A educação para além do capital. István Mészáros. Tradução de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2005, 80 pp.
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- Débora Carreira Carmona
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1 resenhas reviews 205 A educação para além do capital. István Mészáros. Tradução de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2005, 80 pp. Júlio César França Lima Fundação Oswaldo Cruz <jlima@fiocruz.br> A aprendizagem é a nossa própria vida, nos educamos desde que nascemos, até a morte. Entretanto, existem restrições que impedem o pleno desenvolvimento de nossa liberdade espiritual, enraizadas nos antagonismos estruturais de nossa sociedade. É a partir dessa idéia que Mészáros pergunta: para alcançar uma transformação social qualitativa é preciso uma radical mudança estrutural ou basta uma reforma educacional? Essa é a discussão central desse pequeno grande texto, que retoma e amplia o último capítulo de seu livro Marx: a teoria da alienação, publicado no Brasil em 1981, pela Zahar. Em forma de ensaio, o texto foi escrito para a conferência de abertura do Fórum Mundial de Educação, realizado em Porto Alegre, em julho de Em um primeiro momento, polemiza com as utopias educacionais formuladas por Adam Smith e Robert Owen, no rastro da tradição iluminista liberal, para em seguida discutir a internalização dos valores capitalistas historicamente prevalecentes, fortemente consolidados a favor do capital pelo próprio sistema educacional formal. Enfatizando ao longo do ensaio uma concepção de educação abrangente, a partir do diálogo que trava com Paracelso, José Martí, Marx e Gramsci, o autor finaliza discutindo a importância dessa concepção para uma radical mudança estrutural da sociedade. Logo de início, afirma que, se não houver um acordo sobre o fato de que para uma reformulação significativa da educação é fundamental uma transformação do quadro social mais amplo, serão admitidas apenas mudanças pontuais que corrigem algum problema da ordem estabelecida, mas que de forma alguma alteram as determinações estruturais da sociedade como um todo. Essa limitação das propostas reformistas, inclusive as educacionais, faz parte da própria lógica do sistema de reprodução da sociedade capitalista, na medida em que este admite ajustar as formas pelas quais os diversos interesses particulares conflitantes devem se conformar com a regra geral da reprodução social, desde que não se altere a própria regra geral. Essa lógica exclui a possibilidade de legitimar o conflito entre as forças hegemônicas fundamentais, inclusive como alternativas viáveis entre si, quer no campo da produção material, quer no âmbito cultural/educacional, enfatizando, ao contrário, a negociação e o consenso entre as partes. Essa conformação é ao mesmo tempo compatível com a lógica do capital, benéfica para a sobrevivência do sistema, e razão do fracasso das utopias educacionais formuladas com a intenção de instituir grandes mudanças na sociedade por meio de reformas educacionais. Deste último ponto de vista, o fracasso consistiu e consiste exatamente no fato de as determinações fundamentais do sistema do capital serem irreformáveis, porque, pela sua própria natureza, como totalidade reguladora sistêmica, elas são totalmente incorrigíveis. Portanto, para Mészáros,...é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente (p. 27, grifo do autor). Para o autor, a construção de uma estratégia educacional socialista não deve ser confundida com nenhum utopismo educacional, tal qual formulado por Adam Smith e Robert Owen, no rastro da tradição iluminista liberal. O primeiro identifica, corretamente, que o principal problema do espírito comercial é a divisão do trabalho, que, levada à perfeição, torna a mente dos homens limitada e incapaz de elevação. Conseqüentemente, a educação é desprezada, ou pelo menos negligenciada, e o espírito heróico é quase totalmente extinto, o que leva os homens a se entregarem à embriaguez e à intemperança. A questão é que a solução de Smith, e não poderia ser diferente, não se dirige às causas, permanecendo prisioneiro aos limites da lógica do capital, na medida em que a remete à educação moral dos trabalhadores, de forma a evitar as bebedeiras e arruaças, e, na prática, responsabilizando o trabalhador por sua situação social. Como Adam Smith não pode questionar a estrutura econômica do capitalismo, cujo ponto de vista ele representa, deve procurar os remédios para os efeitos negativos do espírito comercial fora da esfera econômica, isto é, a partir de uma defesa moral de um antídoto educacional utópico.
2 206 Resenhas Robert Owen, por outro lado, também identifica o problema a busca do lucro, o poder do dinheiro, o trabalhador visto como mero instrumento de ganho, mas remete a solução para a força da razão e para o esclarecimento que a educação pode dar aos homens, o que pode evitar o erro e a ignorância. Como esses problemas são abrangentes e associados aos requisitos de dominação e de subordinação ao capital, a contradição entre o caráter global desses fenômenos sociais e a parcialidade e o gradualismo dos remédios propostos tem que ser substituída pela generalidade abarcante de algum deve ser utópico, isto é, pela razão, pela educação formal. Assim, um fenômeno social específico o impacto desumanizador do espírito comercial perde o seu caráter social e torna-se fruto da ignorância. Mas o raciocínio de Owen e as soluções propostas por ele não têm nada a ver, segundo Mézáros, com erro lógico do pensamento. São...descarrilamentos práticos e necessários, devidos não a uma deficiência na lógica formal do autor, mas sim à incorrigibilidade da lógica perversa do capital. (...) A circularidade no seu raciocínio é a conseqüência necessária da aceitação de um resultado : a razão triunfante (...) que prescreve o erro e a ignorância como o problema adequadamente retificado, para o qual se supõe estar a razão eminentemente adequada a resolver (p. 34, grifos do autor). Essa incorrigível lógica do capital teve nos últimos 150 anos um impacto importante sobre a educação, que, na busca para manter o desenvolvimento do sistema, apenas alterou as modalidades de imposição dos imperativos estruturais em acordo com as circunstâncias históricas. Nesse período, a educação escolar serviu (...) ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhuma alternativa à gestão da sociedade (p. 35, grifo do autor). As instituições escolares foram adaptadas no decorrer do tempo às determinações reprodutivas do sistema do capital e não podem funcionar adequadamente se não estiverem em sintonia com as determinações educacionais gerais da sociedade como um todo. Isto é, a escola é apenas uma parte do sistema global de internalização dos valores, que secundariza, sem abandonar, suas formas iniciais brutas e violentas, mas que, da mesma forma, procura assegurar que cada indivíduo assuma como suas as metas de reprodução do sistema. Em outras palavras, no sentido verdadeiramente amplo do termo educação, trata-se de uma questão de internalização pelos indivíduos (...) da legitimidade da posição que lhes foi atribuída na hierarquia social, juntamente com suas expectativas adequadas e as formas de conduta certas (p. 44, grifos do autor). Nesse sentido, a educação formal ou escolar não é a força ideologicamente primária que consolida o sistema do capital, nem ela é capaz de, por si só, fornecer uma alternativa emancipadora radical, pois uma das suas principais funções é produzir a conformidade ou o consenso, através dos seus próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados. Essa alternativa só pode ser encontrada no terreno das ações coletivas, o que pressupõe que as soluções educacionais não podem ser formais, mas essenciais, caso se queira confrontar e alterar o sistema de internalização, com todas as suas dimensões, visíveis e ocultas. Para Mészáros, somente tornando consciente que a aprendizagem é a nossa própria vida, como dizia Paracelso, é possível perseguir o objetivo de uma mudança radical nas próprias instituições educacionais. Somente essa concepção ampla de educação pode proporcionar os instrumentos de pressão que rompam com a lógica mistificadora e alienante do capital. Com Gramsci, Mészáros vai defender também que todo ser humano contribui, de uma forma ou de outra, para a formação de uma concepção de mundo predominante, que pode ser na linha da manutenção e/ou da mudança. Qual das duas vai predominar? Isso dependerá da forma como as forças sociais conflitantes se confrontam e defendem seus interesses alternativos. Trata-se de uma disputa social de concepções de mundo em que está envolvida uma multiplicidade de seres humanos no processo histórico real, que
3 Reviews 207 pode atrasar ou apressar mudanças sociais significativas. Por isso, um processo coletivo inevitável não pode ser expropriado definitivamente, nem o domínio da educação formal e estreita pode reinar para sempre em favor do capital. Para Mészáros, (...) por maior que seja, nenhuma manipulação vinda de cima pode transformar o imensamente complexo processo de modelagem da visão geral do mundo de nossos tempos (...) num dispositivo homogêneo e uniforme, que funcione como um promotor permanente da lógica do capital (p. 51, grifos do autor). Nessa linha de raciocínio, podemos considerar que a escola, apesar de agir como um cão-de-guarda ex-officio e autoritário para induzir um conformismo generalizado em determinados modos de internalização (p. 55, grifos do autor), não apenas atua na linha da manutenção, mas também na da mudança, pois no seu interior também há disputas de concepções de mundo. De fato, ao ler o ensaio do autor, há um grande risco de se considerar que a educação escolar se reduz ao seu caráter reprodutivista, ou que somente educa os homens a se conformarem à ordem estabelecida. Entretanto, além da argumentação acima, em outras passagens do texto ele indica que a educação formal não tem êxito na criação de uma conformidade universal, apesar de estar orientada para esse fim; que essas formidáveis prisões, conforme José Martí, não têm como predominar uniformemente; e que os educadores têm uma grande responsabilidade no desenvolvimento da cultura, na medida em que esta é inseparável do objetivo da emancipação dos homens. De todo modo, não são as instituições escolares que determinam a mudança no modo de internalização historicamente prevalecente isto é, no modo de sustentação da manutenção ativa da racionalidade do sistema ou da sua concepção de mundo, de forma que a própria racionalidade seja produzida pelas classes de indivíduos dominados em determinado momento histórico, como também seja constantemente reproduzida por eles. Para construir novos valores é necessário desenvolver uma atividade de contra-internalização, ou uma intervenção consciente no processo histórico, orientada no sentido de superar a alienação do trabalho por meio de um novo metabolismo reprodutivo social dos produtores livremente associados, que não se esgote na negação do capitalismo. Isto porque, na visão de Marx, todas as formas de negação permanecem condicionadas pelo objeto da sua negação. Além do mais, a própria inércia condicionadora do objeto negado tende a agregar poder com o passar do tempo, impondo, num primeiro momento, a busca de uma linha de menor resistência e, depois, o regresso às práticas anteriores, que sobrevivem nas dimensões não reestruturadas da ordem anterior. É aqui que a educação no seu sentido abrangente desempenha, segundo Mészáros, um papel fundamental para romper com a internalização predominante. Essa contra-internalização exige a antecipação de uma visão geral, concreta e abrangente, de uma forma radicalmente diferente de gerir as funções globais de decisão da sociedade, antes mesmo da conquista do poder. Isso envolve simultaneamente a mudança qualitativa das condições objetivas de reprodução da sociedade e a transformação progressiva da consciência. Ou seja, o papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução como para a automudança consciente dos indivíduos, chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente. Este é o sentido de uma educação para além do capital, pois, para Mészáros, não pode haver uma solução efetiva para a auto-alienação do trabalho sem que se promova, simultaneamente, a universalização do trabalho e da educação, o que pressupõe necessariamente a igualdade substancial de todos os seres humanos. Esta é a reflexão que o autor nos convida a fazer. A produção capitalista do espaço. David Harvey. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: Annablume, 2005, 251 pp. Maria Amelia Costa Fundação Oswaldo Cruz <ailema@fiocruz.br> David Harvey, geógrafo inglês, surgiu no cenário intelectual da disciplina geográfica na década de Sua primeira contribuição científica referente, em particular, a modelos e teorias dos sistemas e seus impactos em geografia foi publicada em Londres, 1969, sob o título Explicação em geo-
4 208 Resenhas grafia. Contudo, a experiência efetiva com a cátedra de geografia ocorreu a partir de sua inserção nos quadros da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, no Estados Unidos, de 1969 a Posteriormente, retornou à Inglaterra para ocupar a cátedra Mackinder, em Oxford, ministrando cursos esporádicos na Johns Hopkins. Todavia, foram os debates travados nos meios acadêmicos a partir dos anos 70 do século XX que possibilitaram uma reviravolta em sua produção científica. Sempre afeito a temas que extrapolassem as fronteiras disciplinares da geografia, manteve interlocução constante com diversos campos das ciências humanas e naturais, prática desenvolvida durante os anos em que esteve em Baltimore. Pode-se afirmar que as duas primeiras publicações Explicação em geografia e Justiça social e a cidade, esta de 1973 diferenciam-se das que produziria a partir de então. Com o objetivo de estabelecer uma teoria da relação sociedade-espaço, com base nos ensinamentos da teoria social de Marx, desenvolveu alguns estudos que resultaram em um número considerável de publicações. A constante preocupação em aprofundar a análise das características e das contradições do modo capitalista de produção e suas implicações nas relações de classe, em detrimento de um outro caminho o socialismo, fez com que Harvey se debruçasse sobre os textos marxistas clássicos, o que lhe possibilitaria novos insights. Suas inquietações se pautavam, principalmente, por duas razões: (...) em primeiro lugar, entender por que essa doutrina [marxista], tão denegrida e menosprezada nos círculos oficiais do mundo de fala inglesa, podia ter um apelo tão grande entre aqueles que lutavam ativamente pela emancipação em todas as outras partes; em segundo lugar, para verificar se uma leitura de Marx poderia ajudar a estabelecer uma teoria crítica da sociedade, para abarcar e interpretar os conflitos sociais que culminaram com o alto drama político desenrolado entre 1967 e 1973 (p. 12). Essas problemáticas iniciais foram vitais para instigar o autor a percorrer o campo teórico da cultura e do pensamento marxistas e constatar que eles ainda incitavam questionamentos em trabalhos de diversos autores, tanto na América (Paul Baran, Paul Sweezy) como na Europa (Maurice Dobb, E. P. Thompson, Raymond Williams). Através da recuperação e da análise das obras clássicas, remetendo-as a releituras que respeitassem as diferentes visões de mundo circunscritas à época de sua elaboração, foi possível desenvolver propostas. Contudo, essa revisitação atentou para o risco de estabelecer leituras anacrônicas e reacionárias, inclusive com o cuidado de evitar a construção de simulacros dogmáticos que, por vezes, apenas restabeleceram antigas fórmulas em novas paisagens. De certa forma, as mudanças na base tecnológica de produção a partir de meados do século passado e as transformações no plano políticosocial nas duas últimas décadas, sob interferência direta do capitalismo, influenciaram a produção acadêmica de contingente considerável de intelectuais, inclusive geógrafos como David Harvey, interessados nos debates contemporâneos. Para tanto, travar diálogos sobre essas questões foi imprescindível para explicitar a nova ordem mundial, suas conseqüências locais e globais, seus reflexos no cotidiano da vida urbana, o boom do capital financeiro, as mudanças paradigmáticas com a incorporação da acumulação de valor na economia globalizada enfim, temas da dita pós-modernidade. Na atualidade, é a partir dessa temática que se assentam as reflexões e os escritos de David Harvey. Fundamentalmente, com a preocupação de formular pressupostos metodológicos que relacionem concepções marxistas do Estado, das classes sociais, entre outras. Neste livro, A produção capitalista do espaço, essa contribuição se consolida atendendo a certa cronologia histórica do pensamento da geografia ao longo das três últimas décadas do século XX. A obra, composta por oito capítulos sete deles apresentando uma coletânea de textos publicados desde 1975 até 2001 em conceituadas revistas internacionais, inicia-se com uma entrevista e conta também com prefácio e apresentação que pormenorizam desde a trajetória acadêmica do autor, sua produção intelectual, até suas principais formulações e propostas teórico-metodológicas. No primeiro capítulo, A reinvenção da Geografia: uma entrevista com os editores da New Left Review, dialoga com seus editores, que estruturam perguntas que possibilitam ao leitor
5 Reviews 209 perceber sua trajetória. A partir dessa panorâmica, o capítulo avança com questões inicialmente de cunho cronológico, tecendo como numa carta geográfica as coordenadas de sua vida profissional, acadêmica e de sua produção científico-literária. A seguir, uma seqüência de perguntas com um perfil mais teórico e conceitual permite ao leitor vislumbrar a que orientação político-filosófica Harvey se filia, iluminando as modificações presentes em suas obras através do tempo e no espaço. Além disso, possibilita ao autor apresentar parceiros e interlocutores do campo da geografia, da antropologia e da economia. No segundo capítulo, A geografia da acumulação capitalista: uma reconstrução da teoria marxista, texto publicado pela primeira vez na revista Antipode, edição de 1975, iniciam-se as reflexões conceituais onde o autor estabelece algumas categorias de análise para tal estudo. Nessa edição, introduzem-se questões acerca da teoria marxista da acumulação capitalista apresentando uma problemática muito cara ao pensamento da geografia contemporânea: a relação entre essa acumulação e a idéia de supressão do espaço em favor da expansão do tempo. Harvey identifica no modo capitalista de produção algumas barreiras por ele mesmo produzidas que promovem as crises que, por outro lado, são necessárias para o seu próprio desenvolvimento, apresentando permanentemente aspectos de destruição e preservação. Essas contradições inerentes ao capitalismo promovem a dinâmica da circulação, cuja principal questão é o tempo de redução da circulação do capital por isso os investimentos nas comunicações e nos transportes, centrada preferencialmente no comércio exterior, viabilizando a evolução da formação social capitalista para outras fronteiras. O terceiro capítulo, com texto publicado pela primeira vez também na Antipode em 1976, recebeu o título A teoria marxista do Estado. Nele o autor desenvolve uma extensa análise sobre o Estado na teoria marxista. Fundamentalmente, propõe uma crítica ao modelo de Estado como produto da construção da democracia social burguesa. Destaca, ainda, que o Estado enquanto entidade não se estrutura meramente como coisa e sim como lugar de reunião de diversas instituições. Já no quarto capítulo, O ajuste espacial: Hegel, Von Thünen e Marx, presente na edição de 1981 da Antipode, o autor apresenta três teorias explicativas e sugere um aprofundamento acerca das crises e contradições inerentes ao capitalismo discutidas no segundo capítulo. Contudo, neste caso em especial, ele sinaliza o ajuste espacial como categoria de investigação vital para se analisar essas características do modo capitalista de produção, a partir de propostas clássicas desenvolvidas por Hegel (Filosofia do Direito), Von Thünen (Estado isolado) e Marx (O capital). No quinto capítulo, A geopolítica do capitalismo, publicado pela primeira vez na revista Social relations and spatial structures, edição de 1981, Harvey chama a atenção para a permanente necessidade das forças capitalistas de implementar a circulação da produção, fomentando a teoria do ajuste espacial como estratégia para manter a condição desigual entre as economias avançadas e aquelas que são consideradas não avançadas ou mesmo as nãocapitalistas. Para isso, inclui em seu trabalho as proposições defendidas por Schumpeter a respeito da destruição criativa promovida pelas fases de crise do capitalismo, que possibilitam o surgimento de inovações tecnológicas como forma de superação permanente. O sexto capítulo, uma edição de 1989, com texto originalmente publicado na revista Geografiska Annaler, recebeu o título Do administrativismo ao empreendedorismo: a transformação da governança urbana do capitalismo tardio. Neste trabalho, o autor discute o papel dos governos que têm assumido para si um perfil muito mais empreendedor do que administrador; chama a atenção que a opção por um Estado empreendedor já se verifica em economias capitalistas avançadas desde as décadas de 1970 e 1980, em oposição ao papel administrativo que perdurou até a década de Observa que essas ações são postas em prática principalmente através de conselhos locais, inaugurando o vínculo entre os setores público e privado, e aborda os efeitos dessa relação no empreendedorismo urbano e a autonomia relativa. No sétimo capítulo, A geografia do poder de classe, publicado pela primeira vez em Socialist Register, edição de 1998, Harvey recupera o Manifesto comunista de 1948 e debate acerca das contribuições de Marx e Engels. Tem como principal questão ampliar as possibilidades de se perceber como as relações burguesas se ocuparam do espaço local e globalmente e como as resistências se diferenciam muito pou-
6 210 Resenhas co quanto à exploração das forças de trabalho. Discute, também, a proximidade entre as evidências contidas no Manifesto e aquelas encontras em sociedades globalizadas a partir da dinâmica do ajuste espacial. E, finalmente, o oitavo capítulo, A arte da renda: a globalização e transformação da cultura em commodities, preparado para a Conference on Global and Local, realizada na Tate Modern, em Londres, 2001, fala da possibilidade de se transformar em renda qualquer forma de serviço ou mercadoria que seja singular, devido a sua condição de exclusividade, escassez ou raridade. Além disso, desenvolve intensa reflexão sobre a relação entre governança urbana e empreendimentos que objetivem a obtenção de rendas monopolistas, fazendo com que as estruturas administrativas locais patrocinem investimentos que viabilizem vantagens monopolistas ao capital financeiro, gerando sinergias satisfatórias para o processo de urbanização. Sem dúvida alguma este livro reflete o nível e a maturidade em que se encontra a disciplina geografia, outrora esquecida e marginalizada das discussões acerca das transformações ocorridas na sociedade contemporânea. E, principalmente, possibilita ao leitor reconhecer as contribuições do geógrafo David Harvey nessa (r)evolução, presentes nos diferentes momentos de sua produção acadêmico-científica ao longo dos últimos anos. O público e o privado na história da educação brasileira: concepções e práticas educativas. José Claudinei Lombardi, Mara Regina Jacomeli e Tânia Mara da Silva (orgs.). Campinas: Autores Associados, 2005, 186 pp. (Coleção Memória da Educação). Sauloéber Társio de Souza Universidade Federal do Tocantins <sauloeber@uft.edu.br> A Coleção Memória da Educação aborda, neste volume, um tema que tem causado celeuma entre os pesquisadores da história educacional brasileira: o caráter privado ou público da educação escolar. Os artigos aqui reunidos resultam das apresentações de conferencistas na III Jornada do Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil (HistedBR), da Faculdade de Educação da Unicamp, cuja temática foi O público e o privado na história da educação brasileira: concepções e práticas educativas, realizada entre os dias 22 e 25 de abril de 2003 na cidade de Americana, SP, no Centro Universitário Salesiano de São Paulo. É importante ressaltar que tal temática foi ganhando relevância junto ao HistedBR desde a realização do IV Seminário Nacional do grupo, no ano de Nesse evento, após um balanço geral dos trabalhos apresentados, constatou-se que os temas predominantes giravam em torno da escola pública e que, entre seus diversos aspectos passíveis de investigação, priorizava-se as relações entre modernidade e educação e entre oralidade e escrita. Assim, após a III Jornada ficou decidido que, dada a importância da temática, os esforços deveriam ser voltados para a socialização dos debates e reflexões gerados no evento, buscando-se divulgá-los para o grande público, em especial àqueles dedicados direta ou indiretamente às pesquisas em educação. Dessa forma, este livro tem como conteúdo os textos apresentados na conferência de abertura e nas três mesas-redondas, organizados na obra na ordem em que foram apresentados. Os autores aqui reunidos têm se dedicado há décadas às pesquisas em educação, de forma que em algum momento de seus percursos acadêmicos se depararam com as questões relativas ao tema central da coletânea. Esse é o ponto alto da obra; a riqueza das visões aqui apresentadas permite assinalar que se trata de um balanço, uma referência para a discussão do estado da arte sobre o caráter público e/ou privado da educação nacional. Talvez seja desnecessário ressaltar que, em alguns momentos, as colocações apresentadas pelos autores parecem se distanciar do eixo norteador, já que este parece ser ponto comum aos trabalhos que reúnem certa diversidade de visões sobre um determinado tema. Fato este observado pelos próprios organizadores ao afirmarem que os autores tenham se sentido livres para expor suas idéias de um ponto de partida que lhes fosse próximo (p. xii, grifo nosso). Carlos Roberto Jamil Cury proferiu a conferência de abertura, cujo título coincidira com o tema central do evento. Abordou as relações entre o público e o privado a partir da inter-
7 Reviews 211 venção da igreja, da família, do Estado e da iniciativa privada na conformação da educação escolar brasileira. Buscou na legislação as formas de manifestação dessas instituições, apontando como a liberdade de ensino tem sido discutida pelas diversas vertentes de educadores no país, lançando ao embate privatistas e defensores da escola pública. Na primeira mesa-redonda, debateu-se O público e o privado como categoria de análise em educação. Antônio Joaquim Severiano, Éster Buffa e José Claudinei Lombardi abordaram a temática por caminhos diversos. O primeiro faz crítica ao entendimento de que o termo estatal seja equivalente ao conceito de público, visão burocrática e empobrecedora que conceitua, rigidamente, público como estatal e privado como não-estatal. Buffa apresentou trabalho historiográfico analisando textos publicados sobre a temática que envolve a relação público e privado, buscando apreender aspectos significativos sobre a educação e a sociedade brasileiras, realizando um interessante balanço, muito embora faça ressalvas aos riscos que assumiu ao se propor trabalho extenso passível de esquecimentos e desconhecimentos de textos importantes sobre o assunto. Lombardi, por sua vez, preocupou-se em discutir O que são categorias? Carimbado no meio acadêmico como marxista, não entende o público e o privado como categorias de análise científica, classificando-os como termos burgueses que mascaram (...) o exercício do poder de Estado por uma classe, em seu próprio benefício, jogando uma cortina de fumaça sobre as relações sociais, como se o Estado moderno fosse um bem comum e o exercício administrativo fosse para o bem de todos (p. 79). A segunda mesa-redonda teve como proposta o tema: O público e o privado: teorias e configurações nas práticas educativas. Gilberto Luiz Alves, José Carlos Souza Araújo, Olinda Maria Noronha e Paulo de Tarso Gomes apresentaram seus trabalhos nesta ordem. O primeiro autor faz análise das inovações nas práticas educativas das escolas estatais e particulares, sua orientação teórica nega o caráter público da educação brasileira. Assim, numa sociedade de classes, o Estado, que administra e controla a educação vista por muitos como pública, é, ele próprio, um instrumento de realização dos interesses privados da classe que detém o poder. (...) no plano institucional da educação, caberia, mais apropriadamente, falar em escola estatal e em escola particular (p. 107). Por sua vez Araújo adota visão mais ampla, ao acreditar que as discussões em torno da dicotomia público e privado se afiguram como um campo de disputas que demonstra não só a existência de antagonismos, mas também a existência de intercâmbio e convívio. Entende que e, quando se classificam essas categorias como estanques, promove-se um tipo de história educacional imóvel; as categorias só podem ser apreendidas por sua própria historicidade: Categoricamente, estabelecer barreiras entre o público e o privado pode conduzir a compreensão do movimento da história educacional a uma imobilização (p. 142). Noronha aborda a relação público e privado a partir da transformação atual do papel do Estado. O sistema capitalista mundial teria como um de seus princípios o monopólio do conhecimento, garantindo-se a exploração das classes subalternas, dependentes das diretrizes controladas pela classe dominante. Dessa forma, perpetua-se o movimento de apropriação do conhecimento a partir da posição que os indivíduos ocupam na organização da produção. Encerrando a exposição desta mesa, Gomes discute o conceito de público e privado a partir de sua raiz filosófica e, em especial, da filosofia do direito. O autor também busca transcender a concepção dicotômica entre público-gratuito e privado-pago. Acredita que a educação republicana herdou da educação colonial a preocupação não apenas com a formação da consciência cidadã, mas, sobretudo, com a consciência moral, o que levou a uma ampliação do poder do Estado, que se apresentou muito mais paternalista do que liberal, na medida em que se concebeu que, no âmbito do público, forme-se o cidadão e a pessoa moral. A última mesa da III Jornada do HistedBR teve como tema A problemática do público e do privado na história da educação no Brasil,
8 212 Resenhas reunindo os expositores Dermeval Saviani, José Luís Sanfelice e Maria Elizabete Sampaio Prado Xavier, mas somente os dois primeiros apresentaram seus trabalhos neste livro. Saviani dividiu seu texto em dois momentos distintos, denominados de teórico-histórico e teóricoprático. Segundo o autor, só existe sentido no debate educacional sobre público e privado a partir de um tempo histórico determinado, no caso do Brasil, desde 1890, quando se configura a educação pública de forma nítida. Aponta equívocos em torno do movimento de defesa da escola pública, em especial aquele que coloca o público e o privado como blocos antagônicos. Acredita que a raiz do problema está na tutela do Estado sobre a educação, tendência que deve ser revertida, o Estado devendo assumir plenamente os encargos do bom funcionamento da rede de escolas públicas. Concluindo, Sanfelice procura também esclarecer que a idéia de escola estatal e a idéia de escola pública não podem ser equivalentes, quando entendemos público como aquilo que pertence ao povo. Se a educação é estatal (e não pública), portanto, está comprometida com os interesses do Estado, que é esfera controlada pelas classes dominantes. Assim, o Estado deve desaparecer, para que o público assuma suas funções. (...) Sem Estado não deverá haver educação estatal e muito menos privada, mas somente pública (p. 184). A proposta da educação pública seria então uma utopia, no sentido literal do termo ( o que não está em nenhum lugar )? Como classificar os movimentos de defesa da escola pública (ou estatal, como concebem alguns dos autores) a partir das determinações histórico-sociais? São questões instigantes e provocativas aqui presentes que merecem estudos específicos que vão além das preocupações desta coletânea.
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