É Possível haver Música sem Som?



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I Encontro Nacional de Pesquisadores em Filosofia da Música 10 e 11 de outrubro de 2005 Local: FFLCH-USP Contato: eventosdf@usp.br É Possível haver Música sem Som? Osvaldo Pessoa Jr. FFLCH USP opessoa@usp.br 1. O problema, e definições de música e de som O som é essencial para a música? É possível haver música sem som? 1 Naturalmente, estamos supondo que a definição de música não envolva a presença do som como condição necessária. Por música estamos entendendo a experiência perceptiva e emotiva que sentimos ao escutar uma peça musical, com todas as suas qualidades sensoriais (como o timbre de um instrumento) e o reconhecimento de semelhanças (por exemplo entre dós em oitavas diferentes) e de estruturas. Devemos deixar claro também o que entendemos por som. Façamos uma distinção em cinco acepções. Primeiro, há o som-físico, que são vibrações mecânicas em um meio contínuo, como o ar ou a água. Em segundo lugar, há o som-no-ouvido, que consiste de vibrações mecânicas no aparelho auditivo, que se encontra em contato com o nervo coclear. Tal som-no-ouvido pode ser visto como um caso especial de som-físico, mas é bom manter a distinção pois ocorrem transformações entre o som que propaga no ar e o som gerado no ouvido interno. Em terceiro lugar, haveria o som-no-nervo-coclear. Aqui já 1 Esta questão surgiu para mim a partir de um debate sobre se a música é principalmente logos (razão) ou som (no sentido de vivência perceptiva). A compositora Lucia Dlugoszewski se alia a F. Northrop e Herbert Marcuse, para quem música é antes de tudo som, no sentido de ser uma vivência antes de uma artificialidade (Dlugoszewski, 1973, p. 4). A questão que restou, para mim, é se esta vivência teria que ser necessariamente sonora.

não se trata propriamente de som, mas de um processo eletroquímico nos nervos cocleares que leva a informação sonora para o cérebro. Em quarto lugar, há o som-nocérebro, que consiste em todos os correlatos neurais da percepção sonora, ou seja, todos os processos cerebrais envolvidos nesta percepção de som. Por fim, devemos definir o somsubjetivo, aquele do qual temos experiência ao ouvir uma canção, e que pode vir misturado com estados emocionais e imaginativos. A definição que adotamos acima para música se dá no terreno do som-subjetivo. Assim, a questão estudada neste artigo é se é possível haver uma experiência subjetiva de música sem som-físico ou sem som-no-ouvido. 2. Alguns exemplos possíveis de música sem som Comecemos considerando alguns candidatos simples para a música sem som. Uma partitura seria um exemplo disso? Ora, uma partitura busca codificar as principais estruturas musicais, poder-se-ia dizer que boa parte da informação contida em uma peça musical está codificada numa partitura. Um músico pode assim tocar uma canção só a partir da leitura da partitura. A partitura parece, assim, ser uma boa candidata a música sem som. No entanto, ela, por si só, não envolve as qualidades sensoriais associadas à música. Ela pode ajudar a gerar uma música, mas por si só não é música, segundo a acepção definida acima. E quanto a um instrumento reprodutor de som, como um ipod, tocando sozinho em um deserto, sem a presença de ouvinte algum? Será que este ipod produz música? Naturalmente, se formos ao local em que está o ipod, ouviremos música, mas tal experimento não fornece uma resposta à nossa pergunta, pois queremos saber o que está acontecendo na ausência de qualquer observador. Sem a presença de um animal nas redondezas, teremos uma complexa vibração do ar, mas não teremos música, pois não há a experiência subjetiva das vibrações sonoras. John Locke (1999, livro II, cap. VIII, 7-17) diria que há a presença de uma qualidade secundária, que seria uma potência para se produzir a experiência subjetiva da qualidade sonora, ou seja, para se produzir os qualia

(como se diz hoje em dia). Mas tais qualia não existem, sem a presença de um animal. Não há música neste caso. Consideremos agora outro caso, o de um compositor que tenha se tornado completamente surdo. Pode ele ouvir uma música sem som, apenas lendo a partitura e recriando mentalmente a qualidade subjetiva da música associada? Parece que sim. Ludwig von Beethoven não seria um exemplo claro desta situação, pois parece que ele podia ainda ouvir sons encostando a têmpora em um piano. Compositores que nasceram surdos também não seriam um exemplo claro desta situação (seria preciso investigar, no entanto, se seria possível ocorrer uma percepção subjetiva de som sem nunca ter havido uma sensação advinda de estímulo externo). Mas considere um compositor que, a partir da escuta de som, desenvolveu a habilidade de produzir internamente qualidades sonoras, e que depois tenha se tornado completamente surdo, sem deixar de conseguir produzir internamente os qualia sonoros. Tal compositor forneceria um exemplo de música sem som! 3. O problema dos qualia Respondemos assim a pergunta que norteia este trabalho. No entanto, há um outro aspecto desta questão que gostaríamos de responder. O compositor que se tornou surdo, mas ainda é capaz de produzir música internamente, desenvolveu sua habilidade a partir da experiência anterior de percepção de som-físico. E se ele nunca tivesse tido esta experiência com som-físico? Seria possível, mesmo em princípio, que todos os qualia associados a uma experiência musical fossem despertados a partir de outro órgão do sentido, como a visão? Poderia haver música a partir de sensações visuais? Neste questionamento filosófico, não precisamos nos limitar a seres humanos, mas podemos imaginar quaisquer seres conscientes possíveis, com quaisquer tipos de órgãos sensoriais. A esta altura, é bom relembrarmos o clássico problema mente-cérebro, ou seja, qual é a relação que existe entre os processos mentais, a que temos acesso subjetivo, e os cerebrais, que são o objeto de estudo da ciência? Usando os termos definidos anteriormente, qual é a relação entre o som-subjetivo e o som-no-cérebro?

Se vemos um malmequer que consideramos amarelo, como surge em nós a experiência da amarelidão? Este enfoque do problema mente-cérebro é conhecido como o problema dos qualia : como a ciência explicaria porque o malmequer desperta em nós a sensação subjetiva de amarelidão ao invés da violeteza? (Ver Block, 1994.) É um fato notável que todos os sinais perceptivos que vivenciamos, sejam eles de origem externa ou interna, acabam sendo transduzidos para impulsos nervosos de mesma natureza, no cérebro, quaisquer que seja o tipo de sensação. Ou seja, o som-no-nervococlear, que definimos acima, tem o mesmo substrato material e eletroquímico que a luzno-nervo-óptico (ou seja, o sinal nervoso gerado pela incidência de luz na retina). Como o cérebro sabe a diferença entre eles? Será que isto é devido apenas às diferentes posições destes impulsos nervosos na intrincada organização cerebral? Se a resposta for afirmativa, então em princípio um robô feito de componentes artificiais poderia ter um qualium de amarelidão ou de dó? Ou será que nossa capacidade perceptiva depende essencialmente da matéria orgânica a partir da qual somos constituídos? Grosso modo, podemos delinear algumas posições contemporâneas com relação ao problema dos qualia ou ao problema mente-corpo em geral. 1) Uma posição filosófica tradicional, ligada de maneira mais ou menos forte com um idealismo, defende o primado da subjetividade diante das afirmações naturalistas da ciência. Segundo esta postura, não se pode querer explicar cientificamente como surgem em nós as sensações subjetivas musicais ou o prazer estético. Pelo contrário, estes são o ponto de partida para a construção da ciência e do mundo como o experienciamos. 2) Outra posição com larga tradição na filosofia e nas religiões é o dualismo, a tese de que existe uma alma que independe do corpo e que sobrevive à morte deste. As qualidades sensoriais seriam atributos da substância pensante, anímica, e não da substância material, estando assim para além de uma ciência de base materialista. 3) Do lado naturalista, existem diversas correntes fisicalistas que consideram que a nossa mente ou alma pessoal se extingue na morte do corpo. No entanto, há discordância quanto à relação entre mente e corpo. Na filosofia anglofônica, onde se discute assiduamente essas questões, há talvez uma maioria de posições emergentistas. Trata-se da tese de que a mente ou a consciência não pode ser reduzida ao corpo, pois existiriam propriedades novas, emergentes, que surgiriam no nível da consciência, mas que não poderiam ser deduzidas ou explicadas a partir das

propriedades físico-químicas do cérebro e do corpo. 4) Por fim, há as correntes que podem ser classificadas como fisicalismo redutivo. Elas defendem que um dia será possível entender os qualia de maneira completa a partir das propriedades da matéria. Alguns sugerem que novas leis científicas terão que ser descobertas para que isso aconteça. 4. Sinestesia Retornando à questão de se poderia haver música a partir de sensações visuais, consideremos o fenômeno psicológico conhecido como sinestesia. Trata-se de um distúrbio psicológico no qual os sentidos se misturam. A sinestesia tem base hereditária, e atinge em torno de 0,5% da população, principalmente mulheres. Um paciente, por exemplo, vê azul quando ouve um dó sustenido tocado no piano; outro, ao ver números impressos em preto, vê cada dígito com uma cor diferente (Ramachandran & Hubbard, 2003). Com relação à mistura entre sensações sonoras e visuais, o mais comum é a experiência subjetiva de cores a partir de sons-no-ouvido. Neste caso, o som-no-ouvido gera tanto um som-subjetivo quanto uma cor-subjetiva. Isso ocorre porque o paciente sinestésico possui ativações cruzadas no cérebro: um som-no-cérebro ativa regiões de corno-cérebro. Tais conexões são arbitrárias, ou seja, não há nada de intrinsecamente semelhante entre um dó sustenido e o azul: em outro paciente, o mesmo dó sustenido poderia gerar a sensação subjetiva de amarelo. Ao ouvir uma peça musical, tal paciente sinestésico poderia ver subjetivamente diferentes cores, mesmo que a gama de cores gerada seja bastante limitada. Assim, de certa forma, poder-se-ia dizer que ele vê música : o somfísico gerado por uma orquestra gera música enquanto som-subjetivo e também gera coressubjetivas. Ao que parece, porém, a riqueza de relações entre essas cores-subjetivas geradas seria muito pobre para que se possa dizer que haja uma sensação visual análoga à música (enquanto som-subjetivo). Este tema merece uma investigação filosófica mais aprofundada. Menos comum na sinestesia é a experiência subjetiva de sons a partir de cores-noolho. Este caso se aproxima mais da situação sobre cuja existência estamos indagando: será

que música (enquanto som-subjetivo) pode ser despertada por uma sensação visual? Deixaremos este tema para outra oportunidade, após estudarmos melhor o assunto. 5. Analogia entre tons sonoros e cores Quando, em 1666, o físico Isaac Newton utilizou um prisma para decompor a luz solar nas cores do arco-íris, ele concluiu que haveria sete cores no arco-íris, em analogia com as sete notas da escala musical. Com o reconhecimento de que a luz é uma forma de onda, assim como o som, a analogia entre tons sonoros e cores ganhou uma base mais firme. O que diferencia as cores do arco-íris é a freqüência da onda luminosa. O espectro visível se inicia com um vermelho que tem uma freqüência de 430 terahertz, e termina com o violeta de 750 terahertz. O que diferencia os tons ou alturas musicais também é a freqüência da onda, no caso a onda acústica. O lá central tem a freqüência de 440 hertz, o dó acima tem em torno de 523 hertz, e o lá da oitava superior tem o dobro da freqüência da central: 880 hertz (ver Roederer, 1998). Em 1867, o fisiologista e físico Hermann von Helmholtz elaborou uma analogia detalhada entre tons e cores, que inspirou o quadro Lago do Teclado de Piano (1909), do pintor tcheco Frantisek Kupka. De lá para cá, diversos artistas têm explorado a analogia entre tons e cores, numa abordagem conhecida como música de cor (colour music) (ver Hutchison, 1997). Apesar de ser interessante explorar a analogia entre tons e cores, há diferenças marcantes entre as escalas sonora e visual. A escala sonora apresenta semelhanças entre notas de diferentes oitavas que têm freqüências que são múltiplos inteiros de uma freqüência fundamental, mas isso não acontece com a luz visível, que está toda confinada dentro de um intervalo de oitava, por assim dizer. O análogo visual para uma quinta (envolvendo tons cujas freqüências estão numa razão 1,5) também não gera nenhuma percepção visual especial. Na verdade, a mistura de duas notas sonoras gera um acorde no qual ambas as notas podem ser discernidas, ao passo que a mistura de duas cores puras gera uma terceira, fazendo desaparecer as cores originais.

Assim, a sensação visual de cores de um ser humano nunca poderá reproduzir os efeitos de semelhança perceptiva acústica, como entre oitavas sonoras diferentes, tão essenciais para a experiência subjetiva da música. Qualquer tentativa de reproduzir visualmente os sons que formam uma música, por meio de uma atribuição de cores a notas musicais, perderá dimensões importantes da experiência musical. Fracassaria assim esta tentativa de produzir em nós a experiência musical por meio de sensações visuais. 6. Um órgão visual para se ver música A razão pela qual temos a sensação agradável ao ouvir sons harmônicos é que o ouvido funciona como uma cavidade ressonante. De fato, mesmo que um lá de freqüência única entrasse no ouvido, o aparelho auditivo geraria as notas da série harmônica, devido ao fato de ser uma cavidade ressonante. Já a visão não envolve cavidades: cada um dos três tipos de células sensíveis a cores, chamados cones, detecta apenas uma região em torno de uma freqüência única de luz, não havendo o armazenamento temporário de energia luminosa em qualquer cavidade ressonante. No entanto, existem cavidades ressonantes para a luz, e um exemplo disso são os laseres. De fato, dentro da cavidade de um laser são geradas freqüências de luz que seguem uma escala harmônica. Assim, pode-se especular que um ser vivo que tivesse órgãos visuais com cavidades ópticas poderia desenvolver, através da evolução, uma apreciação estética por séries harmônicas, reconhecendo inclusive semelhanças entre cores de oitavas diferentes! Neste caso, então, seria possível para este ser fictício apreciar as complexidades da experiência musical apenas através da sensação visual. Ele, literalmente, veria música. Aceitando este argumento típico de uma ficção científica, é verdade, concluímos que, em princípio, seria possível conceber um ser vivo que tivesse a experiência subjetiva visual de música. Ele seria capaz de ver a Sinfonia Inacabada de Schubert, identificar sua estrutura musical e apreciar toda sua qualidade estética. Nesse sentido, o som não seria essencial para a música!

7. Conclusão Definindo música como um fenômeno subjetivo, nos perguntamos se seria possível haver música sem som-físico ou sem som-no-ouvido. Adotando uma postura fisicalista, segundo a qual a percepção subjetiva seria fruto de processos materiais (físicos, químicos e biológicos), apresentamos três argumentos a favor da tese de que sim, em princípio seria possível haver música sem som (ou seja, sem som-físico). O primeiro argumento considera o caso de um compositor que se tornou totalmente surdo, mas ainda é capaz de ter a experiência subjetiva de música. O segundo baseia-se na condição conhecida como sinestesia, que sugere que alguma experiência subjetiva sonora pode advir da sensação visual, em certos casos do distúrbio. O terceiro argumento considera a possibilidade de se ter um órgão visual baseado em cavidades ressonantes, semelhantes a um ouvido, só que adaptado às freqüências das ondas luminosas, como é o caso de um laser. Os argumentos apresentados são filosóficos, na medida em que se pergunta sobre se algo seria possível, em princípio. Acredita-se, porém, que com o avanço da compreensão científica da consciência, tal questão possa um dia receber uma resposta bem sustentada e menos especulativa. Agradecimentos Gostaria de agradecer o interesse de Vladimir Safatle e dos outros participantes do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Filosofia da Música, e também os comentários de Christiane Couto. Referências Bibliográficas

Block, N. (1994), Qualia, in Guttenplan, S. (org.), A Companion to the Philosophy of Mind, Blackwell, Oxford, pp. 514-20. Dlugoszewski, L. (1973), What is sound to music?, Main Currents in Modern Thought 30, pp. 3-11. Hutchison, N. (1997), Color music, página eletrônica em http://home.vicnet.net.au/ ~colmusic Locke, J. (1999), Ensaio sobre o Entendimento Humano, trad. E.A. Sovenal, G. Cunha & A.L. Amaral, Fund. C. Gulbenkian, Lisboa. Original: 1690. Ramachandran, V.S. & Hubbard, E.M. (2003), Ouvindo as cores e degustando as formas, Scientific American Brasil 13 (junho), pp. 49-55. Roederer, J.G. (1998), Introdução à Física e Psicofísica da Música, trad. A.L. da Cunha, Edusp, São Paulo.