Novembro de Nº 8
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- Débora Martini Brezinski
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1 Novembro de Nº 8 Invenção e participação: aspectos do diálogo entre Mário de Andrade e Ferreira Gullar Michelle Aranda Facchin 1 RESUMO: Este artigo apresenta uma análise comparativa entre um poema de Mário de Andrade, intitulado Ode ao burguês, e o poema de Ferreira Gullar chamado Um homem ri. Objetiva-se demonstrar como os dois escritores constroem a crítica social por meio da linguagem poética, das rupturas estéticas que se propuseram a fazer, cada um em seu tempo, e também das questões ideológicas que ambos abordam enquanto produtores de uma literatura participativa e social. ABSTRACT: This essay presents a piece of analysis, comparing the poem Ode ao burguês, by Mário de Andrade to the poem Um homem ri, by Ferreira Gullar. The main objective is to show how both writers build social criticism through the literary language, the aesthetic arrangements they have proposed to make, each one in his respective days, and the ideological issues they have approached as producers of a social and participative literature. PALAVRAS-CHAVE: Estética; Mário de Andrade; Ferreira Gullar; Poesia social KEY-WORDS: Aesthetic; Mário de Andrade; Ferreira Gullar; Social poetry Introdução O presente artigo examina a poesia de Mário de Andrade e Ferreira Gullar, tendo como ponto de partida a convergência de algumas questões consideradas pela crítica literária: a especificidade formal e temática do poema, sobretudo as vinculações entre o projeto estético e o projeto ideológico de crítica social no e pelo texto. É nesse sentido, portanto, que se tem como objetivo aqui estabelecer, a partir da leitura de poemas, algumas aproximações entre os poetas Mário de 1 Mestranda pela UNESP. Título da Pesquisa: Os entremeios do cômico na crônica marioandradina.
2 Andrade e Ferreira Gullar, sob dois aspectos, em especial: o tratamento dado a questões sociais nos poemas e a interpelação desses problemas pelo aspecto cômico, pelo chiste e pela ironia, dispositivos que marcam a postura de ambos e o compromisso de engajamento de suas poéticas, pois como aponta Otávio Paz O humor é uma das maiores armas da poesia (PAZ, 1982, p.48) 1. Breves considerações sobre Mário de Andrade A obra de Mário de Andrade pode ser compreendida dialeticamente na medida em que apresenta, de um lado, uma proposta de reformulação no nível estético, anunciada na Semana de Arte Moderna, mas que é fruto de uma trajetória de pesquisas do autor anterior a esse momento; de outro lado, um projeto essencialmente ideológico, que condensa a preocupação de Mário de Andrade com o reconhecimento e difusão e valorização da cultura nacional. Tais aspectos, entretanto, não surgem em tensão na obra do poeta, mas estão unidos a um estado das artes em que a articulação entre ambos mostra-se inevitável e vigorosa, à qual se acresce, a partir de 1930, a crítica e a reformulação da obra do escritor por ele mesmo. A questão ideológica de valorização do nacional marcou definitivamente Mário de Andrade após 1924, com a vinda de Blaise Cendrars ao Brasil. Na medida em que o estudioso francês reconheceu as diferenças e principalmente a riqueza da cultura brasileira, sua postura estrangeira de encantamento diante do novo fez com que houvesse uma mobilidade intelectual dos modernistas que o acompanharam em excursão cultural a Minas Gerais. Essa visão do outro sobre a cultura nacional apontou para a necessidade de se ilustrar o modo de ser essencialmente brasileiro, o que foi de suma importância para o desenvolvimento do nacionalismo amadurecido de Mário de Andrade. A influência de Blaise Cendrars sobre os escritores paulistas da semana de 22, incluindo Mário de Andrade, colaborou também para fazê-los enxergar outro viés pelo qual o artista deve
3 caminhar, o ideológico. Como traz Telê Lopez Nacionalismo para Mário, já em 1925, é uma etapa de conhecimento, de autoconhecimento nacional, que futuramente deverá ser suplantada pela integração das artes brasileiras na universidade (LOPEZ, 1972, p.204). Desse modo, Mário de Andrade trata a questão ideológica de valorização do nacional diferentemente dos românticos e também dos modernistas da fase heroica, pendendo para o desenvolvimento das artes em geral e para a divulgação da cultura brasileira por meio de seus textos. A abordagem de João Luiz Lafetá (LAFETÁ, 1974, p.16-24) aponta para essa questão da fragilidade da crítica modernista dos anos heroicos. Segundo ele, o modernismo trata da denúncia do Brasil arcaico, regido por uma política ineficaz e incompetente, mas não há, no movimento, uma aspiração que transborda os quadros da burguesia e, portanto, a ideologia de esquerda não encontra eco nas obras da fase heroica. Já a segunda fase do movimento, cujo começo pode ser estabelecido a partir de 1930, é marcada por um recrudescimento da luta ideológica ; é a fase do crescimento do Partido Comunista, das organizações da Aliança Nacional Libertadora, de Getúlio e seu populismo trabalhista. É quando os artistas passam a enfatizar a função da literatura de combate, bem como o papel do escritor e as ligações da ideologia com a arte. Consequentemente, a boa crítica literária seria aquela capaz de considerar a linguagem da obra de arte, aliando-a ao movimento de crítica social a que ela dava acesso pelos meandros de seu discurso. Mário é, de fato, entre os escritores que estamos estudando, o esforço maior e mais bem sucedido, em grande parte vitorioso, por ajustar numa posição única e coerente os dois projetos do Modernismo, compondo na mesma linha a revolução estética e a revolução ideológica, a renovação dos procedimentos literários e a redescoberta do país, a linguagem da vanguarda e a formação de uma literatura nacional. (LAFETÁ, 1974, p.115)
4 Portanto, a obra de Mário de Andrade está relacionada a uma forte consciência da obra de arte enquanto fato estético e à necessidade de participação do escritor no mundo em que vive. De fato, a partir de 1930, Mário de Andrade sente a necessidade de abordar a obra literária de forma mais participativa, como veículo condutor de questões ideológicas, tornando-a um forte elemento de construção de crítica, de diálogo com o leitor e a ela aplicando uma função mais social, abordando o cotidiano, as aflições não só do eu, mas principalmente a aflição presente no nível histórico e transplantada para o texto. Todavia, esse giro que acontece em 1930 não é de todo novidade, a postura de Mário em relação às desigualdades sociais já aparece gestada em sua obra desde a Semana de 22. Um exemplo disso é o poema Ode ao Burguês, em que fica patente a âncora no contexto histórico-social que, por sua vez, configura-se como elemento interno da obra. 2. A Ode de Mário Ode ao Burguês Eu insulto o burguês! O burguês-níquel o burguês-burguês! A digestão bem-feita de São Paulo! O homem-curva! O homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! Eu insulto as aristocracias cautelosas! Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros! Que vivem dentro de muros sem pulos, e gemem sangue de alguns mil-réis fracos para dizerem que as filhas da senhora falam o francês e tocam os "Printemps" com as unhas! Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs! Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
5 Mas à chuva dos rosais o êxtase fará sempre Sol! Morte à gordura! Morte às adiposidades cerebrais! Morte ao burguês-mensal! Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi! Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano! " Ai, filha, que te darei pelos teus anos? Um colar... Conto e quinhentos!!! Más nós morremos de fome!" Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma! Oh! purée de batatas morais! Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas! Ódio aos temperamentos regulares! Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos, sempiternamente as mesmices convencionais! De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia! Dois a dois! Primeira posição! Marcha! Todos para a Central do meu rancor inebriante! Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio! Morte ao burguês de giolhos, cheirando religião e que não crê em Deus! Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico! Ódio fundamento, sem perdão! Fora! Fu! Fora o bom burguês! O insulto ao burguês configura-se explicitamente ao longo do poema. Os arranjos, como as rimas internas: muros sem pulos ; barões lampiões ; condes joões, e as palavras-montagem: homem-curva ; homem-nádegas ; burguês-burguês, criam uma atmosfera de crítica social que é parcialmente obliterada pelo efeito cômico que tais estruturas carregam e que fazem com que a crítica seja mais facilmente aceita. Tal leitura que realizamos é ratificada pela crítica de Lopez em relação à coletânea da qual o poema aqui analisado faz parte: Analisando o traje teórico de arlequim que veste Paulicéia Desvairada, pode-se ver, no jogo dos ajustes, um componente básico da vanguarda que é o estético procurando exprimir uma verdade de caráter social,
6 contestando as relações estabelecidas na sociedade (LOPEZ, 1996, p.17-18) É a característica de grotesco e rude que Mário configura em o indigesto feijão com toucinho, por exemplo, que dessacraliza as tradições burguesas, mostrando-nos a possibilidade de rearranjo, trazendo o arlequinal, figura surrealista e dadaísta para compor a sinfonia do poema e que foi bastante explorada em Paulicéia Desvairada. Paralelamente, há um tom crítico-cômico que já precede a fase em que o escritor preocupar-se-á com a crítica social. A nosso ver, nesse poema, já se observa aquilo que Lafetá indicará para o período seguinte: uma postura política de participação que é transportada para dentro da postura estética em que a técnica é vista como um esforço de desalienação, que implica constante e insatisfeita procura. (LAFETÁ, 1974, p ). No último verso, considerando-se a sonoridade do vocábulo fu, percebemos que funciona como um elemento-sumário de todo o xingamento ao burguês construído no poema. Ao mesmo tempo, pode funcionar como um elemento final de crítica social, construída pelo viés do cômico. Tal elemento exibe um sentimento de revolta, de desconstrução, características próprias da fase heroica modernista; porém não deixa de lado a abertura para uma abordagem de crítica social. A figura implícita do arlequim, configurada pelo uso de palavrasmontagem, técnicas de colagem etc, corresponde à possibilidade de pensar a poesia como detentora de vários caminhos e várias combinações, aliando-a também à figura cômica do não-sério, que vem a funcionar como um jogo de palavras, possibilitando-nos, assim, dizer aquilo que nunca seria dito sem consequências no espaço do sério. Percebemos que Mário de Andrade consegue ser imaginativo, trabalhar com a forma do poema e, ao mesmo tempo, pratica o exercício intelectual de expressar o sentimento de crítica social, fugindo do
7 problema apontado por Sandra Nitrini, em texto no qual dialoga com as ideias de Antonio Candido: Considerando-se que um elemento fundamental da literatura é a fuga ao real, ou, pelo menos, a tentativa de transcendê-lo pela imaginação, com frequência nossos escritores imbuídos do sentimento de missão, que acarretava a obrigação tácita de descrever a realidade imediata, ou exprimir determinados sentimentos de alcance geral realizaram obras de voos curtos ou tiveram mesmo de renunciar à imaginação. (NITRINI, 1997, p.203) Essa questão exposta por Nitrini tampouco acontece com Ferreira Gullar, mesmo porque este último produz suas obras em um contexto literário bastante voltado para a poesia social. Em Um homem ri, de Ferreira Gullar, percebemos as combinações arlequinais como em Mário de Andrade, que tomam a palavra enquanto material de manipulação e ao mesmo tempo como ferramenta de crítica, o que será demonstrado a seguir. 3. Breves comentários sobre Ferreira Gullar Ferreira Gullar nasceu em Em 1948 começou a trabalhar como locutor na Rádio Timbira, de onde saiu em 1950 após ter recusado manifestar-se contra os comunistas. Uma característica marcante no escritor é produzir textos sempre carregados de tensão social. Quando publicou o livro A luta corporal, causou impacto, tanto nos editores como nos leitores, por realizar reformulações no nível gráfico. Embora tenha tido problemas com os editores, que publicavam seus textos sem a formatação proposta, causou um efeito bastante positivo nos concretistas Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Como consequência dessa afinidade de ideais estéticos, Ferreira Gullar começou a fazer parte do movimento concretista. No
8 entanto, veio a discordar dos concretistas de forma veemente devido à valorização exclusiva e primordial da forma como que em uma fórmula matemática. Diante disso, publicou sua crítica ao movimento por meio do artigo Poesia concreta: experiência fenomenológica e assim continuou seu movimento de desconstrução, originando o Manifesto Neoconcreto, onde afirma: Propomos uma reinterpretação do neoplasticismo, do construtivismo e dos demais movimentos afins, na base de suas conquistas de expressão e dando prevalência à obra sobre a teoria. (GULLAR, 2009) Além de produzir textos literários, Gullar esteve envolvido nas reformulações da própria crítica literária. Escreveu ensaios, dentre os quais Vanguarda e subdesenvolvimento no qual questionou, com base nos escritos de Umberto Eco, os estruturalismos e formalismos, considerando a obra literária como uma obra aberta no sentido de aceitar uma pluralidade de interpretações e também em relação ao movimento exegético que demanda, extrapolando, portanto, o texto e indo para o social, político, religioso, refletidos no texto. É o que exemplificamos com o poema Homem sentado : Neste divã recostado à tarde num canto do sistema solar em Buenos Aires (os intestinos dobrados dentro da barriga, as pernas sob o corpo) vejo pelo janelão da sala parte da cidade: estou aqui apoiado apenas em mim mesmo neste meu corpo magro mistura de nervos e ossos vivendo à temperatura de 36 graus e meio lembrando plantas verdes que já morreram A trajetória de Ferreira Gullar indica que, ao lado do poeta de vanguarda, que participou do movimento concretista e foi precursor do
9 neoconcretismo, junto com Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanúdis, situa-se um poeta para quem as questões sociais têm forte impacto. Como um Mário de Andrade contemporâneo, ele enfrenta os desafios da inovação e da invenção das formas poéticas sem descuidar-se do engajamento social. De fato, parece-nos, ao observar os poemas em questão, que não se trata apenas de semelhanças e afinidades entre temas, mas que a leitura que Gullar faz de Mário crava os textos deste último das idiossincrasias do primeiro, de modo que, ao reinventar uma poética que articula projeto estético e projeto ideológico, não imita Mário, mas o atualiza, restaura-o, ou melhor, reinstaura uma poesia que a despeito das grandes contestações inerentes à forma, engaja-se com o mundo e com o homem de modo bastante explícito. 4. O homem-riso de Gullar Escolhemos um poema de Ferreira Gullar intitulado Um homem ri, publicado em 1986, e pretendemos demonstrar sua forte relação com o humorismo, elemento bastante tratado por Mário de Andrade como arma de crítica, conforme visto em Ode ao burguês. Um Homem Ri Ele ria da cintura para cima. Abaixo da cintura, atrás, sua mão furtiva inspecionava na roupa Na frente e sobretudo no rosto, ele ria, expelia um clarão, um sumo servil feito uma flor carnívora se esforça na beleza da corola na doçura do mel Atrás dessa auréola, saindo dela feito um galho, descia o braço com a mão e os dedos
10 e à altura das nádegas trabalhavam no brim azul das calças (como um animal no campo na primavera visto de longe, mas visto de perto, o focinho, sinistro, de calor e osso, come o capim do chão) O homem lançava o riso como o polvo lança a sua tinta e foge Mas a mão buscava o cós da cueca talvez desabotoada um calombo que coçava uma pulga sob a roupa qualquer coisa que fazia a vida pior Neste poema, Ferreira Gullar constrói a crítica pelo viés do humor, tal como procedeu Mário em Ode ao burguês e ao longo de sua obra. Pretendemos, pois, estabelecer comparações entre esses dois poemas para pensar na construção da crítica social através do humor e da ironia, considerando-se o caminho da comparação que não se limita meramente às fontes minimalistas que levaram cada escritor a construir seu texto, mas que busca abrir caminhos para a compreensão da obra dos autores, tanto do ponto de vista da forma interna em que cada texto está organizado, quanto do ponto de vista de sua função social e de como a crítica ao que se dá no nível histórico é configurada no texto. (CANDIDO, 1981, p.16). Pensando dessa forma, identificamos no poema de Ferreira Gullar uma possibilidade de leitura para a direção do cômico como ferramenta de crítica social. Percebemos a crítica amalgamada à figura construída ao longo do poema. É o sujeito que carrega também a comicidade do arlequim, como em Mário de Andrade, mas um arlequim mais debochado. A imagem que se cria no poema começa a ser pintada pelo rosto, que possui o riso. Mas, ao mesmo tempo que ri, esse rosto possui um corpo que movimenta-se à procura de algo que incomoda: a mão corre, pelas nádegas, no cós da cueca, à procura de uma pulga, um calombo que coça, algo que incomoda, qualquer coisa que faz a vida pior. Pensando na construção dessa figura de homem no poema, cujas ações corpóreas concentram-se e dirigem-se para a parte inferior, abre-
11 se a possibilidade de pensar na carnavalização, tratada por Bakhtin, como a valorização do corpóreo, da parte inferior e carnal do ser humano. No carnaval forja-se, em forma concreto-sensorial semi-real, semi-representada e vivenciável, um novo modus de relações mútuas do homem com o homem, capaz de opor-se às onipotentes relações hierárquicosociais da vida extracarnavalesca. O comportamento, o gesto e a palavra do homem libertam-se do poder de qualquer posição hierárquica (de classe, título, idade, fortuna) [...]. O carnaval aproxima, reúne, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o baixo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo, etc. A isso está relacionada a quarta categoria carnavalesca: a profanação. Esta é formada pelos sacrilégios carnavalescos, por todo um sistema de descidas e aterrissagens carnavalescas, pelas indecências carnavalescas, relacionadas com a força produtora da terra e do corpo, e pelas paródias carnavalescas dos textos sagrados e sentenças bíblicas, etc. (BAKHTIN, 2008, p ) Desse modo, o vocabulário utilizado para manter esse aspecto de libertação do corpo e da busca pela inversão da parte de cima para a valorização das partes inferiores do corpo e do ambiente se justifica: nádegas, calor, osso, capim do chão, calombo que coçava, pulga sob a roupa, animal no campo, atrás dessa auréola, descia o braço, o focinho que desce para comer o capim do chão. A partir do uso desse vocabulário, é estabelecida uma tensão entre a parte de cima e a de baixo, ou seja, o rosto ri, e por trás de si mesmo, carrega uma espécie de libertinagem que acontece pelo movimento do braço que desce. O sorriso no rosto é comparado, pelo procedimento do símile, a uma flor carnívora que se esforça para dar beleza à corola, a um animal no campo de primavera. Essa figurativização não corresponde ao que realmente é apreendido por uma leitura primeira, a qual está focada principalmente no nível semântico,
12 ou seja, aquela que entende o riso como índice de prazer. Contudo, o riso no poema em questão parece ser um riso forçado de uma flor carnívora que quer dar beleza à corola, isto é, ao meio do qual brota. Tal flor pode ser comparada ao homem que brota da sociedade e que sorri para seguir suas tradições, forçar sua beleza. Essa leitura que fazemos é reiterada pela figura do animal, metonímia do instinto em si, um animal do campo, ou seja, agressivo, selvagem, mas que se encontra em um campo de primavera, de flores belas que escondem sua agressividade. É essa agressividade contida que percebemos ao olhar por detrás do sujeito que se coça, vê-se que a mão e os dedos trabalham nas nádegas, no brim azul das calças, (como um animal no campo na primavera visto de longe, mas visto de perto, o focinho, sinistro de calor e osso, come o capim do chão). O homem é também comparado ao polvo, que lança seu veneno e foge, o que nos abre a possibilidade de entender que o homem ri para enganar, para fingir que está tudo bem, mas, o que acontece por trás da máscara do riso é um desconcerto do corpo que se ajeita a buscar o que o incomoda. É esse efeito que causa o riso no leitor, esse desconcerto do corpo, a atenção que se volta para o gesto e não para a moral de quem o emite. Tomando Bergson (1993, p.31) como ponto de partida, o riso acontece quando a atenção se transfere do espiritual para o físico e passamos a ver o homem que fala ou que age enquanto pertencente a um segundo plano, voltando toda a nossa atenção a um detalhe físico, como por exemplo, um defeito, uma distração, que concentra todo interesse, deixando o conteúdo do que é dito ou feito em segundo plano. É um processo de caricaturização que consiste em apreender uma disformidade que pode existir em potencial, mas que foi recalcada e não pôde acontecer. Assim, Ferreira Gullar opõe os dois planos do corpo: superior e inferior, permitindo-nos uma leitura voltada para uma erotização um
13 tanto desajeitada que se transforma em elemento de comicidade, mas sem deixar de sugerir que há algo que perturba e incomoda. Diante disso, vamos mais longe e pensamos na relação do incômodo; estabelecemos, portanto, a pulga como a metáfora do problema social que incomoda, mas que não pode ser lançado, a menos que seja por meio do riso, que lança a sua tinta e foge, ou seja, é o riso que vem, sem alardear, como que de brincadeira apenas e faz sua crítica, demonstra o incômodo que precisa ser verbalizado. Acontece, pois, como um movimento do inconsciente, um fluxo de ideias, ações de liberdade, que causam o riso, dotam o sujeito desajeitado de comicidade e fazem com maestria a crítica que precisa ser feita pelo escritor. O riso é um sumo servil na doçura do mel e ao mesmo tempo o polvo que lança a sua tinta e foge. Pensamos no sujeito oprimido, porém, um ser capaz de resistir e de construir crítica por meio do riso. Essa questão social é reafirmada pela estética do poema: para acompanhar a postura desconcertada do homem que ri, o texto é construído por uma disritmia, uma variação no uso de sílabas longas e breves, os versos livres e brancos, elementos que demonstram a liberdade do fazer poético contemporâneo de Ferreira Gullar, postura essa fruto do projeto iniciado pelos modernistas e bastante enfatizado por Mário de Andrade: o direito à constante pesquisa estética, à procura das pulgas que incomodam tanto na realização da forma do poema como na sua função social. Portanto, lemos o poema em questão, principalmente considerando-o espaço de crítica do poeta social, um poeta que utiliza o riso não como índice de prazer, mas como elemento desencadeador de crítica, desconstruindo tanto a forma tradicional do poema como também a maneira de se criticar, tal como vimos em Ode ao burguês. Ferreira Gullar ultrapassa os experimentos no corpo da palavra, como aponta Bosi (2001, p.473), e passa a veicular a poesia social e participativa, o que nos leva a considerá-lo contemporâneo do projeto de Mário de Andrade, pautado em unir o ideológico e social ao estético.
14 Referências Bibliográficas ANDRADE, M. Paulicéia desvairada. São Paulo:Mayença, BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, BERGSON, H. O riso. Ensaio sobre o significado do cômico. Trad. de Guilherme de Castilho. 2. ed. Lisboa: Guimarães Editores, BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 39. ed. São Paulo: Cultrix, CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Formação da Literatura Brasileira. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, 2 vols. GULLAR, F. Um homem ri In: BOSI, Alfredo; STEEN, Edla V. (orgs.). Melhores poemas de Ferreira Gullar. 6. ed. São Paulo: Global, 2000, p.43. GULLAR, F. Manifesto Neoconcreto. Portal Literal, Rio de Janeiro, Seção Ferreira Gullar por ele mesmo. Disponível em: eoconcreto.shtml?porelemesmo. Acesso em: 20 abr LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades, 1974.
15 LOPEZ, T. P. A. Mário de Andrade: ramais e caminho. São Paulo: Duas Cidades, Arlequim e modernidade In: Mariodeandradiando. São Paulo: Hucitec, NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: Edusp, PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. de Olga Savary. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
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