IDENTIDADE DE GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS: a invisibilidade da população trans no Brasil ABSTRACT

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Transcrição:

IDENTIDADE DE GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS: a invisibilidade da população trans no Brasil Emmily Negrão Chagas 1 RESUMO Busca-se neste artigo problematizar a invisibilidade de pessoas travestis e transexuais, e a falta de políticas públicas brasileiras específicas para essa população, que segue excluída da sociedade e tendo seus direitos violados cotidianamente. Para tanto, utiliza-se a pesquisa bibliográfica, apresentando contribuições científicas disponíveis sobre o referido tema. Palavras-chave: Identidade de Gênero; Invisibilidade; Políticas Públicas; Brasil. ABSTRACT This article discuss the invisibility of trangender people and the lack of specific public policies in Brazil for this part of population, which is excluded from society and having their rights violated everyday. For this purpose, bibliographical research is used, presenting scientific contributions available on this theme. Keywords: Gender identity; Invisibility; Public Policies; Brazil. 1 Estudante. Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: emmily.nc@hotmail.com

I. INTRODUÇÃO Entende-se por identidade de gênero a identificação individual com determinado gênero, a qual pode corresponder ou não com o sexo atribuído após o nascimento. Assim, quando discutimos identidade de gênero, temos como protagonistas pessoas travestis e transexuais, que lutam para serem reconhecidas socialmente de acordo com o gênero que se sentem pertencer. A população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) traz consigo um histórico de vulnerabilidade, marginalização e exclusão social. A incessante busca por visibilidade deste segmento, em especial de pessoas transexuais e travestis, vem ganhando cada vez mais força no Brasil. Todavia, mesmo com ganhos nos últimos anos, homens transexuais, mulheres transexuais e travestis continuam vivendo à margem da sociedade, estigmatizados/as e vulneráveis. Seus poucos direitos conquistados são violados cotidianamente, incluindo o direito fundamental de existir, sendo atualmente o Brasil o lugar onde mais se tem casos registrados de assassinatos dessas pessoas. Além de estarem expostas à violência física, a psicológica também está presente no dia a dia dessa população, o que vem agravando os altos índices de adoecimento mental e até de suicídios. Essas violências diárias motivadas por transfobia 2 crescem a cada ano e a invisibilidade dessa população é tão grande que não há, por exemplo, uma política nacional de enfrentamento à LGBTfobia 3 nem uma legislação que criminalize esses crimes de ódio. Destarte, acredita-se que o fato da sociedade repudiar, tentar esconder ou até acabar com a existência dessas pessoas trans vem gerando a falta de políticas públicas específicas para as suas complexas demandas. Através do exposto, o artigo será dividido em dois tópicos: no primeiro, um breve debate sobre a conceituação de gênero e identidade; e no segundo, uma problematização acerca da invisibilidade social de pessoas trans e a escassez de políticas voltadas às necessidades delas. 2 De acordo com Jesus (2012), transfobia trata-se do preconceito e/ou discriminação em função da identidade de gênero de pessoas transexuais ou travestis. 3 LGBTfobia: trata-se do preconceito e/ou discriminação em função da identidade de gênero e/ou orientação sexual de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.

II. GÊNERO E IDENTIDADE Não se nasce mulher, torna-se mulher - Simone Beauvoir Beauvoir (1980), em seu famoso livro O Segundo Sexo, diz que ser mulher não é um dado natural, mas o resultado de uma história. Isto é, não há um destino biológico que defina a mulher como tal, mas sim uma construção histórica que a fez assim. A partir da ideia da autora, se entende que ser mulher ou ser homem faz parte de uma construção social. E mais: é uma condição, algo imposto. O gênero, segundo Scott (1995, p. 74), refere-se a construção de atitudes expectativas e comportamentos, tendo por base o que determina a sociedade define como seus valores. Aprendemos a ser homens e mulheres pela ação da família, da escola de grupos de amigos, das instituições religiosas, do espaço de trabalho, dos meios de comunicação [...]. Gênero diz respeito também ao modo como lidamos ao longo da história e de forma diversa em diferentes culturas, com o poder nas relações interpessoais, hierarquizando e valorizando o masculino em detrimento do feminino. Logo, Beauvoir conceitua a categoria gênero numa perspectiva histórica e social. Seguindo o mesmo pensamento, Meyer (2004, p. 15) afirma que gênero remete a todas as formas de construção social, cultural e linguísticas implicadas com processos que diferenciam mulheres de homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos, distinguindo-os e nomeando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade. Vemos, então, corpos que se vestem de gêneros. A ideia é de as pessoas são fabricadas ou para ser homem ou para ser mulher, de acordo com o que está socialmente estabelecido para o seu sexo biológico. Destarte, para Petry e Meyer (2011, p.195), o gênero, enquanto organizador da cultura, e em articulação com sexualidade, modula o modo heteronormativo de como homens e mulheres devem se comportar, como seus corpos podem se apresentar e como as relações interpessoais podem se constituir, nesses domínios. Ainda de acordo com as autoras, a heteronormatividade visa regular e normatizar modos de ser e de viver os desejos corporais e a sexualidade (2011, p.195).

Essa perspectiva biologicista e determinista de binarismo de gênero, onde só existem duas possibilidades para as pessoas (feminino/fêmea ou masculino/macho) é extremamente problemática por estar naturalizada e normatizada. Vivemos nossas vidas e não nos apercebemos de como este cotidiano está pautado, regulado e normatizado por compreensões generificadas, apreendidas na cultura e assumidas como certas e verdadeiras. Estas concepções generificadas, culturalmente legitimadas e naturalizadas, pautam o sistema heteronormativo que produz comportamentos e corpos, reconhecidos como adaptados pelos discursos psi, e como normais pelos discursos biologicistas. (PETRY e MEYER, 2011, p. 195) O maior problema na naturalização do que é ser homem e ser mulher se dá pelo caráter de normalidade que essa construção social adquiriu, tornando anormais, aos olhos da maioria da população, pessoas que não se enquadram nos papéis que lhes foram atribuídos de acordo com seu sexo biológico. Segundo Woodward (1997) a identidade dá a uma pessoa uma ideia sobre quem ela é, sobre como ela deve se referir aos outros e de como ela se relaciona com o mundo em que vive. Quando falamos de identidade de gênero, temos como protagonistas pessoas travestis e transexuais, que não se identificam com os papéis padronizados de gênero que lhes foram socialmente condicionados. Transexualidade e travestilidade são experiências identitárias, ambas apresentam pessoas que sentem que há uma incompatibilidade psíquica com o corpo físico. Encontram-se conceitos de travestilidade que se divergem. De acordo com Jesus (2012) as travestis nascem com o sexo biológico masculino mas assumem cotidianamente comportamentos femininos, mas não se reconhece como homem ou mulher. Também buscam mudanças corpóreas para terem em seus corpos características físicas do gênero feminino, mas não sentem desconforto com suas genitálias. A transexualidade, por sua vez, pode ser vivenciada por homens e mulheres, e ocorre quando pessoas sentem que seu corpo não está adequado à forma como pensam e se sentem, e querem corrigir isso adequando seu corpo ao seu estado psíquico (JESUS, 2012, p. 9). Essa adequação do corpo físico à psique pode vir através de cirurgias e/ou hormonioterapias. Todavia, o importante é o gênero com o qual a pessoa se identifica, sendo assim, a condição transexual independe de cirurgia de redesignação sexual ( mudança de sexo ).

III. INVISIBILIDADE TRANS E POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL As políticas públicas são ações do Estado que visam a gerências das relações sociais e econômicas que se estabelecem no capitalismo (ARAGUSUKU e LOPES, 2014, p.6). Essas políticas visam assegurar o direito de cidadania para os cidadãos. Questões naturalizadas como a heteronormatividade, o machismo, a LGBTfobia, a misoginia, que imperam na sociedade, têm gerado inúmeras dificuldades para a efetivação das políticas públicas que visam assegurar direitos à população trans. O Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking de país que mais mata pessoas trans (ou percebidas como tais) e não há uma política nacional de enfrentamento à LGBTfobia ou uma lei que criminalize esses crimes motivados por ódio. De acordo com a pesquisa realizada pela Transgender Europe 4, foram registrados 802 homicídios de pessoas trans entre 2008 e 2015 no Brasil. Somente entre outubro de 2015 e setembro de 2016, foram registrados 123 assassinatos no país. Sabe-se, todavia, que esses são apenas os números registrados e que a tendência é ser maior. Podemos somar ainda, as tentativas de homicídio que, segundo a Rede Nacional de Pessoas Trans 5, foram 52 só em 2016. São grandes, também, os números de adoecimentos psicológicos decorrentes do preconceito e exclusão social que pessoas travestis e transexuais lidam cotidianamente. O suicídio ainda está bastante presente na realidade desse grupo social. A Rede Trans Brasil conseguiu catalogar 12 suicídios somente no ano de 2016. É importante destacar um marco histórico no Brasil para as lésbicas, bissexuais, gays, travestis e transexuais, que foi a conquista da Política Nacional de Saúde Integral à População LGBT. Tendo em vista a construção de mais equidade no Sistema Único de Saúde, essa política foi legitimada no âmbito do SUS, pela Portaria nº 2.836 de 1º de dezembro de 2011. Voltando-se também para a saúde de pessoas travestis e transexuais, a política abrange parte de suas complexas e numerosas demandas. O uso do nome social 6, a hormonioterapia e a cirurgia de transgenitalização agora estão garantidos no SUS. 4 Transgender Europe - TGEU: rede europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgênero. 5 A Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (Rede Trans Brasil) é uma instituição nacional que representa, desde 2009, Travestis e Transexuais do Brasil. A rede monitora as violências contra pessoas trans no país. 6 Nome pelo qual as pessoas trans se apresentam e se reconhecem, de acordo com sua identidade de gênero.

Hoje, o respeito ao nome social de travestis e transexuais no cartão do Sistema Único de Saúde promove o maior acesso à rede de saúde pública. Conquistou-se também o uso do nome social em vários Estados e instituições públicas e privadas. Podemos cair na ilusão que vivemos um momento incrivelmente favorável no âmbito dos direitos LGBT no Brasil. É fato que o cenário é muito mais favorável do que há 20 anos, quando o Governo Federal ainda iniciava seu diálogo com o movimento LGBT, ou 10 anos atrás, momento em que as políticas em nível federal começaram a caminhar. Entretanto, ainda vivemos um país com níveis alarmantes de violações e discriminação contra a população LGBT e as pessoas que não se enquadram no padrão heteronormativo. A face conservadora do Brasil se mostra, entre tantos outros fatos, nos recentes e constantes recuos dos governos na implantação de políticas LGBT; nos discursos de ódio proclamados por muitos líderes religiosos; nas agressões e mortes diárias de vítimas da LGBTfobia; em um Congresso Nacional que ainda não aprovou uma única lei destinada a esse segmento da população. (ARAGUSUKU e LOPES, 2014, p.2) Por isso, levanta-se, por fim, uma questão preocupante: a bancada, composta por políticos evangélicos e conversadores, que atualmente ocupam o Congresso Nacional Brasileiro e repudiam projetos voltados à população LGBT, por misturarem religião com política, mesmo o Estado sendo laico. Lideranças evangélicas e católicas estão cada dia mais presentes no cenário político nacional (CUNHA e LOPES, 2012, p.11). Ocorre, então, dificuldade para a implementação de políticas públicas voltadas para a cidadania de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais no Brasil. Cunha e Lopes (2012) apresentam o caso do programa Escola sem Homofobia, criado pelo Ministério da Educação, que levaria ao ambiente escolar a discussão de gênero e sexualidade através de um material didático, com o intuito de diminuir casos de LGBTfobia no país e promover a garantia de direitos humanos. O material consistia em: 1) um caderno de orientação para o educador, o Caderno Escola Sem Homofobia ; 2) uma série de seis boletins elaborados com uma linguagem juvenil, voltado para a distribuição entre os estudantes; 3) um cartaz de divulgação do projeto na escola, em que se estimulava que a comunidade escolar procurasse ter mais informações sobre o projeto; 4) cartas de apresentação para os gestores e educadores, apresentando o projeto e indicado as melhores formas de trabalhá-lo; 5) e três vídeos educativos que, acompanhados por suas respectivas guias de discussão, poderiam funcionar como estimuladores, pontos iniciais de debate. (CUNHA e LOPES, 2012, p.109-110)

As frentes evangélicas e conservadoras protestaram contra essa proposta, que batizaram de kit gay, alegando que o material ensinaria as crianças a virarem homossexuais. Devido a essas pressões, a produção do material educativo foi suspensa. Outro caso de interferência da referida bancada, ocorreu com o Projeto de Lei de Identidade de Gênero, do ano de 2013, que seria um grande avanço referente aos direitos da pessoa trans, pois daria à ela o direito ao reconhecimento, ao livre desenvolvimento de sua pessoa e a ser tratada e identificada (carteira de identidade) de acordo com sua identidade de gênero. O projeto também foi repudiado pela bancada evangélica e conservadora e, até o atual momento, não foi aprovado. IV. CONCLUSÃO Basta ligar a TV ou abrir as redes sociais que estarão lá os casos de homicídios da população trans ou de agressões gratuitas/discursos de ódio. Basta estar inserido no mercado de trabalho e notar que raramente haverá uma pessoa transexual ou travesti trabalhando com você, ou mesmo dentro das salas de aula para quem frequenta o ambiente escolar. As violências cometidas contra as travestis e transexuais estão bem diante de nós rondando nosso cotidiano, mas prefere-se não vê-las. Por isso essas pessoas lutam pelo fim dessa invisibilidade diante da sociedade e do poder público. A falta de legislações, que poderiam vir a reduzir o alto índice de homicídios, de suicídios ou de violações de direitos humanos de travestis e transexuais no país, elas ainda mais vulneráveis. Reforçam essa violência naturalizada. Não há aqui, neste artigo, a intenção de cair no vitimismo, pois acredita-se que estas pessoas são fortes e capazes de mudar essa realidade. Mas para isso, precisa-se existir o reconhecimento da necessidade de criação de políticas específicas a esse grupo por políticos, autoridades e pela sociedade civil. Ressalte-se, por fim, a necessidade de efetivar, no campo prático, as políticas e legislações já existentes. REFERÊNCIAS ARAGUSUKU, H.A.; LOPES, M.A.S. Políticas Públicas e Direitos LGBT no Brasil: dez anos após O Brasil Sem Homofobia. 2014. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. vol I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

BORGES, Z.N.; PERURENA, F.C.V; PASSAMANI, G.R.; BULSING, M. Patriarcado, heteronormatividade e misoginia em debate: pontos e contrapontos para o combate à homofobia nas escolas. vol VII. Latitude, pp. 61-76, 2013. BRASIL. Comissão Provisória de Trabalho do Conselho Nacional de Combate à Discriminação da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Brasil Sem Homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLBT e Promoção de Cidadania Homossexual. Brasília: 2006. BRASIL. Presidência da República. Secretaria De Direitos Humanos. Guia Orientador para a criação de conselhos estaduais/municipais de direitos da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais LGBT. Brasilía: SED-PR, 2013. BRASIL. Projeto de Lei de Identidade de Gênero: Lei João W Nery. Brasília: 2013. Disponível em: <http://prae.ufsc.br/files/2013/06/pl-5002-2013-lei-de-identidade-de- G%C3%AAnero.pdf> Acesso em: 30/03/2017 CUNHA, C. V.; LOPES, P.V.L. Religião e Política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2012. DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre a população transgênero: conceitos e termos. Brasília, 2012. Disponível em <https://pt.scribd.com/document/87846526/orientacoes-sobre-identidade-de-genero- Conceitos-e-Termos> Acesso em: 31/03//2017 MEYER, Dagmar Elisabeth Estermann. Teorias e políticas de gênero: fragmentos históricos e desafíos atuais. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 57, n. 1, p. 13-18, 2004. PETRY, A.R.; Transexualidade e heteronormatividade: algumas questões para a pesquisa. Revista Textos & Contextos, v. 10, n. 1. Porto Alegre: 2011, p. 193-198. Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil. Disponível em: <http://redetransbrasil.org/index.html> Acesso em: 31/03/2017 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, v. 16, n.2, 1990. Transgender Europe s Trans Murder Monitoring (TMM) in Transgender Europe (TGEU). Disponível em: <http://tgeu.org/tdor-2016-press-release> Acesso em: 31/03/2017 WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica. (1997) In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 14ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.