Os Conflitos da Migração Turca na Alemanha As migrações humanas são um fenômeno recorrente desde a nossa pré-história. O homem parece estar sempre em busca de novos horizontes e se evadindo de condições climáticas desfavoráveis, guerras, perseguições ou apenas buscando um emprego ou um lugar onde possa viver com mais dignidade. O ato de migrar não é uma tarefa fácil. Por um lado, o migrante precisa deixar sua terra natal e todos que conhece partindo com a incerteza se voltará a vê-los ou se encontrará o que busca quando chegar ao seu destino. Por outro lado, estão os conflitos com os quais o migrante convive ao chegar a um novo local que não partilha de sua cultura ou de seus valores e que muitas vezes o olhará com preconceito ou vai tratá-lo como um cidadão de segunda classe, deixando-o marginalizado do grupo social majoritário. É sobre alguns desses aspectos da prática migratória que trata o documentário Estamos no Sul (Wir sitzen im Süden) e o drama A Estrangeira (Die Fremde). Estamos no Sul foi lançado em 2010 e tem a direção de Martina Priessner que, além desse filme, tem dois curtas metragens em seu currículo. A Estrangeira, também lançado em 2010, foi escrito e dirigido pela austríaca Feo Adalag, sendo ele o representante da Alemanha na disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro em 2011. Ambos abordam a questão da imigração turca na Alemanha. O primeiro foca em quatro personagens que nasceram na Alemanha, mas vivem na Turquia, impedidos de retornar ao país natal. Já o segundo conta a história de uma turca nascida na Alemanha que retorna ao país devido aos conflitos com o marido. Antes de abordar especificamente o tratamento dado à questão pelos filmes, é necessária uma breve contextualização. O movimento de imigração turca na Alemanha começou por volta dos anos 50 quando o governo alemão lançou o Tratado para Recrutamento de Trabalhadores Turcos (Abkommen zur Anwerbung türkischer Arbeitnehmer). Nesse período o país passava por uma escassez de mão de obra devido ao alto número de mortos e prisioneiros da Segunda Guerra Mundial e isso representava um entrave para a reconstrução do país no pós-guerra. Hoje, a comunidade turca representa a mais numerosa minoria da Alemanha.
O sentimento de não-pertencimento a um lugar é algo que permeia A Estrangeira. Sua protagonista, a jovem Umay, é filha de turcos e nascida na Alemanha, mas mora em Istambul com o marido e o filho. Infeliz no casamento e cansada dos abusos e agressões do marido, Umay retorna com o filho para a casa dos pais na Alemanha. Mesmo de volta ao país natal, continua a sensação de que Umay está deslocada, seus pais não aceitam sua decisão de deixar o marido, alegando que isso traria desonra à família, fato evidenciado quando o noivado de sua irmã mais nova é interrompido pela família do noivo. O que poderia ser apenas uma divergência de pontos de vista é tratado claramente como um conflito cultural em momentos como aquele em que o marido de Umay a chama de puta alemã. Assim, embora pertença simultaneamente à nação alemã e à comunidade turca, ela não consegue conciliar as duas culturas e os dois modos de vida. Ao perceber que sua família enviará seu filho de volta para o pai na Turquia à força, sofrendo inclusive agressões do pai e dos irmãos, ela faz uma denúncia à polícia e é levada a um abrigo de mulheres. A decisão a afasta ainda mais de sua família que também passa a vê-la como uma mulher perdida e se recusa a ter contato com ela. A solidão da protagonista é algo bem marcado pelo filme, que investe bastante no silêncio e constantemente a mostra caminhando de mãos dadas com o filho por espaços amplos e vazios, em planos majoritariamente abertos. Mesmo com a recusa em recebê-la, Umay continua a tentar mostrar aos pais que não há nada do que se envergonhar, que ela está trabalhando, estudando e sustentando o filho e que isso deveria ser motivo de orgulho. Ela tenta ligar para a mãe e levar doces ao pai durante um feriado, mas em todas as ocasiões ela é repelida pelos familiares. A ruptura entre Umay e sua família fica patente na conversa que ela tem com a chefe quando esta lhe diz: Se eles tiverem de escolher entre você e a comunidade turca, tenha certeza de que eles nunca escolherão você. A protagonista, entretanto, não
percebe o abismo que a separa da família e continua a crer que eventualmente eles irão aceitá-la. As tensões atingem o ápice quando Umay decide ir ao casamento de sua irmã mais nova e é ignorada pelos parentes e observada por todos os presentes como se fosse uma alienígena ou uma completa estranha. Revoltada com o tratamento recebido, ela toma o microfone do músico e questiona o motivo de tudo aquilo e a única reação que obtém é ser arremessada para fora e pela porta dos fundos, um símbolo claro de não pertencimento, por um dos irmãos. É a duras penas que Umay percebe que a convivência entre as suas escolhas de vida e os valores de seus parentes são inconciliáveis. Como seu filho bem lhe diz a cada escolha a gente deixa algo para trás. Somente nos últimos momentos do filme, quando Umay vai visitar o pai no hospital, é que fica claro para ela e para o público o quanto é irreversível a situação entre ela e a família. O impactante desfecho do longa mostra que muitas vezes as diferenças entre povos representam barreiras quase que intransponíveis para a convivência entre pessoas pertencentes a comunidades e matrizes culturais diferentes. O documentário Estamos no Sul também nos apresenta pessoas com conflitos de identidade cultural e nacional. No filme, acompanhamos as vidas de Bulent, Murat, Fatos e Cigdem, todos turcos, nascidos na Alemanha, mas que passaram a residir na cidade de Istambul, capital da Turquia. Para três deles, a mudança ocorreu contra a sua vontade e, apesar de serem nascidos na Alemanha, não conseguem obter a documentação necessária para retornarem ao país. Os sentimentos de confusão e frustração dessas pessoas, que são impedidas de retornar à nação onde nasceram e viveram boa parte das suas vidas, é expresso logo no início do documentário, quando Bulent diz: o aeroporto está bem ali, mas voltar não é tão simples. O personagem, mesmo sendo nativo da Alemanha, foi deportado há cinco anos. Por uma situação semelhante passam Fatos e Murat, mandados contra a própria vontade à Turquia por seus pais e também impossibilitados de voltar por não possuírem
mais seus documentos. Além da distância e da impossibilidade de retornarem ao país onde nasceram, os três também têm em comum o local onde trabalham. Todos são empregados da central de atendimento de um grande site de vendas alemão. Isso implica em um contato diário com a língua e a cultura alemã, e esse contato não se limita somente ao trabalho, já que frequentam bares e restaurantes onde todos os funcionários falam alemão e em suas casas consomem produtos alemães. Murat, em determinado momento,diz: tudo que é vendido lá também é vendido aqui. Desse modo, eles buscam construir seus pequenos pedaços da Alemanha dentro da Turquia, na tentativa de suplantar a distância do país. Entretanto, tudo isso serve apenas como um alento e não substitui o que deixaram para trás. Bulent lembra dos amigos que praticamente não mantêm mais contato, e a única pessoa com quem ele se relaciona é sua namorada. Murat lamenta não poder andar livremente com seu namorado por Istambul, sendo constantemente olhado com hostilidade ou com risadas. Por outro lado, os depoimentos de Bulent servem para lembrar dos problemas enfrentados pelas comunidades turcas na Alemanha. Ele conta sobre o preconceito e a violência sofrida por imigrantes e descendentes turcos, dos ataques sofridos por gangues como os skinheads e que isso levou os jovens turcos a criarem suas próprias gangues para rechaçar essa violência. Cigdem é a única dos quatro personagens do documentário que pode transitar livremente entre a Turquia e a Alemanha. A jovem administra um dos muitos call centers de empresas alemãs baseados em Istambul e narra como essas empresas decidiram levar seus negócios para a Turquia devido ao alto número de falantes do idioma alemão dispostos a trabalhar em um local que exigia o uso irrestrito da língua, além do custo mais baixo da mão de obra. Cigdem também é a única a preferir a Turquia à Alemanha e lamenta o processo de aculturação, a absorção de uma cultura pela outra, na Turquia, com um número crescente de negócios onde se fala alemão e cita o ocorrido em um restaurante de Istambul, onde perguntou ao garçom o motivo por que ele não fala em turco e, em resposta, ele a questiona o porquê dela não falar alemão.
Conforme o filme se aproxima do final, Fatos e Murat conseguem os tão esperados vistos para a Alemanha. A longa e efusiva comemoração de Fatos quando ela abre a correspondência com o visto de entrada dá a entender que ela finalmente vai alcançar seu sonho de voltar a morar na Alemanha, mas, na verdade, tudo que conseguiu foi um visto de turista com validade de um mês. Um mês também é tudo que Murat consegue e ambos viajam à Alemanha onde visitam os velhos conhecidos de suas vidas pregressas, mas ainda desejosos de retornar definitivamente ao país, nem que precisem casar para obter o visto. O documentário encerra com uma conversa de Fatos e uma amiga, onde ela resume os motivos de querer residir na Alemanha: meu sangue pode ser turco, mas minha alma é alemã. Se A Estrangeira encerra com um gosto muito amargo, mostrando as consequências trágicas do choque entre diferentes povos, Estamos no Sul termina deixando para o público a esperança de pessoas que continuam buscando maneiras de estarem no local onde se sentem pertencentes.