Como pode o subalterno falar?
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1 UFJF Faculdade de Letras Oficina: Encontros com a Literatura X Profª: Charlene Miotti Aluna: Anna Macacchero Detoni Trabalho Final 09/11/2017 Como pode o subalterno falar? 1. Introdução Neste trabalho de conclusão do ciclo de leituras comentadas que ocorreu entre 5 de agosto e 21 de outubro de 2017, com o tema de Mulheres Escritoras, exponho minhas reflexões que surgiram durante esse período, principalmente motivadas por três encontros: Examinar a vida na obra de Judith Butler, apresentado pela Profª. Drª Silvina Liliana Carrizo no dia 16 de setembro, Maria Firmina dos Reis: entre o romance e o periódico, apresentado pela Profª. Drª. Bárbara Inês Ribeiro Simões Daibert, no dia 23 de setembro e Carolina de Jesus: pode o subalterno falar?, apresentado pelo Prof. Dr. Carlos Augusto Bonifácio Leite. A partir da vida dessas três autoras e suas respectivas obras discutidas nesses encontros, e provocada pelo artigo Pode o subalterno falar? (2010), da teórica indiana Gayatri Chakravorty Spivak, viso analisar a posição dos grupos que se encontram em posição de subalternos na sociedade atual, e possíveis formas de resistência desses grupos, de defender seus locais de expressão e reivindicação de direitos. 2. Judith Butler e os corpos abjetos Judith Butler é uma filósofa pós-estruturalista estadunidense, com trabalhos de grande relevância para os movimentos feministas contemporâneos. Em 1990, publicou o livro Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade, trabalho fundador dos estudos queer, no qual discorre sobre o sujeito do feminismo, se preocupando com a busca dessa identidade. Partindo da célebre frase de Simone de Beauvoir, Não se nasce mulher, torna-se mulher, Butler questiona a existência de uma mulher universal, e nega a perspectiva essencialista, encarando o gênero como uma construção social, isto é, como performativo. Dessa forma, baseia-se na definição de atos performativos de J. L. Austin (1990) para definir gênero como um conjunto de atos repetidos culturalmente,
2 uma performance reencenada de normas e significados estabelecidos socialmente que se legitimam pela imitação de convenções dominantes. As identidades de gênero, portanto, não possuem uma materialidade, mas são produzidas através dos signos. A filósofa, além disso, recorre às ideias de teóricas feministas como Monique Wittig (1992), para evidenciar e criticar a matriz heterossexual através da qual a sociedade percebe e categoriza os corpos de forma a dar-lhes inteligibilidade. Essa matriz heterossexual é caracterizada pela lógica de sexo-gênero-desejo, na qual um corpo que nasce com uma genital é designado a um gênero, e espera-se que tenha um desejo heterossexual. Por exemplo, um indivíduo que nasce com uma vagina é designado ao gênero feminino, e espera-se que tenha desejo por indivíduos do gênero masculino. Em Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo (2015), Butler aponta que esta matriz excludente pela qual os sujeitos são formados exige, pois, a produção simultânea de um domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são sujeitos, mas que formam o exterior constitutivo relativamente ao domínio do sujeito. Os seres cujos corpos fogem a essa matriz de inteligibilidade são colocados nessa posição de abjeção, e, portanto, por não serem vistos como sujeitos, não possuem voz. Na realidade brasileira atual, essa definição de abjeto é extremamente relevante para caracterizar a posição das travestis na sociedade. De acordo com dados da ONG TGEU (Transgender Europe), o Brasil é o país com os índices mais altos de assassinatos motivados por transfobia, e a média expectativa de vida das pessoas transexuais no país é de 35 anos. Ao mesmo tempo, segundo dados revelados pelo site de conteúdo pornográfico RedTube, o Brasil é o país que mais procura por pornografia envolvendo travestis 1. Para além da opressão ligada ao gênero, podemos analisar a posição de outros grupos subalternos sob a perspectiva da abjeção. No século XIX, na Europa, mulheres negras eram exibidas como aberrações em eventos para as classes privilegiadas, sendo o caso mais conhecido o de Saartjie Baartman, sob o nome de Vênus Hotentote. Esse caso, apesar de distante, é análogo à posição em que muitas mulheres negras, por todo o mundo, se encontram atualmente. Não é lhes dada qualquer voz, mas seus corpos são constantemente fetichizados e hipersexualizados nas grandes mídias. 1 Essa simultaneidade de repúdio e fascínio é uma característica marcante de como a sociedade hegemônica lida com corpos abjetos.
3 3. Carolina de Jesus, Maria Firmina dos Reis e a fala do subalterno 3.1. Carolina de Jesus Carolina Maria de Jesus, nascida em 1904 na cidade de Sacramento, Minas Gerais, viveu a maior parte da sua vida na cidade de São Paulo, na favela do Carindé. Foi escritora prolífica de prosa e poesia, além de peças de teatro e marchas de Carnaval. Em 1960 foi publicado seu livro Quarto de despejo, uma obra que se tornou famosa e controversa por deixar viva a fratura do real, sendo um testemunho da vida da autora como mulher negra e pobre, moradora de uma favela, além de mãe solteira, que não se preocupa em sublimar a violência dessa realidade, mas evidenciá-la. Essa perspectiva aponta Carolina de Jesus como uma pioneira da poesia marginal. O texto de Quarto de despejo foi publicado, originalmente, pelo jornalista Audálio Dantas, que descobriu a autora em A publicação, editada por ele, sofreu com a omissão de trechos controversos, que não atendiam ao objetivo de Dantas de, com ela, tornar Carolina de Jesus uma espécie de heroína da esquerda. A relevância desse fato se faz evidente quando analisamos a posição da autora de abjeção, enquanto subalterna. Sua voz só pôde ser ouvida através da mediação e edição de um sujeito privilegiado, homem e branco, e de outra forma seria ignorada, não teria qualquer voz por não ser vista socialmente como sujeito. Após Quarto de despejo, Carolina de Jesus publicou outras obras como Casa de alvenaria, Pedaços de fome e Provérbios, porém nenhuma delas teve a mesma recepção positiva da primeira. Seus leitores, em sua maioria membros das camadas privilegiadas da sociedade, esperavam que escrevesse mais obras como Quarto de despejo, não admitindo que fosse além do espaço delimitado a ela, isto é, de falar sobre a realidade das favelas, e que adentrasse o espaço da literatura branca. Nesse caso, a fala do subalterno só se fez ouvida através da mediação de sujeitos privilegiados, e quando permaneceu dentro dos moldes impostos a ela Maria Firmina dos Reis Maria Firmina dos Reis nasceu em 1825 na cidade de São Luís, no Maranhão. É tida como a primeira autora de romances no Brasil, além de suas publicações em
4 periódicos como o Semanário Maranhense e Echo da Juventude. Era uma mulher negra 2 e abolicionista. Participava da vida literária maranhense e era conhecida na província como professora, e publicava suas obras em anonimato, como o romance Úrsula (2004), usando o nome de Uma maranhense. Através de toda a história moderna, foi comum para que mulheres escritoras fossem publicadas e lidas, que adotassem pseudônimos masculinos, ou, como Maria Firmina, que publicassem em anonimato. É uma prática paralela à mediação do homem branco da qual Maria Firmina também precisou, em relação à possibilidade de que indivíduos pertencentes a grupos subalternos tenham espaço de fala. Maria Firmina dos Reis era defensora de ideais abolicionistas radicais, com ideias que iam muito além das dos abolicionistas da corte, que defendiam o fim da escravidão pelo perigo que os escravos, corrompidos pelo mal da escravidão, representavam. Católica, defendia o fim da escravidão pelos ideais cristãos. Sua tese, tanto nas publicações em periódicos, como em Úrsula em capítulos como Duas Almas no qual a comunicação entre o branco e o negro se faz possível através de almas que se falaram, é a da fraternidade entre todos os indivíduos, independentemente de suas raças, pois suas almas seriam iguais. Assim, parte da religiosidade dominante para ter suas opiniões ouvidas, e lutar pelos direitos das classes subalternas. 4. Considerações finais O debate sobre a posição dos indivíduos abjetos e a possibilidade de conquistarem um espaço de falarem e serem ouvidos é extenso e, considerando sua importância para os dias atuais, deve continuar a ser discutido e desenvolvido para além deste trabalho, que não pode contemplar toda a complexidade desse assunto. Porém, através da vida e obras das autoras Carolina Maria de Jesus e Maria Firmina dos Reis, é possível traçar aspectos dessa realidade e considerar de quais formas esses indivíduos podem ser ouvidos. G. C. Spivak, em seu artigo Pode o subalterno falar? (2008), lança a questão da possibilidade de que essas classes, construídas pela exclusão do mercado, tenham voz fora do discurso hegemônico. No caso de Carolina de Jesus, foi necessária uma mediação e uma podagem de seu discurso para que encaixasse nos moldes definidos pelas classes hegemônicas. Já Maria Firmina dos Reis pôde ser ouvida 2 Mulata, na fala da época.
5 justamente por se utilizar do discurso hegemônico do cristianismo para basear suas ideias. Outro debate promovido por Spivak é sobre o quanto indivíduos detentores de privilégios das classes hegemônicas podem falar sobre o contexto das classes subalternas. Minha posição, em concordância com a da autora, é de que o papel desses indivíduos é o de dar lugar para que as classes subalternas falem de sua própria realidade. É, portanto, importantíssimo lutar para criar um espaço em que o abjeto se torne sujeito, que tenha voz e que fale por si e seja ouvido. Referências AUSTIN, J. Quando dizer é fazer. Trad. Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes médicas, BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Cuerpos que importan: sobre los limites materiales y discursivos del sexo. 2ª ed. Traducido por Alcira Bixio. Buenos Aires: Paidós, JESUS, Carolina de. Quarto de despejo. São Paulo: Francisco Alves, REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. [1859]. Posfácio de Eduardo de Assis Andrade. Ilha de Santa Catarina: Mulheres/PUC Minas, SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. 1. ed. Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: UFMG, WITTIG, Monique. The Straight Mind and Other Essays. Boston: Beacon, 1992.
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