Desde Darwin: Spock e a deriva natural
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- Maria do Loreto Palha Álvares
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1 Parte III: pós-libertação 131 Desde Darwin: Spock e a deriva natural Beto Vianna Vulcanianos não especulam. Eu falo a partir da pura lógica. Se eu deixo cair um martelo em um planeta com gravidade positiva, eu não preciso vê-lo cair pra saber que ele, de fato, caiu. Seres humanos possuem determinadas características, tanto quanto objetos inanimados. É impossível o capitão Kirk agir movido pelo pânico ou pela maldade. Não é da sua natureza. (Spock em Corte Marcial, 1967). O depoimento acima, do oficial de ciências da Enterprise, ocorre durante o julgamento de seu amigo, o capitão James T. Kirk, por conta de um crime que (sabe-se depois) ele não cometeu. De meia-ascendência humana, Spock foi criado em Vulcano, onde uma modernidade tecnológica e violenta foi suplantada pela supressão das emoções. O repertório lingüístico usual do vulcaniano, então, é o discurso racional, objetivo. Para a corte, no entanto, a amizade do depoente com o réu contamina essa objetividade: Spock fala a partir da sua opinião. Eu penso que a fala de Spock permite-nos levantar, ao menos, duas questões interessantes: o papel da causalibiologia da libertação.indd /10/ :38:46
2 132 biologia da libertação dade linear nos processos biológicos, e o papel do observador em nossas explicações sobre o vivo. A analogia entre a queda do martelo e o comportamento de Kirk é possível pela postulação de propriedades inerentes às duas entidades, que, em uma situação experimental, iriam restringir o leque de comportamentos esperados. Mas só uma caricatura da ciência positiva dirá que os comportamentos são comparáveis. Como vários autores já apontaram (ver Bateson, 1979), chutar um cãozinho terá outras conseqüências além de observálo descrever um arco de elipse no espaço. Além do mais, Spock fornece o contexto (a gravidade positiva ) em que o martelo terá tal e tal comportamento, mas, sobre Kirk, afirma simplesmente que ele não fará isso ou aquilo pois não é da sua natureza. Sabemos, no entanto, que há uma história de relações entre os dois oficiais. Spock já observou Kirk em inúmeras circunstâncias, sempre aceitando como válido o comportamento do amigo. Quanto ao nosso papel de observadores e explicadores das vicissitudes dos seres vivos, talvez possamos melhorar a nossa compreensão atentando não apenas para o que Spock diz, mas para o que a corte faz, ou seja, a aceitação (ou rejeição) do depoimento do oficial de ciências. O que Spock diz parece mesmo trivial: aponta para itens como lógica e gravidade, movendo-se em perfeita adequação a seu background cultural. Da mesma forma, defender Kirk parece adequado, pela história de relações entre Spock e seu comandante, e decorre, das duas constatações, que o uso do discurso racional para validar a emoção de Spock também pode ser visto como algo corriqueiro. Mas quando voltamos nosso olhar para a corte marcial, tudo muda de figura. Agora a questão não é mais se biologia da libertação.indd /10/ :38:46
3 Parte III: pós-libertação 133 o comportamento de Kirk é verdadeiro no discurso de Spock, mas como a corte escuta, e é isso, em última instância (sem trocadilho), o que irá validar as ações de Spock, naquela circunstância. Se é a corte quem decide, e a corte não aceita o que Spock diz, o discurso de Spock perde a validade, ipso facto. Se você aceitar realizar comigo uma dobra espacial, entre o universo de Jornada nas Estrelas e nosso mundo de teorias científicas, aquilo que eu disse acima sobre as dificuldades da causalidade linear e o papel da aceitação nas explicações sobre o vivo deve servir igualmente para as teorias sobre a evolução orgânica. Isso por que é a partir da aceitação de uma certa biologia uma certa maneira de explicar a fenomenologia do vivo que surgem nossas teorias evolutivas, e dizer isso é inverter o título de um famoso artigo de Dobzhansky (1973), que diz Nada faz sentido em biologia, a não ser à luz da evolução. Darwin em dois centenários Darwin nasceu em 1809 e publicou A Origem das espécies 50 anos depois, oferecendo à comunidade científica a oportunidade de comemorar os episódios mais celebrados de sua vida em anos redondos. Ainda, os dois primeiros centenários (do nascimento de Darwin e do Origem) marcaram dois momentos distintos e emblemáticos na história do pensamento evolutivo. Em 1959 celebrava-se o centenário do Origem em meio à consolidação de um establishment científico, cioso de sua condição de herdeiro único a ponto de, em 1961, o título de um artigo de G. G. Simpson (1997) ostentar que 100 anos sem Darwin são o bastante. De fato, esse centenário é a consagração da Síntese Moderna, que confluiu os desenvolvimentos da genética e das ciências biologia da libertação.indd /10/ :38:46
4 134 biologia da libertação naturais sob o prisma da seleção darwiniana, e é o paradigma hegemônico, ainda hoje, na biologia evolutiva. Voltando no tempo, o simpósio comemorativo de 1909, em Cambridge, marcou um vigoroso debate sobre os mecanismos da evolução, ao lado da aceitação da importância seminal de Darwin (Sewall, 1909; Gould, 2002; Vianna, 2006). O encontro reuniu personalidades díspares do pensamento evolutivo. Lá estavam desde darwinistas históricos como Hooker, Wallace e Weissmann a mendelianos como de Vries e Bateson naqueles tempos pré-síntese, os geneticistas eram os principais críticos da seleção natural. Havia outros, como os neolamarckistas, o geólogo Sedgwick (criacionista e amigo de Darwin), Haeckel (um proto-psicólogo evolutivo), e o filólogo Giles, fazendo a ponte entre as ciências da evolução e da linguagem (tema ainda relevante, na época, entre os lingüistas). Hoje, as cartas estão novamente postas à mesa, desde abordagens francamente anti-darwinianas, como o criacionismo científico e a teoria do design inteligente (que, em minha opinião, nada têm de científicas ou inteligentes) até alternativas mais interessantes, como a crítica de Gould e Lewontin (1979) ao adaptacionismo, a tentativa de Gould (2002) de erigir um edifício teórico revisionista, e as preocupações com o papel do desenvolvimento e das dinâmicas sistêmicas do organismo (como na Teoria dos Sistemas em Desenvolvimento: ver Susan Oyama, neste volume). Esse quadro mudancista ganhou contornos de ciência oficial tão recentemente quanto julho de 2008, quando 16 biólogos e filósofos de primeira grandeza reuniram-se no Instituto Konrad Lorenz em Altenberg, na Áustria, para propor uma teoria revista da evolução. Os 16 de Altenberg encararam biologia da libertação.indd /10/ :38:46
5 Parte III: pós-libertação 135 questões tradicionalmente negligenciadas, como o papel da contingência, os processos macroevolutivos (em níveis hierárquicos acima da espécie) e a relação entre o desenvolvimento e a evolução, ou evo-devo. Esse novo corpo teórico unificado foi denominado, não sem alguma picardia, de Síntese Evolutiva Estendida (Mazur, 2008). Alguns pontos unem a pluralidade de mecanismos evolutivos de 1909 e as preocupações do nosso próprio tempo. Mas hoje, são as formulações da Síntese Moderna que dão o contexto para as indagações sobre o operar do organismo e suas implicações na evolução, na medida em que são respondidas de modo pouco satisfatório. As perguntas incluem: as relações entre ontogenia e filogenia, as relações entre organismo e entorno (podemos continuar falando de um meio pré-existente às ações do organismo?); a definição do que é herdado na reprodução (apenas um componente da estrutura orgânica? Toda a dinâmica de relações orgânicas?); as tendências e padrões evolutivos; e as diferenças entre as mudanças nos níveis molecular e do organismo. A resposta de que determinados genótipos são selecionados em um dado ambiente (a força diretiva da evolução), com a decorrente mudança na composição genética de uma população (a própria evolução) não me parece adequada para responder as perguntas acima. Evolução, nesses termos, parece ser uma luz muito fraca para dar sentido à biologia. A consideração biológica concentra-se na atribuição de poderes causais a um elemento estrutural (o DNA) e à competição entre as resultantes máquinas de sobrevivência (Dawkins, 1979) pelo sucesso reprodutivo, praticamente desconsiderando todo o curso ontogenético e as contínuas relações com o entorno desse organismo em desenvolvimento. biologia da libertação.indd /10/ :38:46
6 136 biologia da libertação Vejo as abordagens sistêmicas melhor equipadas para lidar com tais questões, exatamente por considerar o organismo como uma rede de processos que opera enquanto totalidade coerente, e cujos componentes são relevantes na medida em que participam das operações que compõem o sistema. O que surge para nós, a partir desse olhar sistêmico sobre o ser vivo, são organismos estruturalmente dinâmicos e integrados às suas circunstâncias: atores que constroem seu próprio palco, e, não, bolas de bilhar movidas por alguma força externa. Biologia do conhecer Em particular, chamo atenção para a proposta explicativa da Biologia do Conhecer (BC), cujos fundamentos epistemológicos foram lançados nos anos 70. Em De máquinas y seres vivos, Maturana e Varela (1972) propõem explicar a cognição (o conhecimento) a partir da biologia, e fazem isso mostrando as operações que constituem o ser vivo enquanto sistema dinâmico operando em um meio. A circularidade do mecanismo proposto pela BC, longe de ser um defeito na argumentação, é o que permite gerar uma explicação do ser vivo que é, ao mesmo tempo, uma explicação do ato de conhecer. Nos limites estreitos da minha competência de leitor de Maturana e Varela 13, tento resumir, a seguir, os conceitos que compõem essa explicação. O observador e as explicações científicas Tudo o que é dito é dito por um observador, dizem Maturana e Varela (1972). O observador, no nosso caso, é um humano, e um humano é um ser vivo. Isso implica que 13 Independente disso, sugiro fortemente ao leitor ou leitora interessada que busque ajuda profissional na bibliografia pertinente, disponível no corpo deste texto e na seção leitura complementar, ao final do volume. biologia da libertação.indd /10/ :38:47
7 Parte III: pós-libertação 137 tudo o que a teoria disser sobre o vivo, em geral, aplicase necessariamente ao observador. E como o observador diz aquilo que diz no domínio da ciência? Explicar é propor uma reformulação de um fenômeno em um quadro conceptual aceitável para uma comunidade de observadores, que partilha o mesmo critério de validação. O que é próprio à atividade científica é um critério específico de validação, que compreende: apontar um fenômeno aceitável na experiência da comunidade de cientistas; propor um sistema conceptual que gere tal fenômeno (também aceitável para a comunidade); e fornecer outros fenômenos que possam ser gerados no sistema proposto, validando, assim, a explicação. Cada etapa do critério de validação deve ser cumprida em termos da experiência do observador, e, não, fazendo referência a uma realidade independente. Assume-se, também, que o sistema conhecedor o observador é um sistema vivo. Assim, a tarefa de uma teoria do conhecimento é apresentar um mecanismo conceptual que gere, na experiência da comunidade de observadores, o fenômeno da cognição que é, ao mesmo tempo, um fenômeno biológico: é conseqüência do operar do ser vivo. Distingüindo unidades E como distingüimos um objeto ou fenômeno, para que possamos explicá-lo? Ao distingüirmos qualquer coisa apontando para ela, dizendo seu nome, agarrando-a especificamos uma unidade como uma totalidade, especificando, ao mesmo tempo, o seu entorno. E ao fazermos referência aos componentes dessa unidade e à relação entre eles, distingüimos uma unidade composta: o sistema e seus componentes, na medida em que estes forem constitutivos do sistema. biologia da libertação.indd /10/ :38:47
8 138 biologia da libertação A operação que faz surgir, ao mesmo tempo, a unidade e o entorno, é o que nos permite falar de um sistema vivo, de um lado, e do meio, de outro, de uma maneira que não se confunde com as interações que ocorrem entre o organismo e o meio. E a operação de distinguir uma unidade composta (componentes e relações entre eles) é o que nos permite falar sobre o que muda e o que não muda no sistema vivo. Os componentes de um sistema e as relações entre eles especificam o tipo de sistema sobre o qual estamos falando: é sua organização, que é, portanto, invariante. Mas os componentes e suas relações particulares a estrutura podem variar sem perda da identidade do objeto ou fenômeno estudado. É isso o que acontece com cada organismo, do seu surgimento como unidade autônoma até a sua morte: vive em contínua mudança estrutural sem perda de identidade, conservando sua organização. Sistemas autopoiéticos A partir de uma descrição sistêmica das interações que ocorrem no nível molecular, em que o DNA participa da síntese protéica tanto quanto as proteínas participam da síntese do DNA, obtém-se a definição do sistema vivo na BC: um processo circular de produções cujo produto é a própria manutenção dessa circularidade, em fechamento operacional, ou autopoiese. Ao conservar sua organização autopoiética, a estrutura do sistema muda continuamente, em congruência com as interações com o meio e por sua dinâmica interna. A estrutura dinâmica de um sistema vivo define sua organização: se ela cessa, a unidade desintegra. Para continuar vivo, o sistema deve conservar sua organização autopoiética durante toda a ontogenia, do surgimento como unidade autônoma até a morte. biologia da libertação.indd /10/ :38:47
9 Parte III: pós-libertação 139 Determinação estrutural Para se constituir como objeto de investigação científica, um sistema deve ser determinado estruturalmente: tudo o que acontece a ele é determinado, a cada momento, por sua estrutura, e não por um agente externo. Isso é assim desde um ponto de vista mecanicista, pois, se a análise do cientista fosse instrutiva, o sistema analisado iria mudar no processo. O mesmo se passa com um sistema vivo, se quisermos gerar uma explicação do sistema vivo enquanto tal. Em termos biológicos, um ser vivo, no curso de suas mudanças estruturais na ontogenia e em contínua interação com o meio, é determinado por sua estrutura a cada momento, e, não pela ação de agentes externos, assim como o meio só irá mudar segundo sua própria estrutura, mesmo que organismo e meio mudem juntos, conforme a história de interações. Quando dizemos que algo que comemos caiu mal (sabendo que podíamos comer a mesma coisa, em outra ocasião, sem as mesmas conseqüências), estamos nos referindo a como nossa estrutura dinâmica determina, a cada momento, o que acontece conosco. A origem da deriva Em 1992, surge um volume de autoria de Maturana e Jorge Mpodozis, entitulado Origen de las especies por medio de la deriva natural, aplicando de modo consistente a epistemologia da BC na explicação da evolução. Admitindo as perguntas que deram origem às preocupações evolutivas desde Darwin a questão da diversidade e semelhança dos seres vivos; a correspondência observada entre o modo de existência dos organismos e o meio, a teoria da deriva natural coloca como central, na história de diversificação dos seres vivos, o papel do comportamento, definido como a dinâmica de relações e interações que ocorrem no encontro biologia da libertação.indd /10/ :38:47
10 140 biologia da libertação do ser vivo com o meio em que realiza sua existência ao operar como tal (Maturana e Mpodozis, 1992). Adaptação Como um sistema operacionalmente fechado e estruturalmente determinado pode ser observado existindo em total congruência com o meio? Na BC, e, portanto, na teoria da deriva natural, a adaptação é tão invariante quanto a organização: não pode haver organismos mais ou menos adaptados, pois todo curso ontogenético e filogenético (que são dinâmicas sistêmicas) implica a conservação da adaptação como condição para a realização da organização autopoiética de cada organismo. Entendemos melhor a invariância da adaptação através do conceito de acoplamento estrutural. Distinguimos, na observação de um organismo em seu meio, dois domínios de existência: a fisiologia, onde o observador distingue o organismo como unidade composta; e um sistema em que organismo e meio estão acoplados estruturalmente em sua história de interações. Esse domínio de existência é o domínio comportamental do organismo (Fig. 1), gerado na operação de distinção de um observador. unidade autopoiética (domínio da fisiologia) domínio do comportamento meio Fig. 1: o organismo em seu meio (Maturana empodozis, 1992) biologia da libertação.indd /10/ :38:47
11 Parte III: pós-libertação 141 Comportamento, então, é a descrição de um observador das regularidades na história de interações organismo-meio. Os domínios do comportamento e da fisiologia não se intersectam, ainda que o organismo mude sua estrutura em congruência com a história de interações. Por outro lado, a estrutura irá especificar, a cada momento, os tipos de interação permitidas (meras perturbações ou interações destrutivas). Biologicamente falando, o fluir comportamental de um ser vivo, em interação com o meio, modula o curso de sua deriva estrutural ontogênica (sua epigênese: as possibilidades de mudanças estruturais a partir de cada estrutura inicial, ou anterior). Acoplado estruturalmente ao meio, o organismo conserva essa relação que é a conservação da adaptação enquanto realiza sua autopoiese. Retire a adaptação, e o sistema vivo deixa de existir (morre), tanto quanto se se interromperem seus processos metabólicos. Fenótipo ontogênico O organismo é um sistema ontogênico que muda sua estrutura a cada momento com conservação da organização autopoiética e da adaptação. Cada sistema ontogênico realiza esses processos de acordo com o seu fenótipo ontogênico, que configura um sistema ontogênico de determinada classe. Na reprodução, é a conservação ou mudança do modo de relação organismo-meio o comportamento que determina a conservação desse fenótipo no novo organismo, ou, então, o estabelecimento de um novo fenótipo ontogênico. Linhagens Na reprodução, a estrutura fundadora de um novo ser vivo não ocorre de qualquer modo, mas no âmbito particular determinado no viver do ser vivo progenitor (Maturana e Mpodozis, 1992). Assim, biologia da libertação.indd /10/ :38:48
12 142 biologia da libertação o que surge na reprodução é outro ser vivo que realiza um fenótipo ontogênico que depende tanto do fenótipo ontogênico do progenitor quanto de sua própria epigênese. É, portanto, um fenômeno conservador, ao garantir a continuação da linhagem e de todos os modos de vida conservados filogeneticamente, e, ao mesmo tempo, potencialmente transformador, pois os encontros particulares do novo organismo permitem que este realize um fenótipo ontogênico distinto do progenitor, fundando (se houver continuidade na reprodução) uma nova linhagem. Evolução Como a adaptação é uma constante, apenas podemos falar de seleção como um resultado da reprodução diferencial, não como um mecanismo gerativo. Ao mudar sua relação específica com o meio seu domínio comportamental um fenótipo ontogênico pode realizar a autopoiese de maneira diversa que os outros membros da linhagem. Com a mudança comportamental, muda também o genótipo total (as possibilidades epigenéticas do organismo inicial, que inclui os genes e outros componentes constitutivos) da nova linhagem em relação à linhagem ancestral, configurando a mudança genética como secundária e dependente da relação organismo-meio. Esse é o mecanismo gerativo da evolução, ou deriva natural. Deriva pois não há uma força atuando (ou selecionando) o curso de conservação ou mudança nas linhagens, ainda que haja, de fato, um curso filogenético observado de conservação e mudança, configurando ou re-configurando as linhagens, a todo momento. A volta de Spock Voltando mais uma e última vez a Spock, o comportamento do oficial de ciências tem, biologia da libertação.indd /10/ :38:48
13 Parte III: pós-libertação 143 de fato, a ver com sua herança vulcaniana e humana, mas não por uma determinação genética dos membros dessas linhagens. Como ser vivo, Spock conservou o fenótipo ontogênico (o modo de vida) das linhagens a que pertence, e, além disso, realiza esse fenótipo na ontogenia, em contínuo acoplamento estrutural com o entorno nas sucessivas circunstâncias em que se encontra (vulcaniano, humano, oficial de ciências, testemunha de defesa do amigo etc). Mais ainda, Spock realiza sua autopoiese na condição, tão familiar a nós, de um observador no espaço relacional da linguagem, e, portanto, co-ordenador nesse espaço relacional em que ele mesmo vive, em que vive Kirk e em que vivem os membros da corte marcial. Pós-escrito Apesar de termos tanto prazer em traçar uma grossa linha entre ficção e ciência, devo afirmar que o planeta Vulcano realmente existiu, ainda que por um breve período, mais exatamente, entre 1859 (ano de nascimento do Origem) e 1909 (ano do primeiro centenário de Darwin!). Não, o planeta não teve o destino explosivo de Krypton. A historia é bem mais interessante. Há muito que a órbita de Mercúrio era uma incômoda anomalia nas coerências explicativas da física newtoniana. Em 1859, o matemático francês Urbain Le Verrier (que também previu a existência de Netuno) recebeu uma carta de um astrônomo amador, Edmond Lescarbault, que afirmava ter observado um trânsito, ou seja, a órbita de um corpo celeste cruzando a de outro, justamente entre Mercúrio e o Sol: nascia Vulcano, salvando, com seu corpo e órbita, a abrangência explicativa biologia da libertação.indd /10/ :38:48
14 144 biologia da libertação do sistema de Newton 14. Apesar de sua infernal posição junto ao Sol, arredia à observação telescópica na época, vários astrônomos de prestígio observaram o planeta depois de Lescarbault, entre eles o norte-americano James Craig Watson, que, graças a um eclipse, visualizou Vulcano no estado do Wyoming, tendo como testemunha Thomas Edison em pessoa! 15 Se tudo é dito por um observador, é preciso aceitar o que ele diz para o que ele diz ser real. Infelizmente para o planeta, por volta de 1909 a comunidade científica passava a aceitar a Teoria Geral da Relatividade, de Einstein, que fornecia uma explicação melhor para a órbita anômala de Mercúrio (pela influência gravitacional do próprio Sol), e Vulcano, que era sólido, desmanchou no ar. 14 As informações sobre Vulcano foram coletadas na Wikipedia ( e em um belo texto de Isaac Asimov (1975), The planet that wasn t. 15 É curioso que o astrônomo Emmanuel Liais, que trabalhava para o governo de D. Pedro II, tenha observado o Sol desde os céus do Rio de Janeiro no exato momento em que Lescarbault observava Vulcano. Liais nada viu, mas por outro lado também nada disse, e Vulcano sobreviveu. biologia da libertação.indd /10/ :38:48
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