Algumas considerações sobre a pintura de Anita Malfatti do início do séc. XX



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Transcrição:

Algumas considerações sobre a pintura de Anita Malfatti do início do séc. XX Renata Gomes Cardoso Mestranda em História da Arte - IFCH - UNICAMP (...) E se um artista é verdadeiramente artista, quero dizer, está consciente do seu destino e da missão que se deu para cumprir no mundo, ele chegará fatalmente àquela verdade de que, em arte, o que existe de principal é a obra de arte. Mário de Andrade, O artista e o artesão As manifestações artísticas ocorridas a partir da segunda década do século vinte ainda são o ponto de convergência de muitos estudos, principalmente no que se refere à revisão crítica das obras e à revisão da crítica de arte desses períodos, que por sua vez quase sempre foi determinante no estabelecimento de critérios de interpretação ou mesmo da elaboração de conceitos e teorias que influenciariam toda a crítica posterior. Os estudos mais recentes, como vemos com algumas pesquisas que reavaliam o século dezenove, nos ajudam a compreender as verdadeiras dimensões dessas manifestações do início do século vinte, da atividade dos artistas e seu meio e, conseqüentemente das obras produzidas, assim como nos ajudam na reavaliação de outros períodos, com a revisão desses critérios, conceitos e teorias. É pensando nas novas abordagens históricas e críticas de períodos já fartamente estudados que propomos aqui uma reflexão sobre a pintura de Anita Malfatti, olhando neste artigo para algumas obras em torno e posteriores à Semana de Arte Moderna de 1922 e repensando as principais questões que envolveram a artista e sua pintura nesses períodos. Isso porque, grande parte da historiografia sobre as questões da arte moderna no Brasil coloca sempre em destaque, como ponto fundamental aglutinador das idéias modernistas, a pintura dos anos em que a artista morou nos Estados Unidos, entre 1915/ 16, durante sua passagem por esse país, em meio a um frutífero período de estudos numa escola que pregava a liberdade na pintura, sob a influência de diversas tendências da vanguarda européia, que aportavam nesse país com o deslocamento dos artistas em face à emergente Primeira Guerra Mundial. Ou seja, as obras mais presentes nos estudos sobre o modernismo são ainda do início da carreira de Anita Malfatti, reveladas ao público na exposição realizada na passagem do ano de 1917 a 1918. Esse destaque, entretanto, aparece sempre desprovido de um discurso sobre a atuação posterior da artista no seu meio 1. Nesse sentido é comum encontrarmos referências sobre telas como O Homem 1 É possível identificar, nesse contexto, uma única obra de maior fôlego sobre a artista e sua obra, a biografia escrita por Marta Rossetti Batista, lançada em 1985. (BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Pulo, IBM Brasil, 1985)

Amarelo (1915/16), O Japonês (1915/16) ou A estudante russa (1915), entre outras, mas sempre acompanhadas por uma certa censura sobre outras telas, entre elas algumas feitas no Brasil depois da volta dos Estados Unidos e, principalmente, sobre aquelas que a artista produz na França, em sua viagem pelo Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, a partir de 1923. Essa censura, historicamente continuada, porque parte dos pressupostos modernistas mais radicais, do período do intenso debate sobre os ideais de uma nova arte brasileira, normalmente acompanha o discurso sobre a mudança de direção da pintura da artista em relação a esses pressupostos, Discurso esse sempre colocado de uma maneira determinante, considerando que essas obras, por fugirem aos padrões das pinturas feitas nos Estados Unidos, perderam o seu propósito e a sua qualidade expressiva, e reafirma na verdade um certo desconhecimento geral do próprio conteúdo dessa pintura, porque não se aprofunda devidamente na análise desses diferentes padrões presentes nessas obras, ou ainda, não procura analisá-los por uma perspectiva distinta daquela que sempre vemos transparecer nos anseios modernistas 2. Esse determinismo, ao longo da historiografia da arte nacional, impediu que essas telas fossem analisadas cada uma separadamente em sua proposta ou mesmo inseridas nos contextos tanto da pintura da artista, quanto do modernismo, deixando questões ainda em aberto, por exemplo, como esses diversos momentos de aprendizagem se juntam e se configuram em sua pintura, comparando as obras iniciais com as obras produzidas nos anos seguintes da carreira da artista, entre outras questões. Para entender essa situação sobre as escolhas posteriores da artista e da rejeição que nasce dentro do próprio grupo modernista, é importante rever em parte a recepção das primeiras obras.e algumas passagens do período de Paris. Apesar de terem sido importantes para os primeiros modernistas, as obras criadas nos Estados Unidos foram antes disso severamente criticadas pela família de Anita Malfatti logo após o retorno dos EUA 3, em 1916: quando viram as telas todas acharam-nas feias, dantescas, e todos ficaram tristes, não eram os santinhos dos colégios! 4, e é a princípio devido a esse primeiro fator, a advertência da família, que a artista guarda as telas, para apresentá-las posteriormente na tão famosa exposição de 1917/18. As repercussões sobre essa exposição na imprensa foram também decisivas para a posição da artista no meio, por causa do almejado reconhecimento do seu trabalho artístico e para a sua posterior reflexão sobre sua obra inicial, principalmente se considerarmos, nas análises, as circunstâncias e o lugar em que foram criadas, em comparação à diferente e distante realidade paulistana. As críticas mais severas, nesse sentido lembrando o artigo de Monteiro Lobato que mesmo sendo uma crítica geral direcionada às tendências da vanguarda prejudicaram de fato a artista, muito por causa da repercussão negativa sobre sua pintura na São Paulo da época. Na volta ao Brasil a artista transformará sua paleta (pelo menos momentaneamente) passando a dialogar, nas novas pinturas, com o meio artístico ao qual retorna, não recusando ao todo as lições formais tanto da Alemanha quanto dos Estados Unidos, mas se voltando para as temáticas mais próximas das discussões sobre a arte nacional, já inauguradas na imprensa local 5. E é também nessa direção que a artista fará aulas com Pedro Alexandrino e Georg Elpons, este último presente também nas vidas de outros artistas que vão se destacar no modernismo, como Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti. Um primeiro exemplo da tentativa de Anita para se inserir no meio artístico brasileiro do momento é a tela Tropical, feita em 1917, já no Brasil (que inclusive participou da exposição na passagem de 1917/18), hoje no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, ou a tela Retrato de Lalive, obra que participou do Salão Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, de 1917, dentre outras telas. As duas telas continuam entre as temáticas preferidas pela pintora (o retrato, o nu e a paisagem), mas têm 2 A grande maioria dos textos sobre o modernismo nas artes plásticas dedica, sem dúvida, um lugar exclusivo para Anita Malfatti, como o ponto de partida para as primeiras manifestações dos modernistas. Mário de Andrade, principalmente, declara em várias passagens, com todas as letras ter sido a exposição da pintora a despertar nele o espírito moderno, a partir da exposição da passagem de 1917/18. Apesar disso, os textos não citam, de uma maneira explicativa, a continuidade da obra da artista. 3 Os detalhes sobre a vida da artista se encontram no livro de Marta Rossetti Batista, já citado. 4 MALFATTI, Anita. 1917. In: Rasm (Revista anual do Salão de Maio), n. 1, 1939, São Paulo. 5 Sobre o debate artístico nas colunas de jornais do período ver, entre outros: CHIARELLI, Tadeu. Um jeca nos vernissages (Monteiro Lobato e o desejo de uma arte nacional no Brasil). São Paulo: USP, 1995. 2 Renata Gomes Cardoso

tratamentos diversos. Tropical, ao contrário dos retratos feitos nos EUA, que normalmente eram desprovidos de elementos ao fundo, a não ser as cores imprimidas por um rápido pincel, além de fazer referência a uma paisagem tipicamente brasileira pelas folhas de bananeiras ao fundo, tem como modelo a figura da mulata, com a bandeja de frutas tropicais. Apesar das tonalidades mais escuras e de uma certa sobriedade no trato da pincelada, a artista deixa transparecer em síntese as lições expressionistas da Alemanha e a liberdade da pintura da escola de Homer Boss, no tratamento da pele do modelo, nas linhas fortes do contorno do rosto, no verde nas sombras dos braços, das frutas e da blusa branca. É possível verificar com essa escolha a tentativa da artista de dialogar em duas frentes, a do debate crítico pró-nacionalismo naturalista, presente nos artigos de jornais da época, que se opunha à pintura por eles considerada como acadêmica 6, principalmente na escolha dos elementos da composição, e da renovação formal na pintura com o elemento nacional, quando percebemos que essa síntese não cede, nem ao longe, às preceptivas mais tradicionais da pintura. Mas esse esforço nem sempre foi bem sucedido aos olhos dos modernistas. É justamente pela importância dada às obras da exposição de 1917/18, principalmente por Mário de Andrade apesar do primeiro artigo favorável sobre a exposição partir de Oswald de Andrade 7 na construção dos ideais de modernidade no país, e para a posterior construção da história do modernismo brasileiro, que essa mudança de direção inicial receberá as primeiras advertências, por não dar continuidade ao padrão das obras daquela exposição, como observamos nas palavras de Mário de Andrade: Abandonando sua primeira maneira, na qual realizou uma exposição inesquecível, e os ensinamentos expressionistas que recebera na Alemanha, procurou fazer arte mais de toda gente. Erro gravíssimo. A fraqueza de sua segunda exposição [na verdade a terceira, realizada em 1921, a primeira foi realizada em 1914, após o retorno dos estudos na Alemanha] provou-o claramente. Havia, é certo, quatro ou cinco obras muito boas, mas, tinha-se a impressão de um artista que tivesse perdido a sua própria alma. 8 Na contramão da recepção negativa dessas obras feitas nos Estados Unidos temos então a admiração inquestionável de escritores como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Sergio Milliet dentre outras poucas personalidades, cuja formação em grupo culminará na Semana de Arte Moderna, contando com a participação de Anita Malfatti, que para Sérgio Milliet, o seu desenho concentrado e seu colorido sóbrio fazem-na o melhor pintor da exposição. 9 Obras como o Toureiro (1921) e Mário de Andrade I (1921/22), marcam um retorno às preceptivas formais das obras de 1915/16, mas com inserção de um novo elemento, uma atenção maior dada à expressividade no rosto dos retratados, mais forte, mais incisiva, mais presente. Alguns anos após a Semana Anita Malfatti parte para Paris, com o auxílio do Pensionato Artístico. A partir desse momento, percebemos pelas cartas sempre trocadas entre os artistas que estão na Europa e Mário de Andrade, principalmente, a distância que cresce entre os interesses de Anita Malfatti e dos outros artistas. Sérgio Milliet, que considerou Anita a melhor artista na Semana, é um dos primeiros a se pronunciar nesse sentido, revelando seu descontentamento com os caminhos buscados nesse momento pela artista: (...) a Anita que chegou um pouco desapontada e desiludida (...) trouxe uns quadros assim do Brasil. É bom que ela progrida por aqui antes de expor (...) e A Anita está trabalhando infelizmente com o Maurício Denis. 10 6 Mais uma vez remeto ao livro de Tadeu Chiarelli, já citado. 7 Andrade. Oswald de. A exposição Anita Malfatti. In. BATISTA, Marta Rossetti (et al.). Brasil: 1º tempo modernista 1917/25: documentação. São Paulo: IEB, USP, 1972. 8 ANDRADE, Mario de. Apud, ALMEIDA, Paulo Mendes de. De Anita ao Museu. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976, p. 18. (Os grifos são nossos) 9 MILLIET, Sérgio. Uma semana de arte moderna em São Paulo. In: Rev. Inst. Est. Bras., SP, n. 34, p. 199-210, 1992. 10 Sérgio Milliet em cartas, set/out de 1923, a Yan de Almeida Prado. ANDRADE, Mário de. Mário de Andrade, cartas a Anita Malfatti. (Org. Marta Rossetti Batista). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 160. 3 Renata Gomes Cardoso

Essa escolha de Anita aos poucos terá a desaprovação unânime da maioria dos outros artistas brasileiros que passam pela França. Por volta de 1926 vários desses artistas estão de volta a São Paulo, na mesma época em que Mário de Andrade está trabalhando em um artigo sobre a artista, a partir de informações que Anita envia de Paris sobre suas obras. Os amigos o colocam a par das últimas novidades, e ele demonstra sua preocupação sobre as escolhas de Anita em carta a Prudente de Morais Neto, em julho desse mesmo ano: (...) Tenho trabalhado porém nada de útil por enquanto(...)um artigo de anúncio sobre a coitada da Anita que está penando na Europa e toda a gente fala que completamente estragada. Pelas reproduções que vi em revistas francesas e fiz reproduzir não me parece que esteja completamente estragada não porém essa é a opinião geral. 11 Mário de Andrade, nesse momento, apesar de suas preocupações a respeito da obra de Anita, que demonstrara nos períodos que antecedem a Semana, reafirma a sua fiel amizade com a pintora, e, em uma carta enviada apenas alguns dias depois a Carlos Drummond de Andrade, já dá sinais da sua reavaliação sobre as tendências mais radicais do modernismo, que ficarão cada vez mais claras nos anos seguintes: Aí vai pra você mais um artigo meu. É um pouco de bater de caixa pra uma amiga minha. O pessoal aqui não gosta muito dos quadros dela porém eu gosto agora que já estou me libertando também do Modernismo por demais tendencioso. 12 O que na verdade percebemos nesse período, após tantos acontecimentos decisivos em sua carreira artística, é uma reafirmação clara de suas intenções com a pintura, despreocupada dos pressupostos mais fortes do inaugurado período de renovação modernista no Brasil, que expressava, através de seus principais mentores, a necessidade de atualização, a partir das tendências de vanguarda européia, como o cubismo e, posteriormente, o surrealismo e ao mesmo tempo a preocupação com os elementos nacionais. Alheia a esse discurso modernista praticado então pela maioria do grupo, Anita Malfatti vai buscar em outras fontes o que deseja para sua pintura, como podemos verificar nas palavras da artista, em carta enviada para Mário de Andrade em 1924: (...) Estou aqui com uma prima de mamãe e todos a me convidarem e à me quererem bem que eu até nem acredito tanto mel depois do fel A fortuna virou para mim. Veja quanta coisa boa. Na minha pintura cheguei à uma grande ètape. Fiz uma descoberta enorme para mim. Sei que agora poderei sempre conseguir a unificação harmoniosa dos meus tons e a relação entre elles de modos que pareção todos partes componentes de um só corpo. Descobrir a cor local e applical-a simultaneamente conforme o problema a resolver. O mesmo systema no rytmo desenho. Levei dias tremendo enquanto fazia experiência e só perguntava à Deus si por ventura eu tinha recebido effectivamente(sic) a graça de comprehender(sic) esta simples e grande verdade do meu trabalho Dias depois chega-me às mãos um livro de Cézanne no qual o mestre diz ter sido mais ou menos isto o segredo de Manet e que ele durante toda a sua vida nunca esqueceria de enlever mon chapeau à Manet pour cela, mas o mestre aproveitou da lição pois mais que M. elle fez o mesmo mas embelezou isto com a cor. trabalharei agora com methodo e comprehensão e sei que isto marca o começo de uma época. 13 Um exemplo no sentido do discurso proposto pela artista é a tela Veneza-Canaleto, de 1924, feita a partir de sua passagem por essa cidade, em julho de 1924, dentre as visitas que Anita Malfatti fez por alguns países europeus. Nessa paisagem, vemos ressurgir a liberdade com a qual a artista trabalha suas cores, nas diversas tonalidades nas paredes das casas, no reflexo das águas do canal, na ponte, nas 11 Carta de Mário de Andrade a Prudente de Morais Neto, 28 jul. 1926. Ibidem, p. 187. (Os grifos são nossos). 12 Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Ibidem, p. 187. (Os grifos são nossos). 13 Tanto mel depois do fel, uma referência clara que a artista faz à reação geral às suas pinturas, na volta dos EUA. Carta de Anita Malfatti a Mário de Andrade, 3 e 8 de abril (1925 c.). In: BATISTA, Marta Rossetti. 8 cartas e desenhos. Revista do IEB, n. 23, p. 112-113. (Os grifos são nossos). 4 Renata Gomes Cardoso

casas ao fundo, que seguem de perto, por exemplo, a construção colorística escolhida na composição do rosto e do paletó de O Japonês (1915/16), do fundo e na expressão do rosto de Mário de Andrade I (1921/22), apesar de nesse sentido se diferenciar do padrão compositivo normalmente utilizado nas tonalidades das paisagens de 1915/16, como O farol e A onda. Mais próxima dessas duas paisagens estará a tela Porto de Mônaco, de 1925/26, que por exemplo, vista ao lado de O Barco, de 1915, nos atesta como a artista permanece coerente com seus propósitos, demonstrando principalmente um grande amadurecimento na captação das cores e na construção da paisagem. É possível perceber em outras telas desse período, como La Chambre Bleue (1925 c.), o poder de síntese na pintura de Anita Malfatti entre as diferentes tendências da pintura com a qual manteve contato desde suas primeiras aventuras, na Alemanha de 1910, e a referência à pintura de artistas franceses como Matisse e, como no Interior de Mônaco (1925c., que participou do 37.º Salão dos Independentes), a Pierre Bonnard e mesmo a Maurice Denis, que apesar de não estarem em meio às tendências mais radicais da arte européia, são pintores que estão trabalhando na França naquele momento. Podemos perfeitamente entender essa atitude da artista, nesse momento, se termos em mente os fatores mais importantes do início de sua carreira: ao contrário dos outros brasileiros envolvidos com as questões do modernismo no Brasil, Anita Malfatti já havia passado por algumas das experiências mais radicais da arte européia, tanto pelas exposições que visitou na Alemanha, quanto pela prática exercida na Independent School of Art nos Estados Unidos, cujo ambiente era povoado por vários artistas europeus da vanguarda, como Marcel Duchamp e Isadora Duncan. É natural pensarmos que, principalmente depois de um estágio no Brasil da segunda década do século, e dos acontecimentos pelos quais passou nesse meio, suas buscas e anseios em pintura se diferenciassem dos interesses dos outros artistas, tanto em relação às vanguardas, quanto em relação ao conteúdo que sempre demonstrou em sua pintura, sempre mais próximo das tendências expressionistas, mesmo ao observarmos os vários estudos cubistas da artista. Prova disso será o retorno ao Brasil, que em meio ao pouco tempo para se dedicar à pintura, a artista se voltará para a paisagem típica do interior, para as festas populares, como vemos em Itanhaém(1948) e Paisagem de Ouro Preto (1948). As questões em aberto, que se seguirão na continuidade dessa pesquisa, procura se aprofundar nessas diversas relações e nesse diálogo sempre presente na obra de Anita Malfatti com as várias tendências da pintura, tanto do Brasil quanto internacionais, contemporâneas da artista, procurando explorar com mais precisão essas características e buscando como esses diversos momentos se juntam e se configuram em sua pintura. O que é a obra de Anita Malfatti nesse sentido, olhando através dos tempos, na sua organização interna, relacionando as várias tendências que a artista conheceu desde os primeiros anos de aprendizado? 5 Renata Gomes Cardoso

Referências ALMEIDA, Paulo Mendes de. De Anita ao museu. São Paulo: Perspectiva, 1976. AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22: subsídios para uma história da renovação nas artes do Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1970. ANDRADE, Mario de. Mario de Andrade, cartas a Anita Malfatti.(Org. Marta Rossetti Batista). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: IBM Brasil, 1985. BATISTA, Marta Rossetti. (et al., Org.). Brasil: 1º tempo modernista 1917/25: documentação. São Paulo: IEB, USP, 1972. BELLUZZO, Ana Maria de Morais. Modernidade: Vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo: Ed. Unesp, 1990. BOAVENTURA, Maria Eugênia. 22 por 22: a semana de arte moderna vista pelos seus contemporâneos. São Paulo: Edusp, 2000. BRITO, Mário da Silva. Antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. CHIARELLI, Tadeu. Um jeca nos vernissages (Monteiro Lobato e o desejo de uma arte nacional no Brasil). São Paulo: USP, 1995. CHIARELLI, Tadeu. Ausência de Anita. In: Revista Bravo, ano 6, n. 63. São Paulo: Editora D avila, dez. 2001. CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna. Trad. W.Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1988 FABRIS, Annateresa. Modernidade e Modernismo no Brasil. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1994. FABRIS, Annateresa. Futurismo: uma poética da modernidade.sãopaulo: Perspectiva, 1987. HARRISON, Charles e WOOD, Paul. Art in Theory. 1900-1990. An Anthology of Changing Ideas. Cambrigde: Blackwell Publisher Inc., 1996. MORAES, Eduardo Jardim de. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Graal, 1978. ZANINI, Walter (Org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles: Fundação Djalma Guimarães, 1983. 2 v. 6 Renata Gomes Cardoso

Referências Iconográficas Figura 1 - Anita Malfatti: Tropical (1917) Figura 2 - Anita Malfatti: Veneza-Canaleto (1924) 7 Renata Gomes Cardoso