Prolegômenos acerca da crítica ontológica da economia política marxiana



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Transcrição:

Prolegômenos acerca da crítica ontológica da economia política marxiana Sandra Rodrigues dos Santos* 1 RESUMO: Desde finais do século XIX não foram poucos os que se dedicaram a apreender o veio condutor da nova forma de cientificidade instaurada pelo pensamento de Karl Marx. Destarte, a obra marxiana e, por conseguinte, a fundamentação ontológica dos estudos e análises nela presentes, só pode ser devidamente entendida se considerarmos a processualidade que tornou possível, a formação e o amadurecimento da investigação crítica e conscienciosa realizada por este pensador acerca das questões histórico-econômicas e extraeconômicas. Ao evidenciar que a anatomia da sociedade civil só poderia ser encontrada na economia política, Marx se dedicou arduamente aos estudos econômicos, unindo a estes, todos os momentos da vida do ser social em sua historicidade. Ao criticar o método de estudo e análise da filosofia especulativa e da economia política, este filósofo demonstrou o porquê foram concebidas algumas lacunas e falhas no seio destas. Porém, não se tratou apenas de uma demonstração crítica e conscienciosa, ele instaurou ao mesmo tempo, uma nova forma de cientificidade que evidenciou a subsunção do pensamento à lógica específica do objeto de estudo, no contínuo processo de apropriação da historicidade do ser social. As construções abstratas realizadas pelo seu pensamento o permitiram conceber as categorias econômicas enquanto momentos da totalidade do ser social. Esboçar acerca da crítica da economia política em Marx e, por conseguinte, acerca do método de estudo e análise marxiano por uma perspectiva ontológica constitui objetivo precípuo do presente trabalho. Palavras-chave: crítica da economia política; ontologia; método marxiano. *Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Membro do Grupo de Estudos de Crítica da Economia Política (GECEP), da UFVJM. (e-mail: sandra.19.12@hotmail.com). 1

Prolegômenos acerca da crítica ontológica da economia política marxiana Introdução A obra marxiana e, por conseguinte, a fundamentação ontológica dos estudos e análises nela presentes, só pode ser devidamente entendida se considerarmos a processualidade que tornou possível, a formação e o amadurecimento da investigação crítica e conscienciosa realizada por Marx acerca das questões histórico-econômicas e extraeconômicas. Mesmo porque, o estatuto ontológico dos estudos realizados por este pensador, sobretudo na fase madura de sua reflexão, não se configurou como mero produto do acaso ou de sua genialidade, mas correspondeu antes, à forma como Marx concebeu as relações de produção e reprodução social da vida humana em estágios historicamente determinados. O espírito crítico de sua visão de mundo correspondeu ao conjunto das condições materiais de vida em que se encontrava inserido enquanto sujeito ativo, e, ao qual, em determinado momento de sua trajetória pelas condições reais da produção de sua existência social teve que compreender em sua essência para poder enfrentar a difícil tarefa de ter que opinar sobre os chamados interesses materiais. A experiência vivida por Marx durante sua atuação como redator da Gazeta Renana 2, foi fundamental para que este pensador iniciasse seus estudos acerca da economia política. Isso porque, foi nesse espaço de debate e formação que Marx se viu pela primeira vez na obrigação de tratar sobre os chamados interesses materiais, isto é: [...] debates da Dieta renana sobre a destruição furtiva e o parcelamento da propriedade do solo, a polêmica oficial mantida entre o Sr. Von Schaper, na ocasião governador da província renana, e a Gazeta Renana sobre a situação dos camponeses do Mosela e, finalmente, os debates sobre o livre câmbio e o protecionismo [...] (MARX, 2003, p.21). Reconhecendo a insuficiência de seu arcabouço teórico para tratar sobre estas questões econômicas, Marx se afastou do Diário e se dedicou arduamente aos estudos. Sua 2 Reich Zeitung - Diário radical publicado em Colônia em 1842-1843. Marx foi seu redator-chefe de 15 de outubro de 1842 a 18 de março de 1843. 2

primeira empreitada nesse sentido foi a revisão crítica da filosofia hegeliana do direito. Este primeiro estudo crítico realizado por Marx lhe permitiu chegar ao resultado de: [...] que tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano, mas se baseiam, pelo contrário, nas condições materiais de vida cujo conjunto Hegel resume, seguindo o precedente dos ingleses ou franceses do século XVIII, sob o nome de "sociedade civil", e que a anatomia da sociedade civil precisa ser procurada na economia política (MARX, 2003, p.21). Uma vez alcançado por Marx este resultado produto do seu estudo crítico acerca da filosofia do direito de Hegel, iniciado em meados de 1843 fundamentou sua vida prático-reflexiva até o fim de seus dias. Isso porque, a partir deste momento Marx pode evidenciar, diferentemente de Hegel, que o Estado não se configurava como demiurgo da sociabilidade humana, tão pouco, como mediação possibilitadora da realização humanosocial. Portanto, compreendeu que não eram no bojo do Estado racional que poderiam ser encontradas as respostas clarificadoras acerca dos problemas humano-societários, mas sim, na sociedade civil, posto ser esta a protoforma originária das concreções materiais e sociais da vida humana que fundamentam a gênese de todas as formas de instituições e representações socialmente objetivadas pelos sujeitos históricos. Todavia, a constatação marxiana de que o conjunto das condições materiais de vida se apresentava como base originária, tanto das relações jurídicas como das formas de Estado, ainda não havia permitido-o evidenciar a verdadeira anatomia do conjunto das relações sociais e específicas de produção e reprodução da vida que se objetivavam no interior desta sociedade civil, ou seja, nesse primeiro momento de seu estudo crítico, Marx ainda não havia concebido as leis naturais e as determinações socioeconômicas que operavam e se impunham com férrea necessidade no que e no como da efetivação destas relações sociais e políticas historicamente determinadas. Este entendimento só se tornou possível e efetivo quando Marx iniciou seus estudos, em 1844, sobre a economia política. Foi somente a partir destes dois primeiros estudos conscienciosos 3 acerca da filosofia do 3 Cabe mencionarmos aqui a forte influência que teve sobre o pensamento de Marx, no momento em que este iniciou seus estudos acerca da economia política, a obra escrita por Engels em 1844 e publicada em fevereiro do mesmo ano, intitulada Umrisse zu einer Kritik der Nationalokonomie (Esboço para uma crítica da economia política). Também aqui devemos justificar o motivo pelo qual não tratamos nesse ponto do presente 3

direito de Hegel e da economia política clássica, que este pensador pode conceber a anatomia da sociedade civil enquanto complexo que precisava ser procurado na economia política. Estes pressupostos permitem observarmos como Marx, ontologicamente, em nome da condição real e concreta do ser 4 e de suas condições materiais de vida, rechaçou a forma abstrata hegeliana de conceber a relação entre Estado e sociedade civil. Evidentemente, o estudo crítico que levou Marx a este esclarecimento, permitiu-o demonstrar que a inversão efetivada pelo pensamento de Hegel encontrava-se fundamentada sobre a maneira como este concebeu o processo prático de desenvolvimento dos homens em sua temporalidade histórica. Para Marx, o motivo pelo qual o pensamento foi concebido por Hegel como sujeito sem predicado, isto é, como sujeito de si mesmo, que pensa a si e se autoconstitui de forma autônoma, enquanto momento de gênese da objetividade humano-social, não se deveu somente à sua condição e limitação teórico-histórica, mas, sobretudo, ao fato de que a apropriação da base sócio-material realizada por seu pensamento da única forma possível, ou seja, na forma imediata, foi concebida como momento de gênese do concreto e não como concreto-de-pensamento, não o permitindo apreender a essência da totalidade concreta na qual se efetivam as formas de ser e existir e, portanto, ontológicas do ser que constrói a si e a sua sociabilidade mediante a realização objetiva de sua práxis social. A crítica da filosofia do direito de Hegel impulsionada pelas dúvidas acerca dos interesses materiais que assaltavam Marx desde meados de 1843 encontrou expressão esboço sobre a forma como as obras de Feuerbach se apresentaram para Marx no processo de constituição de seu próprio pensamento. Isso se deve ao fato de não nos julgarmos esclarecidos suficientemente para fazermos esta exposição nesse momento, ainda que estejamos apenas nos aproximando dos fios condutores desta complexa problemática. Devemos, portanto, ter cautela em nossas afirmações para que não venhamos cair em possíveis equívocos teóricos que em nada contribuiriam para este estudo. Se em alguma medida tratamos de tal questão no capítulo I deste esboço, foi porque nos textos dos autores apresentados houve a preocupação de compreender a importância do pensamento de Feuerbach para Marx e todos os enunciados presentes no citado capítulo dizem respeito unicamente à interpretação que fizemos dos escritos destes sujeitos, e que por isso não são originários de nosso pensamento. 4 Veja como Marx concebe a sociedade civil enquanto protoforma originária e base material sobre a qual se sustentam as relações jurídicas e as formas de Estado. O fato de que nesse primeiro momento este conjunto de relações sociais ainda seja concebido em sua forma geral não impede de que seja afirmada desde este momento a condição primígena do ser social, concebido sob o conjunto das relações sociais da vida material. 4

máxima em seu pensamento quando este teórico se dedicou a estudar criticamente a economia política. Uma vez que já havia concebido a sociedade civil, bem como o conjunto das relações materiais de vida em sua base terrena, Marx se via agora na difícil tarefa de ter que compreender em sua essência, as formas como as relações sociais de produção e reprodução da vida material se organizavam e se realizavam historicamente no interior da sociedade burguesa. Ao galgar pelas veredas abruptas da ciência econômica 5 sobre a qual debruçou ferrenhamente seus estudos, Marx evidenciou que apesar da economia nacional ter realizado em seu tempo alguns avanços e descobertas historicamente válidas, esta não havia conseguido dar conta de explicar a origem histórica das leis naturais e determinações socioeconômicas que necessariamente operavam no cerne do conjunto das relações materiais e sociais de vida que formavam a sociedade burguesa. Foi precisamente a partir destas clarificações constitutivas e fundamentais ao processo de emersão do pensamento propriamente marxiano, como afirmou Lukács (1979, p.15), que pela [...] primeira vez na história da filosofia, as categorias econômicas apareceram como as categorias da produção e da reprodução da vida humana, tornando assim possível uma descrição ontológica do ser social sobre bases materialistas [...]. O não entendimento desta eterna e real conexão entre cientificidade e processualidade histórica configurou-se no seio do pensamento econômico, segundo Marx, como uma tentativa de [...] provar a eternidade e a harmonia das relações sociais [...] burguesas (MARX, 2003, p.228). Após ter dedicado longos anos de sua vida a uma conscienciosa investigação, Marx chegou à conclusão de que as individualidades sociais que de alguma forma tentaram compreender os problemas humano-societários se depararam sempre com determinados limites, que certamente corresponderam, sobretudo, à incorreta apreensão do processo de desenvolvimento real do ser social, isto é, do desenvolvimento histórico da atividade 5 Sobremaneira cabe destacar aqui o papel crucial que tiveram os estudos econômicos de Adam Smith e David Ricardo para Marx. Porém, de forma nenhuma, esta contribuição deve ser entendida como imediata identificação com tais visões e compreensões de mundo. Todas as leituras realizadas por Marx diziam respeito somente à sua necessidade crítico-investigativa que se configurava enquanto mola propulsora para seu passo à frente no processo de desvelamento da essência efetiva e concreta das formas de ser e existir em si sociais que fundamentavam a história da humanidade. 5

humano-material sob determinadas condições histórico-materiais independentes de sua vontade (MARX, ENGELS, 1987, p.36). Ainda que um ou outro tenha concebido de forma parcial algumas categorias sócio-históricas e suas leis naturais, estas sempre apareceram revestidas com mantos abstrativos 6, como uma coleção de fatos mortos ou a-históricos 7. Isso porque, segundo Marx e Engels (1987, p.17) [...] os produtos de sua cabeça acabaram por se impor à sua própria cabeça. Eles, os criadores, renderam-se às suas próprias criações [...], portanto, não conceberam os [...] pressupostos reais de que não se pode fazer abstração a não ser na imaginação [...]. Marx diferentemente destes, se propôs a ensinar [...] os homens a substituir estas fantasias por pensamentos que correspondam à essência do homem [...] a comportar-se criticamente para com elas [...] a expurgá-las do cérebro [...], e assim, tencionar para que a realidade existente caísse por terra (MARX, ENGELS, 1987, p.17). Todo o processo de constituição do pensamento marxiano e de sua visão de mundo, se configurou como uma busca permanente pela correta apreensão da vida sob uma forma determinada de produção material, a saber, a sociedade burguesa 8. Mas, se é verdade que 6 Podemos tomar como exemplo, Hegel que concebeu o trabalho como essência do homem, enquanto trabalho espiritual abstrato. 7 Adam Smith é a individualidade sócio-histórica que melhor se encaixa nesse exemplo pois para ele os momentos constitutivos da produção social, historicamente determinada, foram concebidos como leis naturais e independentes da história, logo, como leis naturais e eternas. 8 Não podemos considerar o pensamento de um determinado sujeito histórico sem compreendermos a base material de seu tempo e a sua historicidade. Os estudos de Marx acerca da economia política que em tese podem ser sintetizados como estudos sobre a história da humanidade, se iniciaram em 1844 e só se encerraram no fim de sua vida. Mas entre 1844 e 1883, Marx viveu momentos extremamente delicados, passou muita necessidade financeira e enfrentou sérios problemas de saúde, o que comprometeu intensamente seus estudos sobre a economia política, que interditados em 1853 só puderam ser retomados efetivamente em 1857-59, período em que escreveu os Grundrisse, a Introdução de 1857 e sua Contribuição à Crítica da Economia Política. Não fosse a ajuda de Engels, provavelmente, Marx teria sucumbido à miséria extrema. O fato de ter participado ativamente dos movimentos políticos e revolucionários de sua época fez com que Marx sofresse duras represálias. Viveu o exílio durante toda a sua vida, e com ele sua grande família com quem compartilhou todos estes momentos de forma extremamente dura. Prova disso foi a perda dos filhos, que morreram por conta da precária condição de vida em que se encontravam. Partindo destes fatos, podemos afirmar que o trato e rigor científico sob os quais foram expostos os pontos de vista da concepção marxiana correspondem essencialmente à vida, pois dizem respeito a si e a seu gênero, a si, enquanto individualidade social que apreendeu a processualidade histórico-material de seu tempo, e de seu gênero enquanto expressão máxima da produção social de sua vida. Além disso, concebeu a condição primígena do ser em si humanosocial diante das determinações e categorias econômicas que só podem ser compreendidas dentro das relações 6

Marx se dedicou ferrenhamente à crítica conscienciosa dos corpus científicos de sua temporalidade histórica, não é menos verdadeiro, o fato de que teve que enfrentar a difícil tarefa histórica de demonstrar concretamente, [...] que ali onde termina a especulação, na vida real, começa também a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens [...] (MARX, ENGELS, 1987, p.38), isto é, teve que demonstrar os fundamentos ontológicos da nova forma de cientificidade por ele instaurada e na qual se encontravam fundamentadas as suas análises e investigações da vida humano-social. Uma observação importante a ser feita nesse momento, e que corresponde a um esclarecimento necessário, diz respeito a um fato que o próprio Lukács já havia anunciado muito bem em seu escrito 9, de que mesmo na fase madura do pensamento marxiano, em que muitos conceberam Marx como simples economista em oposição ao jovem filósofo dos escritos de 1840, a [...] filosofia continuou sendo mesmo sem a pretensão de dominar e submeter os fenômenos e suas conexões o princípio diretivo dessa nova concepção [...]" (LUKÁCS, 1979, p.29). Ou seja, que: Diante do conhecimento adequado de tais complexos, a lógica perde seu papel filosófico de guia; torna-se, enquanto instrumento para captar a legalidade de entidades ideais puras e, portanto homogêneas, uma ciência particular como qualquer outra. Mas, com isso, o papel da filosofia é superado apenas no duplo sentido hegeliano da palavra. Enquanto crítica ontológica de todos os tipos de ser, a filosofia continua sendo mesmo sem a pretensão de dominar e submeter os fenômenos e suas conexões o princípio diretivo dessa nova cientificidade. Por isso, não é casual, não é uma peculiaridade surgida das contingências históricas da ciência, o fato de que o Marx maduro tenha intitulado suas obras econômicas não como Economia, mas como Crítica da economia política. Naturalmente, a referência imediata diz respeito à crítica dos pontos de vista econômicos burgueses (uma crítica já por si bastante importante) mas também está implícito o aspecto para o qual temos chamado a atenção, ou seja, a ininterrupta crítica ontológica imanente de todo fato, de toda relação, de toda conexão submetida a leis. (LUKÁCS, 1979, p.29). A observação lukacsiana supracitada abre caminho para que possamos compreender como Marx instaurou uma forma cientificamente nova de se conceber o real, forma que em reais de produção e reprodução material e social da vida humana sob uma processualidade historicamente determinada. 9 LUKÁCS, G. Ontologia do Ser Social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, p.29. 7

seu pensamento se apresentou enquanto [...] síntese peculiar de novo tipo, que associou de modo teórico-orgânico a ontologia histórica do ser social com a descoberta teórica das suas leis concretas e reais [...] (LUKÁCS, 1979, p.46). Precisamente a partir destes principais pressupostos, sinteticamente apresentados, é que desenvolvemos nosso entendimento acerca da crítica ontológica marxiana da economia política. Entendimento este que está fundamentado, sobretudo no escrito marxiano intitulado Introdução de 1857, ou como o próprio Marx o denominou, Introdução geral. Escrito extremamente denso, no qual Marx sintetizou o itinerário constitutivo de seu próprio pensamento e os resultados gerais aos quais chegou após mais de quinze anos de estudos econômico-filosóficos, os quais ganharam concretude e completicidade na sua obra madura; O Capital. Os princípios ontológicos da crítica da economia política marxiana Não é por acaso que Marx inicia sua Introdução geral afirmando que o objeto de seu estudo é desde o princípio, a produção material. Esta primeira delimitação demonstra claramente o seu posicionamento consciente e crítico, diante dos pressupostos filosóficos especulativos e idealistas. Se estes desciam do céu à terra, partindo daquilo que os [...] homens diziam, imaginavam e representavam, ou seja, dos homens pensados, imaginados e representados, para depois chegarem aos homens em carne e osso [...], Marx, pelo contrário, afirmou que não tem [...] história, nem desenvolvimento, mas os homens, que ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material transformam a sua realidade, seu pensar e o produto de seu pensar [...] (MARX, ENGELS, 1987, p.37). O ponto de partida do estudo crítico e ontoprático realizado por Marx acerca da economia política, não poderia ser outro senão a produção de indivíduos socialmente determinada. Trata-se do estudo [...] de uma determinada forma de atividade dos indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos mesmos [...], isto é, [...] das condições materiais de sua produção [...] (MARX, ENGELS, 1987, p.27-28). Produção esta, que Marx demonstrou ser condicionada pela organização corporal desses indivíduos e, por conseguinte, pela sua relação com o resto da natureza. Pois, é sobre sua base natural que os homens encontram as condições objetivas e 8

necessárias para produzirem os seus meios de vida e, por meio deste processo, produzir indiretamente sua própria vida material (MARX, 1987, p.27). A produção material da vida é por condição, uma atividade social. Pois, [...] o homem é, no sentido mais literal, um dzôon politikhón 10, não só um animal sociável, mas um animal que só em sociedade pode isolar-se [...] (MARX, 2003, p. 226). Os indivíduos produtores isolados não se configuram de maneira alguma, em Marx como ponto de partida para se conceber as relações sociais de produção e reprodução da vida humana. Esta compreensão a dos indivíduos produtores isolados segundo o pensamento marxiano tratou-se apenas de uma ilusão muito mal concebida pelos profetas do século XVIII, que influenciou sobremaneira, os economistas, principalmente Adam Smith e David Ricardo, para quem os indivíduos produtores se apresentavam como um dado da natureza, enquanto a processualidade histórica aparecia apenas como produto de um ideal que teria existido no passado (MARX, 2003, 226). Todavia, esta visão de mundo sustentada por tais profetas e potencializada pelos economistas modernos, se constituiu para Marx como um reflexo efetivo da incompreensão por parte destes, acerca da origem histórica das relações econômicas, que só podem ser entendidas, por seu curso, se concebidas enquanto produto de um desenvolvimento humano social historicamente determinado. (MARX, 2003. p.226). Marx criticou conscienciosamente a insustentabilidade da eternização das relações sociais burguesas, pressuposta pelos economistas por meio da separação brutal entre a produção e a distribuição em geral, concebidas enquanto elementos opostos entre si, isto é, totalmente dissociadas da base material e econômica que as alicerçam, apresentando-as como que [...] fechadas em leis naturais, eternas e independentes da história [...] (MARX, 2003, p.230). Ou seja, como determinações gerais e comuns a algumas épocas históricas da produção do homem, porém, concebidas in abstracto e engessadas ao modo capitalista de produção. Destarte, a crítica ontológica marxiana parte dos pressupostos da economia política, aceitando sua [...] linguagem e suas leis [...], para [...] a partir da própria economia nacional, com suas próprias palavras [...] (MARX, 2004, p.79), demonstrar que: 10 Animal político. (Cf. N. do R. T.). MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Martins Fontes: São Paulo, 2003, p. 262. 9

A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração racional, na medida em que, sublinhando os traços comuns, nos evita a repetição. No entanto, este caráter geral ou estes traços comuns, que a comparação permite estabelecer formam por seu lado um conjunto muito complexo cujos elementos divergem para revestir diferentes determinações (MARX, 2003, p.226-227, grifo nosso). Porém, Marx (2003, p.227), esclarece que: Algumas destas características pertencem a todas as épocas, outras são comuns apenas a umas poucas. [Algumas] destas determinações reveler-se-ão comuns tanto à época mais recente como a mais antiga. Sem elas, não é possível conceber nenhuma espécie de produção. Mesmo porque, segundo este pensador (2003, p.227, grifo nosso): [...] se é verdade que as línguas mais evoluídas têm de comum com as menos evoluídas certas leis e determinações, é precisamente aquilo que as diferencia destes traços gerais e comuns que constitui a sua evolução; do mesmo modo é importante distinguir as determinações que valem para a produção em geral, a fim de que a unidade que infere já do fato de o sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza, serem idênticos não nos faça esquecer a diferença essencial. Este esquecimento é o responsável por toda a sapiência dos economistas modernos que pretendem provar a eternidade e a harmonia das relações sociais atualmente existentes. Segundo Marx, por esquecer-se desta diferença essencial, a economia política não concebe que cada época histórica é regida por leis e determinações específicas, correspondentes ao desenvolvimento das forças produtivas humanas em um estágio social historicamente determinado, e que, portanto, o modo como compreendem a produção geral se trata apenas do processo de abstração racional realizado pelo pensamento, que permite apreender as determinações que valem somente para delimitar os traços comuns a todas as épocas e evitar a repetição, mas que de forma nenhuma correspondem a uma forma específica da produção humana. Foi precedendo desta concepção da produção em geral, que a economia política compreendeu ou supôs compreender, as condições gerais de qualquer produção, isto é, as [...] condições sem as quais a produção não é possível [...], bem como as [...] condições que favorecem mais ou menos o desenvolvimento da produção, como, por exemplo, o 10

estado social progressivo ou estagnado de Adam Smith [...], que parte do pressuposto de que [...] um povo industrial encontra-se no apogeu de sua produção no próprio momento em que, de certo modo, atinge o seu apogeu histórico [...]. Quanto a isso Marx argumenta que [...] de fato, um povo está no seu apogeu industrial quando não é ainda o lucro, mas a procura do ganho, que é tida como essencial [...] (MARX, 2003, p. 229-230, grifo nosso). Para Marx o problema maior suscitado pelo fato da economia política partir das categorias gerais e comuns, se encontra na forma como os economistas apresentam a produção em oposição à distribuição. Para eles os economistas a produção se apresenta [...] como que fechada em leis naturais, eternas, independentes da história [...], já a [...] distribuição, pelo contrário é entendida como um momento em que os homens permitir-seiam agir com muita arbitrariedade [...] (MARX, 2003, p.230). Trata-se, sem dúvida, de um inquietante encadeamento, o qual Marx se dedica a desconstruir demonstrando como a distribuição se apresenta como um momento constitutivo da produção real de vida dos homens. Segundo este pensador, é a organização dos indivíduos no processo de produção material de suas vidas sob uma determinada processualidade histórica que determina o modo como estes participam da distribuição dos produtos socialmente produzidos. Porém, a interconexão real destes dois momentos em que cabe à produção o momento predominante não se configura, para Marx, como uma arbitrariedade concebida pelo pensamento que pensa a si mesmo, muito pelo contrário, ela corresponde às relações reais de produção historicamente construídas, isto é, se configura como um momento unitário do processo de desenvolvimento histórico e social da prática humana. Ao conceber as condições gerais da produção, a economia política [...] reduz-se a algumas determinações muito simples repisadas em insípidas tautologias [...] (MARX, 2003, p.228). O fato de não apreender corretamente as leis e determinações específicas de cada época, de cada estágio da produção humana, sobre bases econômicas historicamente determinadas, levou os economistas a cair em alguns equívocos. Marx demonstra como eles partem da concepção de fatores abstratos e gerais (por exemplo, a propriedade e relações jurídicas historicamente construídas pelos homens), para concebê-los como leis naturais e determinações de uma sociedade específica, eternalizando assim, o capital, que é na realidade produto histórico da atividade humana e por isso, transitório. 11

Os economistas, partindo da concepção das categorias econômicas em geral, compreendem a relação geral entre a produção, a distribuição, a troca e o consumo. Como Marx demonstra, há no modo como os economistas concebem estas categorias gerais, fundamentos silógicos, porém, o silogismo não representa de maneira alguma a processualidade real, tão pouco se encontra fundamentado sobre uma determinada materialidade histórica. Logo, ao ser concebido por Marx por uma perspectiva crítica, tal encadeamento tem evidenciada sua insustentabilidade e invalidez. Se o ponto de partida e de permanência da economia política foram sempre as categorias econômicas em geral, a apreensão das determinações específicas, bem como das legalidades próprias das relações burguesas de produção, puderam ser concebidas apenas de forma aparente pelos economistas. Ou seja, o fato das categorias específicas não terem sido apreendidas em sua essência por estes, enquanto determinações correspondentes à historicidade dos indivíduos produtores, não os permitiram conceber tais categorias [...] como formas de ser, determinações de existência [...] (MARX, 2003, p.255), e, portanto, pertencentes ao movimento real das determinações categoriais históricas, que somente podem ser apreendidas em sua materialidade pelo pensamento, mediante uma permanente crítica conscienciosa das relações sociais de produção e reprodução da vida na sociabilidade burguesa. Esta problemática se torna mais evidente, quando Marx concebe a forma como os economistas se propuseram a analisar em sua forma geral a relação entre produção, distribuição, troca e consumo. Aliás, relação aparente, pois na medida em que concebem estas categorias como que fechadas em leis naturais, as mesmas acabaram por ser concebidas de forma separada e independentes entre si, bem como de sua base econômica material, passando a representar simplesmente um silogismo-modelo mistificado. Observemos [...] os diversos tópicos de que os economistas acompanham a produção [...] (MARX, 2003, p.232). Ainda que extensiva a citação, apresentaremos esta problemática tal como Marx se propõe a demonstrar criticamente: Na produção, os membros da sociedade adaptam (produzem, dão forma) os produtos da natureza em conformidade com as necessidades humanas; a distribuição determina a proporção em que o indivíduo participa na repartição desses produtos; a troca obtém-lhe os produtos particulares em que o indivíduo 12

quer converter a quota-parte que lhe é reservada pela distribuição; no consumo, finalmente, os produtos tornam-se objetos de prazer, de apropriação individual. A produção cria os objetos que correspondem às necessidades; a distribuição reparte-os segundo leis sociais; a troca reparte de novo o que já tinha sido repartido, mas segundo as necessidades individuais; no consumo, enfim, o produto evade-se desse movimento social, torna-se diretamente objeto e servidor da necessidade individual, que satisfaz pela fruição. A produção surge assim como ponto de partida, o consumo como o ponto de chegada, a distribuição e a troca como meio-termo que, por seu lado, tem um duplo caráter, sendo a distribuição o momento que tem por origem a sociedade e a troca, o momento que tem por origem o indivíduo. Na produção o indivíduo objetiva-se, e no indivíduo subjetiva-se o objeto; na distribuição é a sociedade, sob a forma de determinações gerais dominantes, que faz o papel de intermediária entre a produção e o consumo; na troca a passagem de uma a outra é assegurada pela determinação contingente do indivíduo. [...] produção, distribuição, troca e consumo formam assim (segundo a doutrina dos economistas) um silogismomodelo; a produção constitui o geral, a distribuição e a troca, o particular, o consumo, o singular para o qual tende o conjunto. Trata-se sem dúvida, de um encadeamento, mas muito superficial (MARX, 2003, p.232). Marx diferentemente dos economistas, compreende que a produção é imediatamente consumo, e o consumo é imediatamente produção. O consumo é concebido pelo pensamento marxiano em seu duplo caráter; subjetivo e objetivo. O consumo subjetivo diz respeito segundo Marx, ao processo eterno de produção da vida, em que o indivíduo desenvolve suas faculdades ao produzir, ao mesmo tempo em que as consome. O homem, ao satisfazer suas necessidades essencialmente humanas, consome suas capacidades físicas, mentais e espirituais em um processo em si diverso e unitário de desenvolvimento e consumo destas capacidades no ato de produção. O consumo objetivo se realiza por meio dos meios de produção empregados no processo da produção. Assim como no processo de apropriação da matéria-prima, que se constitui enquanto elementos que vão sendo desgastados e utilizados para o processo de efetivação da vida humana. [...] Portanto, o ato de produção é, em todos os seus momentos e ao mesmo tempo, um ato de consumo [...] (MARX, 2003, p. 234). Mas o ato de consumo também se concretiza como um ato de produção, pois na medida em que o indivíduo consome e desenvolve suas forças corporais no ato da produção, para satisfazer suas necessidades, há o carecimento de alimentar-se, produzir-se enquanto ser humano, enquanto ser produtor/consumidor e consumidor/produtor. Esta 13

processualidade se efetiva enquanto momento diverso de uma unidade indissociável; produção consumidora (MARX, 2003, p. 235). Segundo Marx, a economia política apreende este movimento unitário determinado de forma dissociada, em que o ato de objetivar-se em si humano é concebido como consumo produtivo, e o processo em que o objeto criado se personifica mediante o consumo realizado por seu criador se manifesta enquanto uma segunda produção, resultante da destruição do primeiro produto. Ainda que esta produção consumidora seja essencialmente diferente da produção propriamente dita, ambas não deixam de constituir uma unidade entre produção e o consumo (MARX, 2003, p.235). Nesse sentido, para Marx o consumo produz duplamente a produção, primeiro porque somente através do consumo é que o objeto se torna produto, efetiva seu caráter de produção efetivada que satisfaz pelas suas especificidades uma necessidade humana. Enquanto o produto não se concretiza enquanto objeto consumido, o mesmo não cumpre seu caráter efetivo de produto, pois, [...] a produção não se desenvolveu enquanto atividade objetivada, mas como mero objeto para o sujeito ativo [...] (MARX, 2003, p. 236). Segundo, o consumo cria a necessidade de uma nova produção. O ato de consumir que é ao mesmo tempo um ato de produção, pressupõe que o sujeito ativo que produz, o faz usando objetos que já existiam no plano ideal, que por seu turno, criam a necessidade de outros objetos, e os criam, pela carência humana e necessidade humana. É no consumo de suas capacidades corporais na interação com sua base objetiva que o homem se apropria dos elementos da natureza tais como eles se apresentam, mas é no processo de consumo/produção destes elementos em sua forma ainda natural, que o homem lhe dá a forma especificamente humana. As necessidades humanas são determinações que emergem do processo da produção e, por conseguinte, do consumo mediante o trabalho dos elementos da natureza. [...] Ora o consumo reproduz a necessidade [...] (MARX, 2003, p. 236), na medida em que, permitindo a satisfação das necessidades humanas essenciais, inerentes à condição de ser social ativo, possibilita a apropriação por parte deste da sua base material para transformar seus objetos em objetos úteis, nesse processo novas necessidades vão emergindo e carecendo de serem supridas. 14

Do ponto de vista da produção, Marx afirma que este duplo caráter corresponde a uma interrelação permanente em que a produção fornece ao consumo seu objeto, mas não se trata de um objeto em geral. A produção se efetiva em objetos determinados que satisfaçam por sua especificidade as necessidades humanas determinadas. [...] a fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, comida com faca e garfo, não é a mesma fome que come carne crua servindo-se das mãos, das unhas, dos dentes [...] (MARX, 2003, p.236). Ao satisfazer necessidades determinadas, a produção determina também a forma de consumo, não unicamente de forma objetiva, mas também subjetiva, cria assim também o consumidor. Portanto, [...] a produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto [...] (MARX, 2003, p. 237). O fato de que esta unidade de diversos, em que a produção mantém seu caráter de categoria predominante na sociedade burguesa nos apareça de forma deturpada em que a realização de um se apresente de forma dissociada da realização do outro, reside no fato de que: [...] na sociedade a relação entre o produtor e o produto, quando este em último se considera acabado, é uma relação exterior, e o retorno do produto ao sujeito depende das relações deste com os outros indivíduos [...]. Não se torna imediatamente proprietário. Tanto mais que a imediata apropriação do produto não é o objetivo do produtor ao produzir em sociedade. Entre o produtor e os produtos interpõe-se a distribuição, que obedecendo às leis sociais determina a parte que lhe pertence na totalidade dos produtos, colocando-se assim entre a produção e o consumo (MARX, 2003, p.239). Para Marx, a distribuição enquanto categoria econômica se expressa como um momento da produção, que de forma nenhuma, como pregam os economistas, assume a forma de uma categoria autônoma, e, portanto, dissociada da sua eterna ligação com a produção momento predominante. Não podendo jamais ser considerada de forma isolada pelo processo de análise e apreensão real das bases econômicas, realizado pelo pensamento. A produção enquanto momento predominante é quem determina a distribuição enquanto distribuição dos instrumentos de produção e distribuição dos membros da sociedade pelos diferentes gêneros de produção (MARX, 2003, p.242). Mas pode ocorrer como afirma Marx momentos históricos no caso das conquistas de territórios 15

determinados em que a distribuição aparentemente mas só no plano da aparência esse processo ocorre, pois a distribuição sempre corresponde a uma forma determinada de produção social determina a produção, mas a questão em saber que relação se estabelece entre a distribuição e a produção que ela determina depende da própria produção (MARX, 2003, p.242). O entendimento de que entre as categorias econômicas de produção, distribuição, troca e consumo não se efetivam nenhuma dicotomia ou autonomia singular de uma sobre a outra, não se expressa como mero fenômeno do pensamento de Marx, é partindo das relações sociais de produção, de suas conexões e determinações reais que este pensador apreende o conjunto de elementos gerais que compõe a base econômica de uma determinada processualidade histórica. É somente após a apreensão das determinações gerais, que o concreto pensado respeitando a imanência do objeto real consegue realizar o caminho de volta, e conseguintemente, conceber as categorias simples que formam a totalidade da base econômica de um período histórico determinado, com suas particularidades e especificidades determinantes. Foi somente por este processo de análise que Marx concebeu no pensamento o movimento real tal como ele se apresentava nas suas contradições e potencialidades ativas, e somente assim pode também, compreender o lugar que cada categoria econômica ocupou historicamente no seio das relações sociais de produção e reprodução da vida material. Coube à produção, no pensamento concreto de Marx, o momento predominante exatamente porque assim esta se apresenta concretamente, enquanto momento de afirmação da prática humana e das relações sociais de produção e reprodução. Não é a economia simples e pura, enquanto ciência singular burguesa o fundamento das análises de Marx, mas pelo contrário, seu ponto de partida é a totalidade do ser social, que se produz e reproduz de formas historicamente determinadas, e nesse processo contrai relações que independem de sua mera vontade, mas que mesmo assim, realizam um papel importante no processo de sua afirmação objetiva e social. Não é o econômico que determina as relações de produção social da vida. O fato dele em um estágio específico se apresentar como momento preponderante, deve-se somente à forma como se constituíram historicamente as relações entre os indivíduos sociais produtores, que 16

produzindo socialmente puderam criar potencializar e constituir a base econômica de um período histórico determinado. Portanto, também ao compreender a interrelação entre a troca e a produção, Marx reconhece a produção enquanto momento predominante. Em que a troca assume também sua importância enquanto intermediária entre a produção e a distribuição que ela determina tal como o consumo. Porém na medida, por outro lado, em que este último surge como um dos fatores da produção, a troca constitui manifestamente em um momento da produção. A troca se constitui enquanto momento da produção, por exemplo, na troca de atividade e de capacidades que tem lugar na própria produção, mas não só neste, em todas as relações de troca pressupõe-se que tenha se estabelecido as relações de produção, pois uma troca de nenhum produto não é uma troca, e para seu desenvolvimento efetivo na sociabilidade capitalista pressupõe-se uma produção determinada que se mantenha como momento preponderante, enquanto base que fundamenta a totalidade orgânica das categorias econômicas. Marx ao dar início à formação da sua própria intelecção de mundo a partir de meados de 1843 rompeu definitivamente com todas as amarras economicistas e idealistas de seu tempo. Sua ruptura se efetivou em concomitância com a constituição de uma forma cientificamente nova de se conceber as determinações e categorias econômicas, enquanto elementos essenciais para concepção das formas de ser e existir do ser social em épocas historicamente determinadas. O fato da [...] crítica da economia marxiana durante toda a sua realização estar penetrada por um espírito crítico científico que jamais renuncia a esta consciência e visão crítica, na verificação de todo fato [...] (LUKÁCS, 1979, p.24), possibilitou a Marx conceber, diferentemente dos seus predecessores, a historicidade dos [...] indivíduos reais, em suas ações práticas e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por ele já encontradas, como as produzidas por sua própria ação [...] (MARX, 1987, p.26). Trata-se de uma concepção que apreendeu a sociabilidade humana em seu decurso histórico real, isto é, em condições sociais e reais, que independem de mera vontade dos indivíduos sociais para seguir seu curso processual. 17

São, portanto, pressupostos reais, que partem da vida real em sua forma representativa imediata, mas que partindo daí vão para além, no sentido de compreender a essência de cada fato, isto é, compreender a essência da totalidade do ser social em suas relações materiais de produção e reprodução da vida, por meio de uma cientificidade real, positiva, correspondente à atividade prática e ao processo prático de desenvolvimento dos homens. Parte-se do processo de vida real dos indivíduos e a ele se retorna. Este caminho reflexivo e expositivo em Marx se configurou entre seus seguidores como algo não muito bem compreendido e por vezes demasiadamente simplificado. Fato que demonstra e afirma a necessidade do máximo cuidado que devemos ter ao tentarmos expor a forma metodologicamente nova da cientificidade marxiana, bem como o trajeto real de sua conscienciosa reflexão crítica, comprovando que, de fato, [...] não há estrada real para a ciência, e só tem probabilidade de chegar aos seus cimos luminosos aqueles que enfrentarem a canseira para galgá-los por veredas abruptas [...] (MARX, 2006, p.31). Marx inicia sua exposição crítica acerca do método de análise da economia política afirmando que: Quando consideramos um determinado país do ponto de vista da economia política, começamos por estudar a sua população, a divisão desta em classes, a sua repartição pelas cidades, pelo campo e à beira-mar, os diversos ramos da produção, a exportação e a importação, a produção e o consumo anuais, os preços das mercadorias, etc. (MARX, 2003, p.247, grifo nosso). Porém, segundo o pensador: Parece que o melhor método será começar pelo real e pelo concreto, que são a condição prévia e efetiva; assim, em economia política, por exemplo, começar-seia pela população, que é a base e o sujeito do ato social de produção como um todo. No entanto, numa observação atenta, apercebemo-nos de que há aqui um erro. A população é uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as classes de que se compõe. Por seu lado, essas classes são uma palavra oca se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo, o trabalho assalariado, sem o valor, o dinheiro, sem o preço, etc., não é nada (MARX, 2003, p.247). Marx esclarece como teríamos uma visão caótica do todo se começássemos pela totalidade na sua representação imediata (como, por exemplo, a população). Seria necessário, primeiramente, concebermos esta totalidade caótica e imediata através de uma 18

abstração geral racional, posteriormente, deveríamos seguir formulando abstrações cada vez mais simples, e análises mais precisas, para então, conseguirmos chegar aos conceitos mais simples. Ou seja, [...] do concreto figurado passaríamos a abstrações cada vez mais delicadas até atingirmos as determinações mais simples [...] (MARX, 2003, p.247). Porém, ainda que este caminho nos permitisse conceber corretamente este todo caótico, a essência desta rica totalidade permaneceria desconhecida, seu real conhecimento só se tornaria possível se, partindo daqui caminhássemos em sentido contrário até chegarmos finalmente, e de novo, à população, [...] que não seria, desta vez, a representação caótica do todo, mas uma rica totalidade de determinações numerosas [...] (MARX, 2003, p.247). Segundo Marx, a primeira via foi a que a economia política adotou. Isso significa que economistas começaram: [...] sempre por uma totalidade viva: população, Nação, Estado, diversos Estados, mas acabam sempre por formular, através da análise, algumas relações gerais abstratas determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor, etc. A partir do momento em que esses fatores foram mais ou menos fixados e teoricamente formulados, surgiram sistemas econômicos que, partindo de noções tais como trabalho, a divisão do trabalho, a necessidade, o valor de troca, se elevavam até o Estado, as trocas internacionais e o mercado mundial. Este segundo método é evidentemente o correto (MARX, 2003, p.248). De acordo com Marx, se é verdade que a economia política conseguiu conceber em certa medida a totalidade categorial das determinações gerais da produção humana de vida em sua temporalidade, não é menos verdade que ao seguir na efetivação deste decurso metodológico através do pensamento, esta permaneceu continuamente fundamentada pelas limitações próprias de toda ciência particular, que correspondem à fragmentação de suas análises e, por conseguinte, à impossibilidade objetiva de compreensão crítica e conscienciosa das determinações do ser social. Partindo sempre de uma totalidade viva os economistas formularam, através da análise, algumas relações abstratas determinantes. No entanto, Marx aponta que apesar de ter iniciado em certa medida, o processo de apreensão das relações de produção humana, os economistas não conseguiram compreender a interconexão destas determinações com o processo de desenvolvimento histórico e real da prática dos homens. Trata-se como afirmou 19

Lukács, de um isolamento dos fenômenos econômicos puros, e da separação brutal entre estes e as relações de produção de vida dos indivíduos sociais. Marx ao criticar o método de estudo da economia política, demonstra o porquê foram concebidas algumas lacunas e falhas no seio desta ciência particular durante suas perscrutações. Mas não se trata apenas de uma demonstração crítica e conscienciosa, ele instaura ao mesmo tempo, uma nova forma de cientificidade, que evidencia a subsunção do pensamento à lógica específica do objeto de estudo (a sociedade), no seu processo de apropriação da historicidade do ser social. Nesse processo, as construções abstratas realizadas pelo pensamento o permitem conceber as categorias econômicas enquanto momentos da totalidade do ser social. O movimento em que o pensamento, parte da totalidade viva imediata, e formula a abstração geral do todo caótico por meio de análises conscienciosas, realizando a construção de abstrações simples, o permite apreender [...] as diferentes formas de desenvolvimento e de perquirir a conexão íntima que há entre elas [...] (Marx, 2004, p. 21). Este movimento efetivado pelo pensamento se configura, portanto, segundo Marx, como caminho correto a ser seguido para apreensão da realidade historicamente posta. Porém, ao chegarmos a esta totalidade corretamente concebida, não mais em sua forma caótica, é preciso realizar o caminho de volta. Partirmos da totalidade corretamente concebida para apreender pelo pensamento, a sua essência, bem como os elementos vivos que a compõem. Ou seja, [...] o primeiro passo reduziu a plenitude da representação a uma determinação abstrata, pelo segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pela via do pensamento [ ] (MARX, 2003, p.248). Exatamente por conceber que as determinações do movimento real se originavam no pensamento, isto é, de que era no pensamento que se encontrava o processo de gênese da processualidade histórica, foi que Hegel se viu limitado diante de alguns problemas reais humanos. Se no lugar da historicidade real e concreta do ser social, Hegel concebeu a completicidade e conclusividade do decurso histórico real estritamente no âmbito do espírito absoluto, isso se deveu ao fato de, em suas análises e abstrações ideais não ter compreendido que o [...] concreto é concreto por ser síntese de múltiplas determinações, logo, unidade da diversidade [ ] e [...] por isso um resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e, portanto igualmente o ponto da representação 20