Uma Lágrima Salvou-me
ANGÈLE LIEBY com HERVÉ DE CHALENDAR Uma Lágrima Salvou-me Tradução de Maria Lucília Filipe Pergaminho
1 Sozinha na noite Onde estou? Está tudo escuro. Estou no escuro. Uma escuridão total, sem o mínimo matiz, sem a mínima claridade. Não sei se é uma escuridão aterradora ou tranquilizadora. É a mesma da minha infância, quando me fechava num armário para me sentir em segurança e ao mesmo tempo assustada Por mais que olhe com todas as forças, não vejo nada. Nada, senão esta escuridão profunda. Tenho os olhos abertos ou fechados? Não sei. O que aconteceu? Também não sei. Sei apenas que não estou sozinha, oiço alguém ao meu lado. Há uma respiração rápida, como a de um cão depois de um esforço. Será um homem? Um animal? Sinto -me, sobretudo, oprimida. Sinto uma pressão tão forte no peito que tenho de oferecer resistência para respirar. Encho então a caixa torácica e faço tamanho esforço que sinto as costelas estalarem Detenho -me, assustada. Mas esse peso comprime- -me e não me posso deixar esmagar Tenho de lutar para respirar, naquela escuridão absoluta. O que é que se passou? Qual é a explicação para tudo isto? É evidente que algo de grave deve ter acontecido. Tenho de descobrir o que foi. Tenho de me acalmar e refletir. Vim às urgências, lembro -me muito bem. Tinha uma dor de cabeça, uma dor de cabeça horrível que me fez vir ao hospital. Que local há mais seguro do que o hospital? E eis -me aqui na escuridão. Onde estão os médicos? Onde estão as enfermeiras? Onde está Ray? Onde estão os meus parentes? O que é que me esmaga desta maneira? Ofereço resistência, as minhas costelas estalam e já não ouso abdicar, nem resistir Uma Lágrima Salvou-me 11
Na verdade, é como se o hospital me tivesse caído em cima. É isso. É como se tivesse havido um tremor de terra e eu estivesse amortalhada sob toneladas de escombros. Há esta respiração rápida ao lado, a de outro ser humano apanhado também ele na ratoeira, na súbita ruína do mundo. Mas, tirando isso, está tudo calmo. É sempre assim tão tranquilo depois de um sismo? É este o mesmo silêncio que sucede ao alarido das catástrofes? Sem dúvida. Há também uma calma depois da tempestade. O curioso é que, tirando esse peso sobre as minhas costelas, tirando o enigma desta imensa escuridão, sinto -me bem. Em plena forma! De qualquer modo, muito melhor do que quando cheguei com aquela enxaqueca terrível que me apertava o crânio como um torno. Agora não é a cabeça que está comprimida, mas o peito. É angustiante, mas é mais suportável. Tento chamar, mas acho que não me sai da boca qualquer som. Apenas os meus pensamentos ressoam. O ser ao meu lado está também ele mudo. Não fala, nem resmunga. O tempo passa. Tolamente e insensivelmente tento respirar como ele, com o ritmo rápido e mecânico de um cão ofegante. É uma maneira de me ocupar. Canso -me. Continuo oprimida, mas já não faço esforço para respirar. Paciência. Rendo -me. Dormito Sou acordada por vozes. São vozes calmas, acompanhadas de ruídos de passos. Mulheres, homens. Discussões breves, utilitárias. Falam de quartos, de doentes. Já cuidaste do 230? Sorrio interiormente. Uf! As coisas compõem -se! Continuo no hospital e não houve sismo O edifício não ruiu. E eu não estou, com certeza, fechada num armário, estou instalada num quarto, como um doente comum. Mas porque é que estou ainda hospitalizada? Calculo que eles acabam as suas tarefas correntes e vão vir ver -me e abrir -me os olhos. Estes estão fechados, é isso, tal como a minha boca, por uma razão que desconheço. E se for grave? Mas porquê? Não tive nenhum acidente, tinha apenas uma dor de cabeça. Só estou de passagem. É por isso que partilho o quarto com aquele doente que dorme continuamente e respira com uma impressionante regularidade de animal. Estou 12 Angèle Lieby
num estado de semiconsciência e logo que desperte, poderei regressar a casa. Poderei até, talvez, ir dançar, quem sabe? Estarei a sonhar? É uma possibilidade. Será que num sonho nos perguntamos se estamos a sonhar? Sim, parece que sim. Mas um sonho nunca dura muito tempo. O que esperam para me abrir os olhos e soltar o maxilar? O que esperam para me vir ver, em vez de se limitarem a passar? O que esperam para me libertar? E para me explicar tudo? Eles e elas foram -se outra vez embora. Para me ocupar, penso. Lembro -me perfeitamente de tudo o que aconteceu antes de ter acordado nesta noite imensa. Não me esqueci de nada. O guião das últimas horas passa -me pelo espírito com a precisão de um filme num grande ecrã. Por um lado, estou satisfeita por me lembrar tão bem e, por outro, temo já, confusamente, o que me preparo para viver. Uma Lágrima Salvou-me 13