Uma visão humanista do judaismo



Documentos relacionados
f r a n c i s c o d e Viver com atenção c a m i n h o Herança espiritual da Congregação das Irmãs Franciscanas de Oirschot

Estudo de Caso. Cliente: Rafael Marques. Coach: Rodrigo Santiago. Duração do processo: 12 meses

país. Ele quer educação, saúde e lazer. Surge então o sindicato cidadão que pensa o trabalhador como um ser integrado à sociedade.

Roteiro VcPodMais#005

Os desafios do Bradesco nas redes sociais

difusão de idéias EDUCAÇÃO INFANTIL SEGMENTO QUE DEVE SER VALORIZADO

Material: Uma copia do fundo para escrever a cartinha pra mamãe (quebragelo) Uma copia do cartão para cada criança.

LÍDER: compromisso em comunicar, anunciar e fazer o bem.

Há 4 anos. 1. Que dificuldades encontra no seu trabalho com os idosos no seu dia-a-dia?

Atividade extra. Fascículo 1 História Unidade 1 Memória e experiência social. Questão 1. Ciências Humanas e suas Tecnologias História 39

Os encontros de Jesus. sede de Deus

Freelapro. Título: Como o Freelancer pode transformar a sua especialidade em um produto digital ganhando assim escala e ganhando mais tempo

FORMAÇÃO PLENA PARA OS PROFESSORES

DISCURSO SOBRE LEVANTAMENTO DA PASTORAL DO MIGRANTE FEITO NO ESTADO DO AMAZONAS REVELANDO QUE OS MIGRANTES PROCURAM O ESTADO DO AMAZONAS EM BUSCA DE

Dedico este livro a todas as MMM S* da minha vida. Eu ainda tenho a minha, e é a MMM. Amo-te Mãe!

John Locke ( ) Colégio Anglo de Sete Lagoas - Professor: Ronaldo - (31)

Por uma pedagogia da juventude

Aula 5.1 Conteúdo: As grandes Religiões de matriz ocidental Judaísmo Cristianismo Islamismo ENSINO RELIGIOSO CONTEÚDO E HABILIDADES

Hiperconexão. Micro-Revoluções. Não-dualismo

Cinco principais qualidades dos melhores professores de Escolas de Negócios

Redação do Site Inovação Tecnológica - 28/08/2009. Humanos aprimorados versus humanos comuns

O sucesso de hoje não garante o sucesso de amanhã

GRITO PELA EDUCAÇÃO PÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO

Rio de Janeiro, 5 de junho de 2008

Jefté era de Mizpá, em Gileade, terra de Jó e Elias. Seu nome (hebraico/aramaico - יפתח Yiftach / Yipthaχ). Foi um dos Juízes de

Shusterman insere cultura pop na academia

Respostas dos alunos para perguntas do Ciclo de Debates

Desvios de redações efetuadas por alunos do Ensino Médio

O que a Bíblia diz sobre o dinheiro

E quando Deus diz não?

Como aconteceu essa escuta?

Guia Prático para Encontrar o Seu.

Veículo: Site Estilo Gestão RH Data: 03/09/2008

Gestão diária da pobreza ou inclusão social sustentável?

Os encontros de Jesus O cego de nascença AS TRÊS DIMENSÕES DA CEGUEIRA ESPIRITUAL

Blog + dinheiro + mulheres + sucesso social (mini e-book grátis)

Para a grande maioria das. fazer o que desejo fazer, ou o que eu tenho vontade, sem sentir nenhum tipo de peso ou condenação por aquilo.

Colégio La Salle São João. Professora Kelen Costa Educação Infantil. Educação Infantil- Brincar também é Educar

Produtividade e qualidade de vida - Cresça 10x mais rápido

Aprendendo a ESTUDAR. Ensino Fundamental II

Músicos, Ministros de Cura e Libertação

CURSOS PRECISAM PREPARAR PARA A DOCÊNCIA

Como a comunicação e a educação podem andar de mãos dadas 1

PREFÁCIO DA SÉRIE. estar centrado na Bíblia; glorificar a Cristo; ter aplicação relevante; ser lido com facilidade.

GÍRIA, UMA ALIADA AO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA ESTRANGEIROS Emerson Salino (PUC-SP) João Hilton (PUC/SP)

Uma leitura apressada dos Atos dos Apóstolos poderia nos dar a impressão de que todos os seguidores de Jesus o acompanharam da Galileia a Jerusalém,

Comentário ao Documentário Portugal Um Retrato Social

Você é comprometido?

Duas formas de construir a vida. Sabedoria. Insensatez

O papel do CRM no sucesso comercial

medida. nova íntegra 1. O com remuneradas terem Isso é bom

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS. UNICEF 20 de Novembro de 1959 AS CRIANÇAS TÊM DIREITOS

Quanto vale tudo isso?

Era uma vez, numa cidade muito distante, um plantador chamado Pedro. Ele

Você conhece a Medicina de Família e Comunidade?

Entrevista da Professora Rosa Trombetta à rádio Jovem Pan.

Servimo-nos da presente para apresentar os projetos e programas oferecidos pela Israel Operadora.

A OFERTA DE UM REI (I Crônicas 29:1-9). 5 - Quem, pois, está disposto a encher a sua mão, para oferecer hoje voluntariamente ao SENHOR?

Vamos fazer um mundo melhor?

Juniores aluno 7. Querido aluno,

Palestra tudo O QUE VOCE. precisa entender. Abundância & Poder Pessoal. sobre EXERCICIOS: DESCUBRA SEUS BLOQUEIOS

No dia seguinte, viu João a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!

Tendo isso em conta, o Bruno nunca esqueceu que essa era a vontade do meu pai e por isso também queria a nossa participação neste projecto.

Projeto Pedagógico Institucional PPI FESPSP FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO PROJETO PEDAGÓGICO INSTITUCIONAL PPI

Todos Batizados em um Espírito

Como superar o medo e a vergonha de vender

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

Patrocínio Institucional Parceria Apoio

ABCEducatio entrevista Sílvio Bock

CONCEPÇÃO E PRÁTICA DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: UM OLHAR SOBRE O PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO RAFAELA DA COSTA GOMES

Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Grupo de Pesquisa em Interação, Tecnologias Digitais e Sociedade - GITS

A Epistemologia de Humberto Maturana

A Tua Frase Poderosa. Coaches Com Clientes: Carisma. Joana Areias e José Fonseca

Fonte:

A LIBERDADE COMO POSSÍVEL CAMINHO PARA A FELICIDADE

MÓDULO 5 O SENSO COMUM

PAR. Torne-se um PAR para que sua vida seja ÍMPAR ACELBRA-RJ

Gui Coaching. Despertando consciência e habilidades

Análise e Desenvolvimento de Sistemas ADS Programação Orientada a Obejeto POO 3º Semestre AULA 03 - INTRODUÇÃO À PROGRAMAÇÃO ORIENTADA A OBJETO (POO)

Lev Semenovich Vygotsky, nasce em 17 de novembro de 1896, na cidade de Orsha, em Bielarus. Morre em 11 de junho de 1934.

Encontro Nacional Jovem de Futuro 2013: conexões e troca de experiências

O Ano Novo das Árvores

O relacionamento amoroso em «ARRET»

COMO FAZER A TRANSIÇÃO

1) TAMANHO DO CONTENCIOSO GERAL:

COMPETÊNCIAS E SABERES EM ENFERMAGEM

O conceito de probabilidade

APRENDER A LER PROBLEMAS EM MATEMÁTICA

COMO INVESTIR PARA GANHAR DINHEIRO

Estudos bíblicos sobre liderança Tearfund*

produtos que antes só circulavam na Grande Florianópolis, agora são vistos em todo o Estado e em alguns municípios do Paraná.

É POSSÍVEL EMPREENDER MEU SONHO? Vanessa Rosolino People Coaching & Desenvolvimento Organizacional

O Pequeno Livro da Sabedoria

Senhor Ministro da Defesa Nacional, Professor Azeredo Lopes, Senhora Vice-Presidente da Assembleia da República, Dra.

BRINCAR É UM DIREITO!!!! Juliana Moraes Almeida Terapeuta Ocupacional Especialista em Reabilitação neurológica

Informativo G3 Abril 2011 O início do brincar no teatro

O que são Direitos Humanos?

Se você acredita que as escolas são o único e provável destino dos profissionais formados em Pedagogia, então, está na hora de abrir os olhos

AS LEIS DE NEWTON PROFESSOR ANDERSON VIEIRA

Transcrição:

Uma visão humanista do judaismo Entrevista com Bernardo Sorj Bernardo Sorj é professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Socais. Uruguaio de nascimento, concluiu o curso de graduação em Historia e Sociologia e o mestrado em Sociologia na Universidade de Haifa (Israel), entre 1969 e 1973. Realizou o doutorado em Sociologia na Universidade de Manchester (Inglaterra), concluído em 1976. Foi professor visitante em várias universidades europeias e dos Estados Unidos, ocupando, entre outras posições, as cátedras Sérgio Buarque de Holanda da Maison des Sciences de L Homme e Simón Bolívar do Institut des Hautes Études de l Amérique Latine (IHEAL), em Paris (França). É autor de 23 livros, publicados em varias línguas, sobre temas de teoria social, América Latina, democracia e judaísmo. No dia 15 de março de 2010, Bernardo Sorj esteve em Porto Alegre por ocasião do lançamento do seu livro Judaísmo para todos, quando concedeu esta entrevista a Ilton Gitz e Anita Brumer. WebMosaica: Desde 1983 você tem publicado artigos e livros sobre judaísmo, tratando das contribuições de intelectuais judeus do século XIX, sionismo, identidade dos judeus da Diáspora e judaísmo secular. No livro Judaísmo para todos, publicado no Brasil em 2010, você propõe um judaísmo humanista e, ao mesmo tempo, secular. O que o levou a escrever este livro? Bernardo Sorj: O principal motivo foi a necessidade de dar vazão a uma inquietude interna, a da procura de respostas a perguntas produzidas pela insatisfação com minha própria visão do judaísmo. Formado na tradição ortodoxa numa família que foi profundamente afetada pelo holocausto, mergulhei posteriormente no sionismo-socialismo e vivi cinco anos em Israel, onde estudei história judaica. A partir de certo momento, percebi que meu judaísmo tinha como referência básica o passado. Um judaísmo que não está enraizado no presente e não encara o futuro é um judaísmo empobrecido, assombrado por memórias e culpas, que tem muito pouco a comunicar às novas gerações. O livro é um esforço de acerto de contas com minha visão de judaísmo, tanto com o judaísmo religioso como o secular, valorizando o pluralismo e as tendências inovadoras. A minha geração pensava que a pergunta o que é ser judeu só tinha uma única resposta. Nos tempos atuais, que assumem o pluralismo e o respeito à individualidade, a pergunta passa a ser: que judeu eu quero ser?

[124] WebMosaica: Qual sua visão de um judaísmo humanista? Bernardo Sorj: O judaismo humanista pode ser um antídoto para a irracionalidade e o dogma, vinculando a nossa tradição particular à humanidade e a valores humanistas; oferecer raízes sem que sejam sufocantes, criar comunidades sem que sejam exclusivistas e excludentes; recordar o holocausto e as perseguições aos judeus sem associá-los a sentimentos de isolamento; apoiar o Estado de Israel sem negar os valores e a autonomia da vida na Diáspora; e transformar a identidade judaica em uma fonte de orgulho e, ao mesmo tempo, reconhecer a dignidade e o valor de cada ser humano e de cada cultura. WebMosaica: Qual a importância de disseminar o judaísmo para o grande público? Bernardo Sorj: A saída do gueto, assim como a saída do Egito, é tanto um fato físico como espiritual. As muralhas foram derrubadas, mas ainda mantemos muitos dos temores e preconceitos construídos em períodos de perseguições e isolamento. Explicar o que é o judaísmo para o grande público é um processo de cura mútuo. Para os judeus, se trata de perder o medo de afirmar e apresentar o judaísmo em forma aberta para toda a sociedade; para o público não judeu, de tomar contato com uma cultura que lhe é desconhecida, e, por isso, associada a preconceitos. WebMosaica: Em que período começaram as principais transformações da comunidade judaica? Bernardo Sorj: As comunidades judias sempre viveram processos de transformações. O judaísmo nunca parou de mudar. As mudanças na comunidade judaica são lentas, divididas entre a consciência de que é preciso mudar e o medo, natural, produzido pelas novas formas de viver o judaísmo. Quando se compara a comunidade judaica de hoje com a dos imigrantes de uma ou duas gerações atrás, vê-se que as mudanças foram enormes. O desafio é avançar mais rapidamente, pois a passagem do tempo não nos favorece, já que os indivíduos mudam muito mais rapidamente que as instituições. Nos tempos modernos estas mudanças transformaram o judaísmo numa cultura plural, onde convivem as mais diversas correntes religiosas e não religiosas. Este pluralismo dá uma enorme vitalidade ao judaísmo e o respeito e a promoção da diversidade devem ser uma constante na vida comunitária judaica. WebMosaica: Qual a perspectiva das mudanças na comunidade judaica para o futuro? Você acredita que ainda pode haver um resgate das tradições? Bernardo Sorj: Esta é uma questão fundamental. Antes de tudo é preciso levar em conta que o judaísmo no século XX se manteve apesar da religião e que o sionismo fundamentalmente foi um fenômeno não religioso e por vezes antirreligioso. A questão central é de conteúdo, que conteúdo nos tempos atuais se dá a esse judaísmo não religioso. É preciso primeiro uma revolução cognitiva, pois o judaísmo não será o mesmo que o de antigamente. Há que se parar de pensar o judaísmo como um problema para o indivíduo ao invés de pensá-lo como uma solução, mais uma, que permite que o indivíduo sinta-se conectado com mundo. As tradições só podem ser resgatadas se formos capazes de atualizá-las. Uma árvore que só tem raízes e não recebe a luz do sol nem enfrenta as inclemências do tempo termina secando. WebMosaica: Como passar o judaísmo para

[125] as novas gerações? Bernardo Sorj: Há leituras praticamente obrigatórias para se entender a condição judaica no século passado, como é o caso da Carta ao meu pai, de Kafka, na qual ele diz: papai, você me levou a uma sinagoga, mas não me contou o que você rezava, e eu fazia de conta que estava rezando. Houve, sem dúvida, uma perda de substância no judaísmo. O judaísmo hoje se transformou profundamente, integrou-se no tecido social e cultural, o que faz necessária sua refundação. Isto já está acontecendo e, por exemplo, nos Estados Unidos, há gente que se preocupa com a diversidade judaica, promovendo comunidades judaicas entre negros e latinos interessados em judaísmo. No Brasil e no Peru há pessoas que se consideram descendentes de judeus e que são rejeitados tanto pelo mundo exterior como pela comunidade judaica. Isto não pode continuar. Temos que aprender a contar essa experiência a nossos filhos e relatar-lhes que existe uma visão diferente do judaísmo; temos que enriquecer novamente o judaísmo, o que não é fácil. Parte da dificuldade está na questão de, por sermos uma geração de filhos de emigrantes, de sobreviventes e de refugiados cujas famílias foram dizimadas no Holocausto, termos uma forte sensibilidade ao sofrimento, inclusive à exclusão e à pobreza, porque a maioria dos nossos pais foi pobre, o que não ocorre com nossos filhos. Hoje, essa experiência judaica não se faz presente. Nós traduzimos o judaísmo como messianismo secular, mas o que significa messianismo atualmente? Há uma forma de recuperar ou traduzir o messianismo para um menino de classe média de Ipanema ou Leblon, no Rio de Janeiro? Por outro lado, continuamos sendo uma minoria cognitiva. Hoje, mesmo os judeus mais assimilados não são parte da maioria; eles não são cristãos e não foram formados dentro de uma cultura dominante. Pelo fato de sermos uma minoria, considero importante que se resgate a riqueza enorme que o judaísmo tem de ver o mundo, recuperando-a e traduzindo-a na forma contemporânea, que deve ser ao mesmo tempo particular e universal, por que se for só universal voltamos ao velho problema de como se consegue ser universal e ao mesmo tempo explicar como este universal está enraizado em um particular que alimenta esse universal. Aqui há um novo desafio, que passa pela educação judaica, o da transmissão de um novo judaísmo que não pode ser um judaísmo fundado no medo do Holocausto, do qual os jovens estão cada vez mais distanciados. Não se trata de banalizar, negar ou esquecer o Holocausto, mas não fazer do judaísmo o judaísmo do Holocausto. Ninguém vai deixar de ser quem é por causa do antissemitismo. Assimilar-se ou não se assimilar não é uma questão de ter medo das consequências, é uma questão de opção pessoal; se algum dia alguém for perseguido por ser judeu, então ele verá o que fazer. A educação judaica é fundamental, mas vive uma crise profunda, pois não tem uma mensagem positiva a transmitir. Tradições que não estão associadas a uma mensagem relevante aos tempos atuais, no melhor dos casos, são uma forma de folclore. A educação judaica deveria possibilitar, aos alunos, refletir sobre as respostas às seguintes questões: O que nos ensina ser judeu? Por que o judaísmo pode ser fonte de orgulho e vitalidade individual? Como relacionar a história com o presente? WebMosaica: Como você vê a relação dos judeus com a sociedade em que vivem? Bernardo Sorj: No Ocidente já somos parte de uma cultura que é uma amálgama das mais diversas tradições. Há elementos da cultura ocidental que não tiveram origem na religião judaica (ou no

[126] cristianismo): democracia, respeito à individualidade e à autonomia moral e opções de cada pessoa, individuais. A cultura moderna transformou e continua a transformar o judaísmo, que por sua vez é um ator ativo na sua conformação. A meu ver, o judaísmo no futuro vai ser uma forma de expressão cultural dentro desta nova cultura ocidental, democrática. Nos Estados Unidos, que tem uma comunidade judaica importante, o judaísmo é parte da cultura americana com uma cara judia. Minha ideia de judaísmo é de interação dos judeus com a cultura local, sua aceitação pela cultura mais ampla e a possibilidade de poder manter diferentes formas de vida comunitária, de coletividade, na qual a prática religiosa ortodoxa exclusionista será minoritária. Para boa parte dos judeus, a questão é como se mantém o judaísmo ao mesmo tempo em que se é parte de uma cultura maior e englobante, um judaísmo em que se entra e se sai. Nós, judeus, precisamos ser mais abertos em relação àqueles que dizem gostei do judaísmo e quero ser judeu. O judaísmo não deve ser um clube fechado em que só se pode sair mas ninguém pode entrar. O judaísmo deve romper com o gueto mental, com fronteiras instransponíveis. WebMosaica: Dentro desta perspectiva, como alguém vira judeu? Bernardo Sorj: Basta ele/ela dizer que quer ser judeu. Se ela/ele quer ser parte de uma comunidade judia então deve escolher aquela com a qual ele/ ela tenha mais afinidades e seja aceito. Boa parte dos judeus da Argentina e do Brasil não frequenta ou participa das instituições judaicas. No Brasil não temos dados estatísticos, mas na Argentina, entre os que se definem como judeus e são filhos de casamentos mistos, 24% tem mães judias e 32% tem pais judeus, ou seja, a paternidade judia leva uma proporção maior de pessoas a se definirem como judeus do que a maternidade judia. Em minha opinião, se alguém se sente judeu, é solidário com os judeus, a origem biológica ou não de pai ou mãe judeus é irrelevante, embora, naturalmente, sejam os filhos de pai ou mãe judeus aqueles que constituem os candidatos naturais a se sentirem judeus. WebMosaica: As instituições não estão preparadas, e se sentem inseguras vivendo o passado. O problema é encontrar o equilíbrio, entre abrir e fechar a porta de entrada ao judaísmo. Até onde se pode ir, o que se precisa manter, o que é ser judeu? Bernardo Sorj: A essência do que é ser judeu é o mesmo que procurar a essência da cebola, tu descascas a cebola e procuras seu núcleo, mas na verdade o núcleo são as diferentes camadas da cebola, não existe uma essência escondida a ser descoberta. Uma das contribuições importantes da antropologia nas últimas décadas foi ter mostrado que as culturas não possuem essências. O tema da essência termina sendo uma questão de poder: quem tem o poder para definir o que seja essencial. WebMosaica: O que significa ser judeu hoje? Bernardo Sorj: Quando meu filho começou a crescer, eu entendi que o judaísmo que eu exprimia não era mais atual, era um judaísmo que dizia respeito a uma juventude vivida em outra época. Eu sou filho de imigrantes e meu filho não teve esse problema, porque, na verdade, a experiência judaica da qual a gente fala muito é justamente aquela da experiência migrante e de certo tipo de judaísmo contra o qual, inclusive, nós reagimos. Hoje não há mais contra o que reagir: o socialismo não está mais na ordem do dia e o sionismo criou o Estado de Israel, uma coisa fundamental para a história judia, mas que também se mostrou

[127] menos glorioso em certos aspectos do que minha geração imaginava que seria. Então, a pergunta é: o que é ser judeu hoje? Minha insatisfação com as instituições da comunidade, cujo enorme mérito eu reconheço, é que elas são conservadoras demais, quiçá, no fundo, mais perdidas do que conservadoras. Elas ficam falando de antissemitismo e procurando traços de antissemitismo em qualquer declaração na mídia, como se isto fosse o substrato sobre o qual se mantém o judaísmo. Então a pergunta sobre o que o judaísmo é hoje tem como resposta que ele não é mais estritamente sionista, ainda que Israel seja importante, e que ele não é mais socialista, porque o socialismo não tem mais a mesma presença na pauta mundial. Por outro lado, o sionismo-socialismo de nossa juventude também, de certa forma, nos permitiu fugir do enfrentamento frontal com a tradição religiosa. É importante repensar tanto as práticas como as crenças associadas à tradição religiosa: os sentidos da redenção messiânica, os ritos de passagem, os casamentos de judeus com não judeus, entre outros aspectos. A religião foi a linguagem na qual se exprimiu a tradição judaica durante boa parte de sua história, mas ela contém muita sabedoria que independe de crenças em Deus ou mandamento divinos, a começar pela regra de ouro de Hillel: Não faças aos outros o que não desejas que façam a ti. WebMosaica: Mas alguém só pode fazer isso se tiver uma enorme bagagem. Entre nós, judeus, há vários nichos, que dão poder a quem define quem pode ou não entrar, e por isso têm interesse em manter-se. Há atividades que são abertas tanto a judeus como a não judeus, no entanto a única porta para o ingresso no judaísmo para não judeus é através da conversão por meio da religião, e mesmo aí há disputas pelo poder de garantir a legitimidade das conversões entre os ortodoxos e os não ortodoxos. Bernardo Sorj: A conversão como meio de entrada no judaísmo deve ser uma das portas, mas não a única. A questão que está em jogo é a revolução cognitiva de percepção, que crie um novo judaísmo sem a visão de um mundo fechado, mas isso não é uma coisa que se faça do dia para noite. Mas este judaísmo está surgindo e vai ser um judaísmo com o qual nossos filhos poderão se identificar sem sentir que existe um conflito entre a celebração de suas raízes e ser parte da humanidade. WebMosaica: No teu livro argumentas que no século XIX e início do século XX houve uma riqueza estupenda do judaísmo exatamente porque ele se propôs a uma quebra com o passado. Mas os intelectuais desse período tiveram uma vida cultural judaica que os instigou a informar, enquanto hoje nós lidamos com jovens que nunca se interessaram por isso. Bernardo Sorj: Reconheço que hoje enfrentamos um risco enorme de transformação do povo judeu numa seita religiosa e de distanciamento daqueles que não se identificam com este judaísmo. O que está em jogo são opções, principalmente das organizações judaicas. E nelas é fundamental o papel dos intelectuais judeus que hoje, em boa parte, se sentem alienados da vida comunitária. Devemos fazer um esforço para pensar que judaísmo desejamos e realizar debates e atividades para todo público interessado, que mostrem um judaísmo aberto ao mundo (como, por exemplo, a comemoração de Rosh Hashaná numa praça pública, onde participem judeus e não judeus). Um judaísmo onde nossos filhos se sintam orgulhosos da cultura judaica como uma forma de expressão cultural que enriquece a cultura brasileira.