ESTUDOS GEOARQUEOLÓGICOS EM SAMBAQUIS DO LITORAL DE SANTA CATARINA. Marisa Coutinho Afonso 1

Transcrição

1 ESTUDOS GEOARQUEOLÓGICOS EM SAMBAQUIS DO LITORAL DE SANTA CATARINA Marisa Coutinho Afonso 1 1 Museu de Arqueologia e Etnologia/Universidade de São Paulo (marisa@br2001.com.br) Abstract. Brazilian south coast presents a concentration of shellmounds. Archaeological researches were held in the north and south part of Santa Catarina State Coast (Southern Brazil) and indicate longterm populations, specialized in the exploitation of sea resources, mainly fish and shellfish, building their sites with shells.geoarchaeological studies aimed to identify sites distribution in the landscape based on recent geological data on sea level changes. Other approach was to identify site formation processes based on stratigraphical and sediment analysis and postdeposicional processes. Detailed researches were carried out at Espinheiros II (Santa Catarina northern coast) and Jaboticabeira II (Santa Catarina southern coast) sites, two large and stratigraphically complex shellmounds. Espinheiros II site showed a bottom layer constructed as a platform during its initial occupation phase (2970 ± 60 years BP) as a result of intentional accumulation of mussel shells. Geoarchaeological, zooarchaeological and chronological studies show that the Jaboticabeira II had been occupied without interruption for almost 800 years. Ongoing studies address questions concerning the paleoenvironment, the function of the sites, chronology and social complexity, among others. palavras-chave: geoarqueologia, sambaqui, processos de formação Desde o início da colonização européia, os sambaquis despertaram a atenção provocando discussões sobre sua formação (artificial/antrópica ou natural). Estes sítios arqueológicos apresentam o modo de vida de populações pré-históricas de pescadores, coletores e caçadores, familiarizados com o ambiente costeiro. Sua distribuição geográfica abrange da costa norte à costa sul brasileiras, com algumas áreas apresentando uma grande concentração de sítios, como no Estado de Santa Catarina. Sua destruição, visando à exploração econômica das conchas, afetou grandes áreas no Brasil, com a perturbação e destruição de muitos sítios, e ao mesmo tempo levou à reação preservacionista de pesquisadores como Paulo Duarte e José Loureiro Fernandes que contribuíram para elaborar a lei federal de proteção dos sítios arqueológicos brasileiros. Até a década de 80, a visão que os arqueólogos tinham dos sambaquis era a de sítios ocupados por grupos coletores-pescadores, organizados socialmente na forma de bandos, com alta mobilidade territorial e com a subsistência baseada especialmente na coleta de moluscos. Os sambaquis eram então interpretados como áreas de descarte dos restos da alimentação, principalmente de conchas dos moluscos. Embora visualmente os perfis dos sambaquis apresentem mais conchas do que restos de peixes, análises zooarqueológicas demonstraram que, de fato, os peixes contri

2 buíram de forma predominante na alimentação (Figuti 1992, Klökler 2001). Analisando-se os processos de formação dos sítios arqueológicos, percebeu-se que as conchas não significavam apenas restos de alimentação, mas também funcionavam como material construtivo para a edificação dos sambaquis. O fato dos grupos pescadores-coletores-caçadores construírem marcos territoriais como os sambaquis permite supor que teriam uma organização social mais complexa do que a estrutura de bandos permitiria, além de uma menor mobilidade territorial. Projetos arqueológicos desenvolvidos no Estado de Santa Catarina a partir da década de 90 tem contribuído para a melhor compreensão de como estes grupos se organizavam e se relacionavam com a paisagem litorânea. Este Estado apresenta duas áreas importantes de concentração de sambaquis: o litoral norte, região de Joinville e São Francisco do Sul, e a região sul, Jaguaruna, Laguna e Tubarão onde se localiza o mais alto sambaqui brasileiro Garopaba do Sul, com 22 metros de altura. O objetivo deste trabalho é apresentar aspectos relacionados à geoarqueologia dos sambaquis localizados no litoral norte e no litoral sul do Estado de Santa Catarina. Projetos arqueológicos estão sendo desenvolvidos nestas áreas visando identificar os processos de formação de sambaquis e as relações entre os sítios arqueológicos e a paisagem. ivo domar (Oliveira et allii,1999) Pesquisas no sambaqui Espinheiros II, localizado em Joinville (De Blasis, Afonso 2000), identificaram uma camada espessa (cerca de um metro) composta quase que exclusivamente por conchas de berbigões (Anomalocardia brasiliana) inteiras e muitas vezes fechadas, com a presença esparsa de fragmentos de carvão e coquinhos calcinados. O sambaqui Espinheiros II foi construído sobre depósitos de leque aluvial (Oliveira 2000), com os quais forma uma faixa de contato suave e gradual, e ali, onde as conchas deram lugar gradativamente ao sedimento fino e escuro do substrato geológico, ocorreram carvões, ossos de peixes e outras espécies marinhas, e também restos vegetais, inclusive fibras vegetais trançadas. Uma amostra de carvão proveniente desta faixa de contato produziu a datação de 2970±60 anos AP (Gif-9416), indicando o início do processo de instalação desta população no local. Figuti, Klökler (1996) apontam nos níveis mais antigos a predominância de apenas uma atividade, coleta de berbigões, e nos níveis mais recentes produtos de atividades mais diversificadas com a pesca como atividade principal e a coleta de moluscos como atividade complementar (mariscos e ostras dos manguezais e berbigões nos bancos lodosos). A análise das camadas de base do sítio revelam um conteúdo não relacionado à subsistência, mas sim indicando um processo relativamente rápido de edificação do assentamento sobre os depósitos de leque aluvial. Em uma abordagem regional mais ampla, Oliveira (2000) caracterizou a espacialidade dos sambaquis da planície costeira de Joinville, a partir de uma abordagem geológico-evolutiva e de uma perspectiva conservacionista da área. Mapeou 42 sambaquis localizados na área de estudo, sendo que para 12 deles não havia citação bibliográfica anterior, entre eles o de maior dimensão na área de estudo (sambaqui Tiburtius), com aproximadamente 18 m de altura e m 3 de volume. O autor identificou os substratos geológicos dos sambaquis da planície costeira de Joinville, sendo que 14% dos sítios localizam-se sobre embasamento cristalino, 12% sobre depósitos flúvio-lagunares, 34% sobre depósitos de leques aluviais (como é o caso do sambaqui Espinheiros II e do sambaqui Ribeirão do Cubatão) e 40% sobre depósitos eólicos.

3 Oliveira (2000) propôs uma rota denominada Eixo São João/Palmital que teria favorecido o deslocamento de populações sambaquianas entre a Baía de Guaratuba (PR) e a Baía de Babitonga (SC), baseada em estudos paleogeográficos que indicaram que a instalação inicial da maior parte dos sambaquis teria ocorrido entre e anos AP, quando os manguezais estavam sendo ampliados. Nesta rota hipotética, Brochier (comunicação pessoal) localizou um sambaqui de 20 metros de altura, mostrando a eficiência de modelos preditivos baseados em estudos paleoambientais. Bentz (2001) organizou um banco de dados digital, a partir das fichas de descrição dos quarenta e dois sambaquis elaboradas por Oliveira (2000). A aplicação de análise estatística aos dados relacionados às dimensões dos sítios (altura, largura e comprimento), com a elaboração de diagramas de barras, possibilitou observar que os sambaquis tendem a apresentar alturas entre 1 e 10 metros, e comprimentos e larguras variando entre 20 e 100 metros. Sítios com alturas acima de 14 metros, bem como larguras e comprimento maiores que 180 e 140 metros, respectivamente, ocorrem com menor freqüência. O tamanho dos sambaquis poderia ser relacionado com elevações naturais, ou seja, sambaquis construídos sobre porções mais altas do relevo apresentariam uma espessura menor em conchas para preservar sua estabilidade física. Por outro lado, sambaquis edificados sobre áreas planas (mangue, por exemplo) poderiam ter uma espessura em conchas maior, acompanhada de uma base de sustentação de dimensão correspondente. Amostras de sedimentos foram coletadas ao longo de seções colunares no sambaqui Lagoa do Saguaçu para análises granulométricas. Os sedimentos que compõem a matriz apresentaram-se constituídos principalmente de argila e silte fino, apesar da grande diferença visual de cor e quantidade de conchas entre as amostras. Notou-se também que a fração areia incorpora grande quantidade de fragmentos de conchas, provavelmente originados do esmagamento do material de construção do sambaqui, por pisoteio ou soterramento (Bentz 2001). Ou seja, apesar da variação textural, cor, quantidade e fragmentação das conchas, a matriz apresenta comportamento semelhante nas proporções de finos e grossos, uma moda principal na fração argila e uma moda subordinada na fração areia. Percebe-se que tanto nas análises zooarqueológicas (Figuti, Klökler 1996) quanto nas análises geoarqueológicas dos sedimentos dos sambaquis (Bentz 2001), há grandes diferenças entre as interpretações feitas em campo, visualmente, daquelas obtidas a partir das pesquisas em laboratório. Outra característica comum aos dois tipos de análises é que a grande variabilidade composicional dos sedimentos em um mesmo sambaqui torna difícil a determinação dos locais de coletas de amostras, de maneira que sejam representativas de episódios e processos ocorridos no sítio. A complexidade estratigráfica de sítios como sambaquis é muito grande determinando desafios metodológicos que envolvem a coleta e a análise das amostras. No litoral sul de Santa Catarina (De Blasis 1999, 2004), as pesquisas geoarqueológicas abrangem duas escalas de abordagem. Na regional, através da relação dos sítios com a geologia do Quaternário costeiro e na local com a identificação dos processos de formação dos sambaquis, baseados nas análises estratigráficas, sedimentológicas e cronológicas. Foi feito um levantamento dos sítios, sobretudo na faixa costeira, quando foram identificados conjuntos de sítios de grandes dimensões ao lado de outro menores, formando um complexo padrão de assentamento na paisagem. Os sambaquis

4 maiores foram bastante explorados economicamente, mas os menores não tinham muito interesse comercial nem atraíam a atenção dos arqueólogos até recentemente. O levantamento arqueológico identificou vários conjuntos (como nas regiões da Carniça, no litoral, ou de Mato Alto, mais para o interior) que sinalizam a presença de sistemas articulados de assentamento. Estudos geológicos da área indicam que sambaquis como o Garopaba do Sul e os Figueirinhas I, II, III foram construídos entre a linha de costa e a lagoa, no sistema deposicional barra-barreira, identificado por Giannini (1993) como um dos quatro existentes no complexo lagunar, mas em um momento quando o nível do mar estava mais alto que o atual. O sambaqui Jaboticabeira II (Figura 1) foi objeto de uma intensa investigação intrasítio (Gaspar, 2000). As pesquisas geoarqueológicas direcionaram-se para a identificação do substrato geológico, sobre o qual a construção do sambaqui começou, através da abertura de trincheiras e sondagens, indicando que foi construído sobre os depósitos lagunares de conchas (concheiros). Na região, há extensos concheiros naturais, explorados comercialmente, e o sambaqui Jaboticabeira II está rodeado por um deles, sendo às vezes difícil localizar os limites do sítio. Uma trincheira elaborada na parte central do sambaqui apresentou sedimentos arenosos, berbigão e carvão nas camadas basais, permitindo interpretar a base do sambaqui como sendo o concheiro natural. Uma camada escura que aparece nos níveis superficiais do sambaqui tem profundidades variando de 40 cm a 2,40 m no topo do sítio, identificadas a partir de várias sondagens. Uma amostra de sedimentos escuros, coletados a 30 cm de profundidade, foi datada pelo método de termoluminescência (1160±100 anos; Código LVD 304), representando o último momento construtivo do sambaqui Jaboticabeira II. Estes sedimentos escuros não eram produto de processos pedogenéticos locais. Os sambaquieiros teriam parado de usar conchas como material construtivo principal e começado a transportar os solos escuros, argilosos e turfosos, encontrados facilmente nas áreas em torno do sambaqui em planícies de inundação e no topo dos concheiros naturais. As várias datações por Carbono 14 elaboradas (mais de trinta) mostraram uma continuidade na ocupação de pelo menos 800 anos, com o início do sítio datado em torno de 2880 anos AP. Além disso, pela grande quantidade de sepultamentos, o sítio parece ter tido uma função funerária e a região ocupada por uma alta densidade populacional. Os projetos geoarqueológicos desenvolvidos em Santa Catarina apresentam como principais características as abordagens regionais (análises inter-sítios, paleogeográficas, identificação dos padrões de assentamento) e locais (identificação dos processos formadores dos sítios; diferenças funcionais dos sambaquis). Referências BENTZ, D Os sambaquis da região de Joinville (SC) no contexto da variação do nível relativo do mar. Trabalho Final, Instituto de Geociências/Universidade de São Paulo. DE BLASIS, PAD Projeto Arqueológico do Camacho (Padrões de Assentamento e Formação de Sambaquis em Santa Catarina). As Campanhas de 1998 e Relatório Final. MAE/USP. FAPESP. DE BLASIS PAD et al Processos formativos nos sambaquis do Camacho, SC: padrões funerários e atividades cotidianas. As campanhas de 2003/2004. Relatório Final. MAE/USP. FAPESP. DE BLASIS PAD, AFONSO MC Indicadores de complexidade nos grandes

5 sambaquis do litoral sul do Brasil: o caso de Espinheiros II, Joinville. In: Alicia Durán Coirolo e Roberto Bracco Boksar (ed.) Arqueologia de las Tierras Bajas. Montevideo, p FIGUTI L Les sambaquis COSIPA (4200 à 1200 ans BP):étude de la subsistance chez les peuples préhistoriques de pêcheursramasseurs de bivalves de la côte centrale de l état de São Paulo, Brésil. Thèse de Doctorat, Muséum National d Histoire Naturelle, Paris. FIGUTI L, KLOKLER DM Resultados preliminares dos vestígios zooarqueológicos do sambaqui Espinheiros II (Joinville, SC). Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, 6: GASPAR M Sambaqui: Arqueologia do litoral brasileiro. Editora Zahar. GASPAR MD, AFONSO MC, DE BLASIS P, EGGERS S, FIGUTI L, FISH Paul, FISH S, KLOKLER DM, LAHR MM, MORLEY E Uma breve história do projeto de pesquisa Padrão de assentamento e formação de sambaquis: Arqueologia e Preservação em Santa Catarina. Revista do CEPA, v. 23, n. 29: GIANNINI PCF Sistemas deposicionais no Quaternário Costeiro entre Jaguaruna e Imbituba, SC. Tese de Doutoramento, Instituto de Geociências/USP. São Paulo KLOKLER DM Construindo ou deixando um sambaqui? Análise de sedimentos de um sambaqui do litoral meridional brasileiro: processos formativos, região de Laguna, SC. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Universidade de São Paulo. OLIVEIRA MSC Os sambaquis da planície costeira de Joinville, litoral norte de Santa Catarina: Geologia, Paleogeografia e Conservação in situ. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina Agradecimentos Á Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo auxílio financeiro às pesquisas do sul de Santa Catarina. Ao Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville pelo apoio nas pesquisas na região. Fig. 1. Sambaqui Jaboticabeira II (Jaguaruna, SC): detalhe da escavação arqueológica (Foto: Marisa Coutinho Afonso)