunstâncias que eles não criaram. (BARBOSA, 2005, p. 27). A história é sempre a história dos homens que são portadores, agentes, vítimas das forças, das instituições, das funções, dos lugares onde estão inseridos. E é Conexão Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p , jan./jun
4 nesse sentido que ela não pode romper com a narração, já que seu objeto é a ação humana que implica agentes, finalidades,circunstâncias e resultados. Há que se considerar, ainda, que o passado, mesmo quando considerado real, é sempre inverificável. Na medida em que ele não mais existe, só indiretamente é visado pelo discurso da história. Assim, tal como a ficção, também a reconstrução histórica é obra da imaginação. Por outro lado, também o historiador configura intrigas que os documentos autorizam ou proíbem, combinando sempre coerência narrativa e conformidade aos documentos. É também essa combinação que faz da história interpretação. O TEMPO NA NARRATIVA Quando analisa as narrativas de ficção, sua tese é que qualquer construção ficcional, mesmo aquelas consideradas singulares, articulam a sedimentação de padrões existentes anteriormente com a inovação. É a ligação com a tradição, com os esquemas narrativos já de conhecimento do leitor, que permite o reconhecimento do desvio, ou seja, da inovação. O desvio só é possível se tiver como pano de fundo a cultura tradicional que cria no leitor expectativas que o artista estimula ou frustra. O que existe, pois, é sempre um jogo de regras, aquilo que Ricouer vai chamar imaginação regrada. Tendo essas duas pressuposições como referências iniciais, Ricoeur enfoca um terceiro problema: o da referência comum da história e da ficção tendo como pano de fundo a temporalidade da experiência humana. Classificando o problema como de dificuldade considerável, procura mostrar que embora possa parecer que apenas a história se refira ao real, mesmo que passado (ao pretender falar de acontecimentos que efetivamente se produziram), não se pode dizer que a ficção não tenha referência, já que todos os sistemas simbólicos contribuem para configurar a realidade. As intrigas que inventamos irão nos ajudar a configurar nossa experiência temporal confusa e muda. O que é tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se mo perguntarem, eu deixo de saber. A proposição emblemática de Santo Agostinho (Livro XI, Confissões) indica a capacidade da ficção para configurar a experiência temporal quasemuda. Ou seja, se houver o silêncio ou a falta de pergunta (da proposição narrativa) não há o ato configurante. Mas, se ao contrário, produz-se articulação textual, há a necessidade de configurar a imaginação criadora. O que existirá não é mais o tempo em si mesmo, mas um discurso que constrói uma idéia de tempo. A função da intriga é, pois, essa capacidade da ficção de configurar a experiência temporal. Cria-se o laço entre muthos e mimesis na Poética de Aristóteles: é a fábula, diz ele, que é a imitação da ação. (BARBOSA, 2005, p. 29). 142 Barbosa, Marialva. O filósofo do sentido e a comunicação
5 Isso porque a fábula imita a ação, produzindo inteligibilidade, utilizando os recursos da ficção. O mundo da ficção é uma espécie de laboratório de formas no qual ensaiamos configurações possíveis da ação, experimentando sua consistência e plausibilidade. É a essa experimentação que Ricoeur chama imaginação produtora. Nessa fase primeira, a da experimentação, a referência ao mundo permanece em suspenso. A ação é apenas imitada, fingida, forjada. O mundo da ficção, nesse momento, é apenas o mundo do texto ou uma projeção do texto como mundo. Esse momento, em que a referência ao mundo encontra-se em suspenso, é intermediário entre a pré-compreensão do mundo da ação e a transfiguração da realidade quotidiana operada pela própria ficção. O mundo do texto, porque é mundo, vai entrar em colisão com o mundo real para o refazer, confirmando-o ou recusando-o. Assim, seja no texto com pretensão a historicizar e, portanto, reproduzir o real, seja no texto ficcional, governado pela convenção de invenção de realidade, o que existe é, no primeiro caso, referência indireta ao passado e, no segundo, referência produtora de ficção. Nos dois casos representa-se a experiência humana na sua dimensão temporal mais profunda. Há entre a história e a ficção um jogo de referência cruzada que constitui o cerne daquilo que Ricoeur chama tempo humano. Em relação às três ordens de tempo o tempo vivido subjetivamente ou fenomenológico, o tempo histórico e o tempo vivido objetivamente ou a perspectiva cosmológica é justamente a narrativa histórica que oferece uma espécie de solução às dificuldades irreconciliáveis suscitadas pela especulação sobre o tempo. A dimensão narrativa é que opera a mediação entre o tempo fenomenológico e o tempo cosmológico, num tempo de natureza histórica, isto é, vivido e percebido numa espécie de arquitetura temporal de cada época. Tal mediação pode ser observada, por exemplo, na idéia histórica de calendário na qual a temporalidade subjetiva da vida quotidiana liga-se aos movimentos cósmicos dos corpos celestes: em suma, a narrativa do calendário oferece uma interligação entre a idéia cosmológica de tempo e a idéia fenomenológica ou subjetiva do tempo. Também nos textos ficcionais podem ser percebidas essas mediações temporais: a experiência subjetiva da morte tempo como finitude da condição humana, por exemplo, aparece nos textos ficcionais de forma representada. Através da ficção podemos experimentar a angústia da morte, para logo em seguida ver o personagem renascido em outra história, experimentando uma espécie de eternidade do tempo. Analisando, pois, a função narrativa em duas ordens de textos que considera fundamentais a narrativa histórica e a de ficção (da epopéia ao romance moderno) Ricoeur passa gradativamente da configuração narrativa à refiguração narrativa. Por configuração narrativa ele entende a organização interna de qualquer texto cujos códigos podem ser identificados pela análise estrutural. Já a refiguração narrativa define-se como o poder que a narrativa possui de reorganizar a nossa expe- Conexão Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p , jan./jun
6 riência temporal, descobrindo ao mesmo tempo as profundezas dessa experiência e transformando a orientação que se imprime à vida a partir desse momento. Para Ricoeur há um caminho natural em qualquer texto que vai de sua configuração interna à influência que passa a exercer fora dele mesmo (refiguração, também chamada referência ou sentido). Todo texto produz sentido e induz a uma ação. A partir da leitura há, pois, uma mudança intrínseca em quem a realiza. Preferindo o termo refiguração ao de referência que vai gradativamente abandonando ao longo de seus escritos Paul Ricoeur aprofunda essa questão na sua obra seminal, Tempo e narrativa. A hipótese principal do livro, aliás, repousa sobre a questão da experiência da narrativa. Para Ricoeur a narrativa articula a nossa experiência de tempo, da mesma forma que o tempo se torna humano pela narrativa. A vida humana é, portanto, análoga a um texto. Assim como um texto, também a vida expressa sentidos que podem ser explicitados por meio da interpretação. A questão da leitura e da compreensão do texto é, pois, uma espécie de metáfora na sua obra para todos os tipos que compreensão, incluindo a dos fenômenos sociais e culturais. O objetivo do autor é esclarecer a existência. Diz ele: A eternidade que as obras de arte opõem à fugacidade das coisas só pode se constituir numa história?, pergunta-se para a seguir se colocar outra questão: E a história só permanece histórica se, ao mesmo tempo em que ocorre acima da morte, protege-se do esquecimento da morte e dos mortos e permanece uma recordação da morte e uma memória dos mortos? Assim, a questão crucial do livro é saber até que ponto uma reflexão filosófica sobre a narratividade e o tempo pode ajudar a pensar juntas a eternidade e a morte. (RICOEUR, 1994, p. 131). Nas suas próprias palavras, a transição entre configuração e refiguração é preparada e construída em Tempo e narrativa através de uma seqüência sinuosa de etapas. (RICOEUR, 1990). Inicialmente, ainda no volume I da trilogia, procura construir o que pareceu ser uma correspondência remarcável entre a questão do tempo segundo as aporias de Santo Agostinho e a estrutura da intriga segundo Aristóteles. Para ele há uma correspondência surpreendente entre a distentio animi de Santo Agostinho e a peripeteia d Aristóteles, o que o leva a tratar o tempo em Santo Agostinho como uma espécie de discordância concordante, da mesma forma que há concordância discordante no conceito de intriga desenvolvido por Aristóteles. É essa relação que o encoraja a procurar uma afinidade fundamental entre atividade narrativa e experiência temporal, que ultrapassa em muito os limites das Confissões, de Santo Agostinho e da Poética, de Aristóteles. A partir da transição entre configuração e refiguração narrativa, procura reconstruir a noção aristotélica de mimeses sobre outras bases: através da tríplice mimese. A mimese I designa a pré-compreensão na vida quotidiana, ou seja, a qualidade narrativa intrínseca à própria experiência. A mimese II é a auto- 144 Barbosa, Marialva. O filósofo do sentido e a comunicação
7 estruturação da narrativa baseada em códigos narrativos internos ao discurso. E finalmente a mimese III, o equivalente narrativo da refiguração do real pela metáfora. Nessa etapa é importante o papel de mediador exercido pela leitura. O MUNDO DO LEITOR Outra tese central em Ricoeur no que diz respeito à questão narrativa é que o texto se projeta além dele mesmo, através da simulação da experiência vivida. A narrativa enfoca, assim, uma experiência que pode ser a do próprio leitor, já que os textos desenham um mundo que mesmo sendo fictício continua sendo um mundo. É o que o autor chama mundo do texto, sempre ofertado à apropriação crítica dos leitores. No ato de leitura se entrecruzam o mundo do texto e o mundo do leitor. Se o mundo do texto é sempre imaginário, o mundo do leitor é real, mas ao mesmo tempo capaz de remodelar a esfera do imaginário. Nesse sentido, a leitura torna-se campo de confronto entre o autor e o leitor, cada um trazendo recursos opostos para o combate. (RICOEUR, 1990, p. 39). O leitor procura descobrir os lugares de indeterminação no texto, preenchendo suas lacunas. O texto, portanto, só se completa pelo itinerário da leitura, sendo o objeto literário constituído pela atividade de ler. A obra, na dimensão proposta por Ricouer, é uma produção comum do autor e do leitor. De um lado, prossegue ele, a obra afeta o horizonte de expectativa sobre o qual o leitor aborda o texto. De outro, suas esperas fornecem a chave hermenêutica do processo de leitura tal como ele se desenrola. (BARBOSA, 2005, p. 40). Há que se considerar ainda que a ação narrativa instaura o mundo das coisas contadas, e nesse o reino do como se. Conta-se o mundo como se fosse real, como se o que é relatado de fato tivesse acontecido daquela forma, como se tivesse existido. O mundo das coisas contadas é sempre o como se da ficção, e a experiência depende da voz narrativa que contém invariavelmente a voz do narrador. Essa voz não contém apenas a voz direta do autor, mas de todos aqueles que são designados pelo seu ato de narrar. Na voz narrativa estão contidos, portanto, múltiplos atos memoráveis. Cada voz narrativa tem seu próprio tempo e seu próprio passado, de onde emergem os acontecimentos recontados. (RICOEUR,1990, p. 42). O mundo projetado pela obra é capaz de se cruzar com um outro mundo, o mundo do leitor. Assim, a refiguração vai de um mundo a outro, de um mundo fictício a um mundo real. O ato de leitura torna-se, pois, medium decisivo e é através desse meio que se produz a transferência da estrutura da configuração narrativa à sua refiguração e à transformação da ação humana passada ou futura. Conexão Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p , jan./jun
8 O como se dessa experiência de leitura coloca em destaque a questão da voz narrativa, que, como já dissemos, não é apenas a voz narrativa do autor, mas uma voz que em essência é cultural (da tradição, do mundo onde ele se insere, das representações, das visões de mundo sub-reptícias ao texto). Essa é uma das razões pelas quais as histórias contadas parecem pertencer à memória de alguém que fala no e pelo texto. Para Ricoeur também essa parece ser uma das razões pelas quais os textos ficcionais são escritos freqüentemente no passado, já que ele não se refere ao tempo do calendário que rege a historiografia e a vida quotidiana. A voz narrativa tem, antes de qualquer coisa, seu tempo próprio e seu próprio passado, de onde emergem os acontecimentos recontados. (1990, p. 34). Na obra de Ricoeur aparece com destaque, sempre em relação à questão da narrativa, uma longa discussão sobre o que ele chama fenomenologia do tempo. Para ele, existe uma dicotomia fundamental entre as duas perspectivas principais do conceito de tempo: a primeira baseada na cosmologia, e a segunda, na experiência humana. Essas concepções na experiência humana não são excludentes, mas complementares: trata-se da significação de viver o tempo. Dando como exemplo o sentido da palavra agora exemplifica: De um lado, agora designa uma interrupção na continuidade do tempo cosmológico e pode ser representado por um ponto sem extensão. De outro lado, agora significa presente vivido, rico de um passado recente e de um futuro iminente. (RICOEUR, 1990). Não existe nenhuma ligação lógica entre essas duas interpretações do agora. Essa aporia que nenhuma fenomenologia do tempo, segundo sua tese, é capaz de resolver, pode ser resolvida na narrativa, através da inclusão de uma resposta criativa. Nesse sentido, propõe resolver a questão através de uma poética da narrativa em lugar de uma aporética da temporalidade. Para ele, cada forma narrativa tem a capacidade de responder e, ao mesmo tempo, de corresponder a uma de nossas experiências de tempo. A história e a ficção construíram meios diferentes para lidar com essa questão. A história tendo como direção a construção de um discurso verdadeiro instaurou uma espécie de temporalidade mista, uma espécie de terceiro tempo, o tempo histórico, situado entre o tempo cosmológico e o tempo fenomenológico. Nesse modelo, o tempo-calendário funciona como matriz desse terceiro tempo. O agora não é mais o instante pontual, nem presente vivido. Transforma-se em algo datado, capaz de dar ao presente novo lugar no sistema de datas estabelecidas pelo calendário. Instaura-se a data inicial, ponto zero do calendário, considerada evento fundador que cruza o instante cosmológico e o presente vivido. A pretensão à verdade histórica fica assim submetida aos contratos impostos pelos calendários e pela noção de prova documental. Em contrapartida, é por esse mesmo movimento que o tempo da ficção perde sentido. Naturalizando o tempo do calendário e figurando as provas documentais como próprias da história, as narrativas de ficção abrem-se a toda espécie de variações 146 Barbosa, Marialva. O filósofo do sentido e a comunicação
9 imaginativas, incluindo combinações infinitas de aspectos cosmológicos e fenomenológicos da temporalidade. A ficção está livre para explorar as inúmeras propriedades qualitativas do tempo, ainda que apenas no plano da imaginação. Dessa forma, a ficção transforma-se numa espécie de laboratório para as experiências em que a imaginação ensaia soluções plausíveis para o enigma da temporalidade. Mas esse enigma só será resolvido no mundo do leitor. Começa ai o último nível de argumentação de Ricoeur, quando procura desenvolver uma espécie de história dos efeitos e da recepção das obras literárias, sejam elas históricas ou ficcionais. A dialética do fenômeno leitura inclui, de um lado, a estratégia de persuasão desenvolvida pelo autor para atingir seu leitor potencial. Para isso dispõe do recurso, só dele, de poder ler diretamente a alma de seus personagens. De outro lado, há que se considerar o poder de ilusão que se instaura pela estratégia de persuasão. Mas esta mesma persuasão pode caminhar numa outra direção: a retórica da dissimulação ou da ironia pode, ao invés de persuadir, produzir um estranhamento no leitor. É nesse sentido que a leitura se torna campo de combate entre autor e leitor. Mas esse combate pode ser ainda mais amplo. Como mostraram Wolfgang Iser e Hans-Robert Jauss, em relação aos postulados da estética da recepção, a resposta do leitor ao texto é uma atividade altamente elaborada, estruturada por expectativas pessoais e culturais. A perspicácia do leitor é, pois, descobrir incompletudes no texto, lacunas, lugares de indeterminação. Diante dessa constatação, Ricoeur é definitivo: Somos tentados a dizer que é o leitor sozinho que elabora as frases do texto, e que o objeto literário é constituído pela atividade mesma de ler. E continua: Sem querer ir tão longe, eu prefiro dizer que aquilo que nós chamamos obra é a produção comum de um texto e de um leitor. De um lado, a obra afeta o horizonte de expectativa segundo o qual o leitor aborda o texto. De outro, essas esperas fornecem a chave hermenêutica do processo de leitura tal como ele se desenrola. (RICOEUR, 1990, p ). O MUNDO COMO TEXTO Observamos, pois, sub-reptícia a toda essa discussão sobre a questão da narrativa a partir da obra de Ricoeur cinco pontos centrais na sua argumentação: a correlação tempo e narrativa; uma concepção simbólica presente na idéia de temporalidade; o debate entre nominalismo e uma dada visão que afirma ser a criação de sentido construída pelo próprio homem; a narrativa como um produto da ação humana; o estatuto epistemológico do tempo histórico e do tempo da narrativa. Produzindo um ensaio modelar de interdisciplinaridade, Ricoeur toma como idéia central a seguinte questão: toda narrativa (histórica ou de ficção) articula Conexão Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p , jan./jun
10 em discurso o caráter temporal da experiência humana. Fazendo isso, figura o mundo sobre a forma de obra e transforma o tempo em algo intrinsecamente da esfera humana. O que pretendeu Ricoeur ao elaborar sua obra mais significativa Tempo e narrativa a partir de dois diálogos fundamentais as aporias do tempo de Santo Agostinho e a Poética de Aristóteles? De maneira bastante abrangente, podemos dizer que o seu objetivo foi submeter à prova tanto às disciplinas históricas quanto a narrativa de ficção, afirmando a identidade entre historiografia e narrativa ficcional. Para ele há, nos dois regimes, uma apropriação fundamental que recoloca o texto do mundo do autor no mundo do leitor. Para construir sua fenomenologia da leitura, estabelece um diálogo valioso, como vimos, com as investigações da Estética da Recepção e do Efeito, desenvolvidas pela Escola de Konstag. O que Jauss e Iser os dois autores mais representativos dessa corrente teórica propuseram foi tentar retirar dos estudos literários, de um lado, a visão de imanência (neutralidade científica) ou, de outro, sua filiação ao marxismo reflexológico. Essas aproximações faziam com que a obra literária fosse primordialmente analisada a partir de uma visão que a considerava fechada nela mesma, produzindo-se análises imanentes ao texto. Iser estudava o efeito produzido no leitor e sua resposta. Já Jauss procurava debruçar-se na resposta do público em função de expectativas coletivas. Através da leitura individual, consideravam que o texto poderia revelar sua estrutura de apelo. A diferença entre os autores do chamado Estruturalismo de Praga é que alguns vêm o leitor dentro da leitura, enquanto outros, como por exemplo Jauss, entendiam o leitor como figura empírica fora da obra. Iser, em seus primeiros estudos, enfatizava o efeito da literatura ficcional, supondo a existência de uma estrutura única para a obra literária. Depois se interessa pela dimensão antropológica, questionando a razão de o homem necessitar da ficção, baseando-se na necessidade interpretativa que atravessa a história humana. Jauss tenta renovar a história da literatura, ao considerar que a significação de uma obra literária se baseia na relação dialógica instaurada entre essa obra e seu púbico em cada época. A questão da interpretação em Ricoeur torna-se hermenêutica, isto é, arte da interpretação de decifração do sentido de textos, através da compreensão e da explicação. Nesse sentido, compreender não é conhecer, mas ser e relacionar-se com outros seres. A hermenêutica é filosofia da compreensão e não um conjunto de técnicas de interpretação. É nesse sentido que os textos se transformam em meios de transmissão das experiências, e os significados são produtos de julgamento prático e do senso comum e não de uma teoria ou prova científica. Sua hermenêutica partilha, portanto, a idéia do círculo hermenêutico, isto é, a noção de que a compreensão ou definição de alguma coisa já pressupõe uma compreensão ou definição daquela coisa. 148 Barbosa, Marialva. O filósofo do sentido e a comunicação
11 Outro conceito fundamental na obra de Ricoeur é o de intriga. Considerar a intriga é perceber no ato poético o triunfo da concordância sobre a discordância. Para Aristóteles, é aparentemente paradoxal perceber a narrativa como categoria que engloba o drama, a epopéia e a história, pois o que Aristóteles chamava história exercia apenas o papel de contra-exemplo (discordância). Em Aristóteles apenas um conceito era englobante (a mimese). A mimese podia englobar o drama, a epopéia ou a história. Intriga, portanto, traz na sua essência a idéia de operação de composição (enredo). Refletindo sobre a noção aristotélica, Ricoeur define intriga como representação da ação. O objeto de representação pode ser elaborado como intriga, caracteres, pensamento (forma de composição) e se expressa sob uma forma precisa (canto, espetáculo, etc). A definição de intriga pressupõe também o quê da representação. A fenomenologia do ato de ler, objetivo último da extensa obra de Ricoeur, é, portanto, resultado da associação entre hermenêutica e estética da recepção. Ao se apropriar da construção do Grupo de Konstag, Ricoeur alarga suas propostas iniciais, colocando como questão fundamental o aspecto inacabado do texto. Isso porque todo texto oferece diferentes vistas esquemáticas que o leitor deve concretizar (brechas ou lugares de indeterminação) e também porque o texto é inacabado, já que o mundo que ele propõe sempre é incompleto. Nesse sentido, o mundo que afinal o texto é não passa de uma seqüência de frases que precisa ser transformada num todo. Há um ponto de vista viajante em qualquer leitura, o que faz com que nenhum texto possa ser percebido em sua totalidade de uma só vez. REFERÊNCIAS BARBOSA, Marialva. Jornalismo popular e o sensacionalismo. Verso e Reverso, Porto Alegre: Unisinos, n. 39, ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed. 34, JAUSS, Hans Robert. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, RICOEUR, Paul. Mimèsis, référence et refiguration dans Temps et récit. Études Phénoménologiques, Bruxelles: Editions Ousia, n. 11, t. 6, RICOEUR, Paul. De l interprétation. L Enciclopédie Philosophique, Paris: PUF, RICOEUR, Paul. Do texto à ação: ensaios de hermenêutica II. Porto: Rés, RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, v. 1, 2, 3. Conexão Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p , jan./jun
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