Quando a saudade bate

Transcrição

1 Quando a saudade bate A natureza foi pródiga no Pantanal. Terras férteis, um mapa que se altera com as chuvas, ar puro e um pôr-do-sol cor de fogo como uma arara vermelha a riscar o horizonte. Quantas músicas inspiraram estas paisagens? Há viagens que pedem uma banda sonora, como esta É assim que regresso com frequência Texto e fotos Sandra Nobre 106 Experiências 107

2 Às vezes volto ao cd trazido dessa viagem. Oiço o violeiro Amir Sater e vejo-me de novo no Panatanal, por estradas de terra sem fim. Fecho os olhos e o horizonte é verde e azul e há pó sempre no ar e agarrado à pele. Revejo as paisagens nas canções tocadas e os sentimentos desfilam nas notas arrancadas da viola caipira de dez cordas. Se há coisa que um peão sabe é interpretar histórias de amor que viram novela. Lembro-me de assistir ao Pantanal (1990), de Benedito Ruy Barbosa, e de gravar as imagens de uma natureza tão diferente de tudo o que conhecia. Às vezes, a caminho de Ayamonte, cravava os olhos no sapal de Castro Marim desde a janela do carro, donde avistava de longe os flamingos que ali paravam e perguntava-me se era de lá que vinham. Lembro-me de pensar que um dia gostaria de ver aquele lugar sem ser num ecrã de televisão. Sater já era actor nesse tempo e cantava modinhas da terra onde nasceu, o Mato Grosso do Sul. Um dia, o pensamento concretizou-se. Viajar pelo Pantanal pede tempo. Pede peito aberto e olhos atentos. Exige que esqueçamos o mundo para além destas fronteiras. Entrego-me sem medo à bicharada. E, garanto, a Amazónia pode ficar com todos os superlativos, mas o Pantanal ganha-lhe na sinfonia da natureza, na riqueza de fauna e flora a olho nu, em cor, em sons, em vida. Uma das mais exuberantes e diversificadas reservas naturais do Planeta, classificada como Património da Natureza e Reserva da Biosfera pela UNESCO, estendendo-se pelo Brasil, Paraguai e Bolívia, numa área de 250 mil quilómetros quadrados. São dois mundos distintos, consoante a estação seca (vazante) ou a época das chuvas, mas igualmente ricos. A diferença é que agora seguimos de carro e a cavalo, quando subir o nível das águas chega-se de barco ou avião. Ou não se sai do lugar e fica-se a assistir às migrações. Personagens de telenovela A comitiva, que crescia à medida que pernoitávamos em cada fazenda para logo perder elementos na hora de seguir viagem, foi inesquecível. António, Rita, Daniela, Roque e eu continuámos juntos até ao fim. Revelámos as nossas vidas nos momentos partilhados à mesa, nos muitos quilómetros de carro, nos serões longe da televisão e, algumas vezes, sem telefone nem internet. 109

3 Lembro-me de assistir à telenovela Pantanal (1990), de Benedito Ruy Barbosa, e de gravar aquelas imagens de uma natureza tão diferente de tudo o que conhecia e pensar que um dia gostaria de ver aquele lugar sem ser num ecrã de televisão Descobri assim o quanto podemos estar longe, apenas porque não podemos ter qualquer notícia. Quantas vezes gostava de repetir essa sensação de isolamento Conheci gente fascinante que podia ser arrancada de um enredo de telenovela, como Públio Gomes, o capataz que seguia na frente de 380 cabeças de gado, quatro peões experimentados e um cozinheiro. Ganha a vida a desbravar caminhos no Pantanal sul mato-grossense, em estradas, ora de pó, ora alagadas, com a natureza por companhia. As notícias que lhe chegam são as da próxima Festa do Laço, que reúne os peões mais destemidos do Estado, um ou outro mexerico sobre façanhas de peões ou ataques de onças. À distância, este é um ínfimo ponto do Google Earth, mas isso pouco dá que pensar ao capataz, pantaneiro à moda antiga. «Tem boi que morre, boi que se perde, boi que fica preso, boi ferido O meu mundo é isso». Na Fazenda Xaraés, dona Maria, mulher de mão cheia para a cozinha, vê e ouve tudo, toda ela é segredos. Às cinco da manhã já há bolo acabado de fazer em forno de lenha, café passado e arroz-de-carreteiro que acompanha a carne seca. O pequeno-almoço é reforçado, chamam-lhe quebra-torto. É dona Maria quem cuida do sítio e tem a seu cargo os homens que ali vivem e trabalham. Tem a televisão suspensa a um canto por companhia, sem desviar o olhar dos cozinhados para acompanhar as rezas da missa. A alma também precisa de alimento. Descendo para Bonito, entrei na dança. Uma dupla de sucesso, desconhecida entre nós, Breno Reis e Marco Viola sentiram os holofotes da Europa apontados a si diante da jornalista internacional. Abriram-se alas na multidão para deixar passar a repórter que foi entrevistar os dois cantores pantaneiros. Bebemos cervejas junto a uma arca 110 Experiências 111

4 congeladora, sentados em cadeiras de plástico e desfiaram-se as letras das músicas, a vida na estrada, de palco em palco, o sucesso. Durante a actuação, os artistas acompanharam alguns acordes com um «Obrigado aos amigos portugueses aqui presentes, o António, a Sandra, a Rita». E as luzes focaram um canto da sala. Por uma fracção de segundos, a jornalista tornou-se notícia na terra. Modinhas brasileiras Sob o Cruzeiro do Sul, vi os olhos dos bichos a espreitar entre os arbustos. Vi jacarés, preguiças, jibóias, antas, macaco-prego, tuiuiús (pássaro símbolo do Pantanal), jaguatiricas, tucanos, capivaras, sucuris, emas, araras azuis e vermelhas Só não vi a onça-pintada. Tive pena! Pesquei piranhas que viraram caldo ao jantar. Andei pelo mato, mergulhei nas cachoeiras e nos rios, desci a grutas. Sobrevoei a paisagem num voo rasante para traçar esse gigante mapa verde onde se desenham caminhos de água. Respirei ar puro e enchi os pulmões de outras vidas. Às vezes volto ao cd trazido da viagem. A banda sonora devolve-me àquele lugar onde tudo ganha outra dimensão. Não há muitos lugares que fiquem gravados em nós e deixem marcas como o Pantanal A internet que prescindi na viagem aproxima agora os dois lados do Atlântico. Daniela e Roque estão no Brasil e mantemos contacto regularmente. Eu, 112 Experiências 113

5 Só não vi a onça-pintada. Tive pena! Mas pesquei piranhas que viraram caldo ao jantar. Andei pelo mato, mergulhei nas cachoeiras e nos rios, desci a grutas. Sobrevoei a paisagem num voo rasante para traçar esse gigante mapa verde onde se desenham caminhos de água o António e a Rita em Portugal e vemo-nos por aí. Se voltássemos amanhã aos mesmos lugares continuaríamos as conversas do dia anterior. A cumplicidade foi grande demais para deixar que o tempo e a distância atenue os laços, mais uma razão para voltar a ouvir: «Cavaleiro imaginário Cruzo as quatro direções Meu campeio é solitário Vou domando as emoções Que eu já plantei Dentro do peito Mas me sufocam Quando eu me deito E assim nem sei Se vai ter jeito» (Moda Apaixonada, Amir Sater). O pensamento voa. Um beijo S. Talvez se concretize Sandra Nobre nasceu a Sul, onde o mar tem o apelo dos navegantes, e ficou-lhe colada à pele a vontade de correr mundo. Aventurou-se na rádio e na televisão, mas fez da imprensa o seu mapa-múndi. Trabalha no semanário SOL desde a sua fundação, onde actualmente é Editora da revista FEEL IT. Conta vários prémios de jornalismo. Gosta de aeroportos, aviões, comboios, hotéis, de conjugar o verbo IR e andar nas nuvens. Tem sempre uma mala pronta para seguir viagem. Agora que anda a reclamar férias e a sonhar com destinos exóticos: Galápagos, Fiji, Zanzibar 114 Experiências 115