TRIBUNAL SUPREMO. Câmara do Cível e Administrativo

Transcrição

1 . Câmara do Cível e Administrativo ACÓRDÃO PROCESSO Nº 908/05 NA CÂMARA DO CÍVEL E ADMINISTRATIVO DO TRIBUNAL SUPREMO OS JUÍZES ACORDAM EM CONFERÊNCIA, EM NOME DO POVO: No Tribunal Provincial do Namibe foi proposta uma acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, por MATILDE ANTÓNIO FIRMINO, casada, residente na Rua Eurico Gonçalves contra EUGÉNIO CABRAL VIEIRA JÚNIOR, Industrial de pesca, sócio gerente da Firma Vieira e Ribeiro Lda., com residência habitual nesta cidade, pedindo que o Réu seja condenado no pagamento da quantia de Kz (Noventa e Três Mil e Seiscentos Kwanzas) a título de indemnização e juros de mora. Para fundamentar a sua pretensão, a Autora alega, em síntese, que acordou com a esposa do Réu no sentido desta passar a fornecer ao casal e ao seu neto, em todas as ocasiões que estes viessem à cidade do Namibe, as refeições assim como a prestação de toda a assistência doméstica necessária. Tal acordo teve início a partir de 14 de Fevereiro de 1993 e vigorou até 02 de Agosto de 1999, altura em que a Autora deixou de fornecer refeições, assim como a prestação de serviços domésticos. Acontece porém que, não obstante a Autora ter cumprido com o acordado durante 78 meses, a verdade é que nunca foi retribuída pecuniariamente com qualquer quantia pelo que estima que tenha gasto com o fornecimento das refeições a quantia de Kz ,00 (Setenta e Oito Mil Kwanzas) e pelo serviço doméstico a quantia de Kz ,00 (Quinze Mil e Seiscentos Kwanzas) totalizando a quantia de Kz ,00 (Noventa e Três Mil e Seiscentos Kwanzas). 1

2 Citado o Réu, (fls. 12), veio o mesmo juntar contestação, (fls. 14), defendendo-se por impugnação alegando para o efeito que nunca existiu qualquer tipo de contrato entre si e a Autora porquanto de todas as vezes que a mesma se disponibilizou para efectuar estas tarefas fê-lo por vontade própria como forma de singela retribuição, a título de compensação dispensada ao casal que a tivera acolhido. O Réu veio ainda deduzir pedido reconvencional pedindo uma indemnização à Autora no valor de Kz ,00 (Cento e Doze Mil e Quinhentos Kwanzas) pelo facto de esta ter dado um uso contrário ao imóvel do Réu e, em consequência disto, estar o referido imóvel maltratado e alguns bens de valor espiritual danificados. Aos autos foi junto Réplica (fls.31) onde a Autora refuta as alegações deduzidas pelo Réu no seu pedido reconvencional e reitera o já alegado na Petição Inicial. Designada audiência preparatória (fls. 33), a mesma realizou-se em conformidade com a lei, não tendo as partes chegado a acordo quanto à matéria controvertida (fls. 40). Elaborado o despacho saneador, com especificação e questionário (fls. 42) não foi o mesmo objecto de qualquer reclamação. Designado dia para julgamento, (fls. 45), o mesmo realizou-se em conformidade com a lei, (fls. 66 a 69). Proferida sentença, (fls. 81), o Tribunal "a quo" julgou a acção procedente e, em consequência, condenou o Réu no pedido. Inconformado com a decisão, o Réu interpôs o competente recurso de apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito 2

3 suspensivo (fls. 87). O Tribunal "a quo" admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito suspensivo, (fls. 89). Notificadas as partes, veio o recorrente juntar as devidas alegações (fls. 90) fundamentando, em síntese, o seguinte: 1. Que, entre o apelante e a apelada existiu um "acordo de cavalheiros" gozando esta da ocupação gratuita do imóvel mobilado daquele, em simultânea coabitação com o primeiro, o que mostra estarmos diante de normas de trato social, não preenchendo qualquer previsão legal, ou matéria de direito. 2. Que, por consequência, foram servidas de forma desinteressada ao apelante pela apelada ocasionais refeições (menos de uma/mês ao longo de seis anos e meio), segundo os usos sociais de vida no interior de Angola, dirigidos à sã convivência. 3. Que, perante o pretenso arrendamento, não foi possível à apelante demonstrar, por prova nos autos, um qualquer recibo passado de rendas, ou mesmo descontos no ordenado do seu marido pelas folhas salariais mensais, deste modo, "actore non probante, reus absolvitur". 4. Que, quando o Réu apelante revelou o seu direito na qualidade de proprietário do imóvel, de o ocupar por inteiro, a apelada em reacção, facturou por documentos selados um suposto vínculo de trabalho doméstico, no montante de Kz ,00, demonstrando assim um ilícito em ordem ao regime fiscal angolano, porquanto não provou nos articulados a qualidade de ser contribuinte ao abrigo do diploma legal em apreço. 5. Que, por outro lado e, partindo do princípio que não venha a ser confirmado o acima descrito, será então de inferir que existiu um contrato de serviços domésticos (denominado também, a certa altura, neste processo, de trabalho familiar ou trabalho ocasional) mas em todo o caso uma relação jurídica laboral, achando-se o pleito da competência da sala de trabalho, devendo, então, considerar-se nulo todo o processo por desrespeito à tramitação 3

4 processual específica que a lei apropriadamente prescreve. Conclui pedindo que seja concedido provimento ao recurso e, em consequência, que se revogue a decisão recorrida. A recorrida não contra alegou. O Tribunal "a quo" admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito suspensivo, (fls.106v). Remetidos os autos ao Digno Representante do Ministério Público junto desta instância, (fls. 109), o mesmo pugnou pela revogação da decisão. Correram os vistos legais. Tudo visto cumpre decidir: I - A Questão do Recurso Sendo o âmbito e o objecto do recurso delimitados, (para além das meras razões de direito e das questões de conhecimento oficioso), pelas conclusões formuladas pela recorrente - arts.660, nº 2, 664, 684, nº3 e 690, nº1, todos do C.P.C., emergem como questões a apreciar e decidir, no âmbito do presente recurso, as seguintes: 1. Qual a relação jurídica existente entre o recorrente e a recorrida. 2. Saber se a recorrida tem direito aos montantes atribuídos pela sentença recorrida. II - Fundamentação A sentença recorrida deu como provado os seguintes factos: 1. A Autora viveu com o marido em casa do Réu. 2. O Réu fazia refeições, embora raras vezes, à custa da Autora. 3. A Autora prestou serviços ao Réu. III - Questões Prévias 1. A sentença recorrida apresenta-se tecnicamente mal elaborada porquanto viola o disposto no art.659º do C.P.C.. 4

5 Efectivamente, andou mal o Juiz "a quo" ao apreciar a questão de direito e excepções antes do saneamento da acção, demonstrando como tal, um total desconhecimento do que se pretende com o saneamento da acção e quais as questões que se suscitam no âmbito do saneamento da acção. 2. O Tribunal "a quo" não procedeu ao julgamento da matéria de facto tal como o impõe o art.653 do C.P.C.. Atendendo que o questionário, limitado aos factos relevantes não provados, tendo havido contestação, circunscreve o âmbito da instrução, do julgamento do Tribunal colectivo e da primeira parte da discussão da causa (arts.513, 653, nº 2 e 653, n.º 3/e, do C.P.C.), é indispensável que o Tribunal "a quo" proceda à resposta aos quesitos para, deste modo poder fundamentar a sua decisão. Assim, poder-se-á afirmar que a fundamentação das decisões judiciais, em geral, cumpre duas funções: a) uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao Juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o Tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; b) outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao Juiz "ad quem" e que procura, acima de tudo, tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão (que procura, dir-se-á por outras palavras, garantir a «transparência» do processo e da decisão - vd. Abílio Neto in Código de Processo Civil Anotado, 14ª ed., pág Destarte, uma vez que os quesitos formulados pelo Tribunal "a quo" contêm matéria relevante para a boa decisão da causa estava o mesmo obrigado a dar resposta aos referidos requisitos pelo que, não o tendo feito, pôs em causa os fundamentos de factos em que alicerça a sua decisão e, consequentemente, a anulação do processado posterior a esta omissão. Nestes termos e fundamentos, acordam os desta Câmara em 5

6 anular o processado a partir de fls. 81, devendo os autos serem remetidos ao Tribunal "a quo" para proceder ao julgamento da matéria de facto, em conformidade com art. 655 do C.P.C.. Sem custas. Luanda, Joaquina do Nascimento Belchior Samuco André Silva Neto 6