Cap 25 MONTAIGNE (1533-1592) Ramiro Marques Michel de Montaigne foi um erudito e humanista francês, grande conhecedor da cultura greco-romana e um político experiente que nos deixou uma obra que marca o novo espírito do humanismo renascentista. Para além de escritor e conselheiro, foi político, tendo sido presidente da Câmara de Bordéus, conselheiro no Parlamento de Bordéus e diplomata ao serviço da Corte. A sua obra mais famosa e influente foi "Os Ensaios", começados a publicar em 1580 e terminados em 1588, quatro anos antes da sua morte. São, como se pode verificar pelas datas, uma obra de maturidade, exemplificando, com elevada mestria, a liberdade de pensamento e o cepticismo irónico, numa época que começava a evidenciar sinais de intolerância tanto do lado da Reforma Católica como do lado do Reformismo Protestante. O cepticismo filosófico e pedagógico de Montaigne não é uma forma de relativismo, porque Montaigne dá mostras de acreditar no progresso humano; é antes uma forma de evidenciar o seu apreço pelo pluralismo cultural e o reconhecimento da finitude do Homem. Há dois ensaios particularmente sugestivos onde Montaigne evidencia um ateoria da educação: "Do Professorado" e "Da Educação das Crianças". São esses dois ensaios, traduzidos por Agostinho da Silva, que servirão de base à nossa apresentação do pensamento pedagógico do ilustre ensaísta francês (1). No ensaio "Do Professorado", Montaigne começa por reconhecer que o excesso de erudição e de matérias que caracteriza a escola do seu tempo pode, se bem orientado, criar pessoas sabedoras: "seria fácil dizer que, assim como as plantas se atrofiam com a muita humidade e as candeias amorrinham com o muito azeite, o mesmo acontece com a acção do espírito pelo excesso de estudos e matérias: piado e embaraçado por uma grande diversidade de coisas, perde o meio de se desenvencilhar; o peso tem-no curvado e estagnado. Mas, não é nada disso, porque a nossa alma alarga-se à medida que se enche; pelos exemplos da antiguidade vê-se, muito ao contrário, que homens hábeis no governo das coisas públicas, grandes capitães e grandes conselheiros nos negócios de Estado foram ao mesmo tempo muito sabedores" (2). Da boa orientação do estudo pode resultar a criação de mentes inteligentes e sabedoras e não meramente eruditas: "pelo modo como somos ensinados, não é maravilha que nem os alunos nem os mestres se tornem mais hábeis, embora se façam mais doutos" (3). E mais à frente: "trabalhamos apenas para encher a memória e deixamos vazios o entendimento e a consciência. Assim como as aves vão algumas vezes em busca de grãos e os trazem no bico sem os comer, para alimentar os filhos, assim os nossos mestres vão pilhando a ciência nos livros e trazemna na ponta da língua só para a vomitarem e a lançarem aos quatro ventos" (4).
A crítica à erudição que se limita a ser um acumular das sentenças e de citações dos autores antigos, sem acrescentar nada ao original, é uma constante na obra de Montaigne: "sabemos dizer: Cícero diz assim; eis o que fazia Platão; são as próprias palavras de Aristóteles. Mas nós, que dizemos nós próprios? que pensamos nós, que fazemos nós? Um papagaio diria o mesmo. Isto faz-me lembrar daquele rico romano que tivera o cuidado de, à força de dinheiro, recrutar homens capazes em toda a espécie de ciências e os tinha sempre à sua volta para, quando se oferecesse ocasião de falar de qualquer coisa com o seus amigos, o substituírem e estarem prontos a fornecer-lhes um, pensamentos, outro, versos de Homero, cada qual segundo a sua especialidade; e julgava que o saber era seu porque estava na cabeça dos seus homens; assim fazem aqueles cujas capacidades moram nas suas esplêndidas livrarias" (5). A crítica a um ensino memorizante e repetitivo é outra constante: "guardamos as opiniões e o saber dos outros e pronto. É preciso torná-los nossos. Somos exactamente como aquele que, precisando de lume, o fosse pedir ao vizinho e, dando lá com ele esplêndido e forte, se ficasse a aquecer sem mais se lembrar de levar um pouco para casa. De que nos serve ter a barriga cheia de comida se não a digerimos? se não a assimilamos? se não nos aumenta e fortifica?" (6). E mais à frente, adianta: "quem olhar de perto este género de gente, que não é raro, achará, como eu, na maior parte das vezes, não se entendem a si nem aos outros e que têm a memória bastante cheia, mas a inteligência inteiramente vazia, a menos que a natureza lha não tenha formado doutro modo" (7). Embora a memória seja importante, a memorização dos factos e das sentenças é um meio para o verdadeiro fim da educação: promover a inteligência dos alunos, pois é inútil o saber sem o entendimento. Montaigne critica, igualmente, o carácter profissionalizante de muito do ensino quase fazia no seu tempo. A educação, para o ensaísta francês, visava, acima de tudo, promover a inteligência, a cultura geral e o autoconhecimento: "não viso aqui senão a descobrir-me a mim próprio; outro serei porventura amanhã, se novo estudo me mudar" (8). A educação deve basear-se na observação da criança, das suas tendências, das particularidades do seu carácter e no respeito pelas suas vocações. Mais importante do que uma cabeça muito cheia, é uma cabeça bem formada. O aluno deve ser respeitado e o professor deve ser, não apenas culto, mas também respeitador das capacidades naturais dos alunos: "é bom que (o professor) o faça trotar á sua frente para lhe apreciar o andamento e ver até que ponto se deve baixar para se adaptar às suas forças. Por falta desta adaptação, estragamos tudo" (9). Montaigne foi um partidário da individualização do ensino e da utilização do método socrático que consiste, não em ensinar directamente, mas em ajudar o aluno a descobrir: "é preciso que lhe faça passar tudo pela fieira e nada lhe meta na cabeça por simples autoridade e crédito; que os princípios de Aristóteles não passem a
ser os seus princípios exactamente como o dos estóicos ou dos epicuristas. Mostre-se-lhe a diversidade de opiniões; se puder escolher que escolha, senão ficará a dúvida. Só os loucos são firmes e resolutos" (10). Educar é desenvolver a inteligência e a erudição não deve constituir um fim da educação porque o importante é que o aluno saiba ter ideias próprias e seja capaz de exercer o espírito crítico: "saber de cor não é saber; é conservar o que se deu a guardar à memória. Daquilo que se sabe inteligentemente dispõe-se sem olhar ao modelo, sem voltar os olhos para o livro. Aborrecida competência a competência puramente livresca!" (11). Para além da educação intelectual, Montaigne era partidário da educação física e da educação do carácter, antecipando o conceito de educação integral tão caro a Coménio e a outros humanistas do século XVII. A crítica a um ensino puramente baseado no seguimento das autoridades académicas é, também, uma constante: "consciência e virtude devem-lhe sair e brilhar nas palavras e só deve ter por guia a razão. Façam-lhe compreender que confessar o erro que descobriu nos próprios raciocínios, ainda que só dele tivesse sido apercebido, é indício de discernimento e sinceridade, qualidades que são principais; que teimar e contestar são qualidades vulgares que mais aparecem nas almas baixas; que reflectir e corrigir-se, abandonar uma opinião errada no ardor da discussão são qualidades raras, fortes e filosóficas" (12). Quanto às metodologias de ensino, há em Montaigne uma clara preferência pelos métodos activos: "o ensino há-de fazer-se ora por conversa ora por leituras; ora o preceptor lhe apresentará o próprio autor, acomodado a tal fim da sua educação, ora lhe fornecerá somente o miolo, a substância já preparada" (13). Os castigos corporais foram intensamente censurados por Montaigne: "entre outras coisas sempre me desagradou este costume (os castigos) da maior parte dos colégios. Porventura, menos se enganariam, se pendessem para a indulgência. São uma verdadeira prisão, um cativeiro da juventude. Tornam-na desavergonhada castigando-a como tal antes de o ser. Vão lá à hora do trabalho: não se houve senão gritos, quer das crianças supliciadas, quer dos mestres furiosos. Que maneira esta de despertar o desejo de aprender em almas tenras e tímidas, guiando-as como uma carranca terrível, com mãos armadas de chicote! Que forma iníqua e perniciosa!...como ficariam melhor as aulas se estivessem juncadas de flores e de folhas e não de bocados de verga cheios de sangue. Faria lá pôr representações da alegria, do júbilo, de flora e das graças, como fez na sua escola o filósofo Espeusipo. Deviam encontrar a um tempo proveito e diversão. Tem de se pôr acúcar nos alimentos salutares para a criança e fel nos que lhe são nocivos" (14). Quanto à educação do carácter, Montaigne não cessa de acentuar a sua importância: "é por isto que se deve domar o corpo ainda tenro a toda a espécie de usos e costumes. E, desde que se
possam conter o apetite e a vontade, que se torne sem medo um rapaz acomodável a toda a espécie de nações e companhias, até no desregramento e no excesso se for preciso. Que o seu comportamento siga o costume. Que possa fazer todas as coisas e só goste de fazer as boas...quero que até na devassidão, suplante em vigor e firmeza os seus companheiros e que deixe de fazer o mal, não por falta de forças ou de ciência, mas por falta de vontade" (15). Crítica de uma educação verbalista e livresca, o ensaísta defende uma educação baseada nas obras, mais do que em palavras. Acções repetidas até se transformarem em hábitos de forma a incorporar na sua vida diária o gosto pelo belo, pelo bem e pela verdade. Montaigne foi, também, um precursor na defesa do ensino das línguas estrangeiras, numa época em que o latim e o grego tinham a primazia nos planos de estudos. Em vários dos seus ensaios e, em particular, nos ensaios "Sobre o Pedantismo" e "Sobre a Instrução das Crianças", Montaigne "insiste na inutilidade dos castigos brutais utilizados então. O ensino deve centrar-se no cultivo do juízo e do carácter moral, para os quais a melhor escola é a própria vida. Portanto, deve promover-se um bom programa de actividades físicas sadias: corrida, luta livre, música, dança, caça e manejo das armas e de cavalos, junto com a formação das boas maneiras e comportamento. Obviamente, o processo educativo deve incluir elementos literários, que serão buscados na tradição clássica e moderna, sem colocar ênfase demais nos autores gregos e latinos. Para os fins de vida comum, o francês é suficiente como instrumento de ensino. Depois de aprender bem o francês, a criança deve aprender as línguas dos seus vizinhos" (16). Notas 1) Montaigne (1993). Três Ensaios. Tradução de Agostinho da Silva. Lisboa: Veja 2) Idem, p. 8 3) Ibid., p. 12 4) Ibid., 13 5) Ibid., p. 15 6) Ibid., p. 15 7) Ibid., p. 19 8) Ibid., p. 37 9) Ibid., p. 42 10) Ibid., p. 44 11) Ibid., p, 46 12) Ibid., p. 53 13) Ibid., p. 62 14) Ibid., p. 74 e 75
15) Ibid., p. 76 16) Giles, Th. (1987). História da Educação. São Paulo: EPU, p.140