IESCONSTRU INDO 0 DI SCURSO DE DI VUlGAtAO (SIGNIFICADO E AUTORIA) Na~ia Jose R. Fa~ia Co~acini/PUC-SP Para discutir a questao do significadoenele a questao da autoria no discurso de vulgarizacao (fr.) ou divulgacao cientifica, gostaria de propor que se tomassem como ponto de partida alguns trechos da apresentacao do numero 53 da revista Langue Francaise todo ele dedicado a VUlgarizacao, isto e, aos textrechos que se seguem sao da autoria de M-Fr. Mortureux e par~ cern reproduzir um estado de verdades tradicionalmente aceitas ".. vi-se Inos varios tipos de vulgariza~ol a re-enuncia~o de dis cursos-origem. elaborados por e para 'especialistas', em discursos segundos destinados ao grande publico. Eles ofereceriam portanto parafrases, em geral condensadas, e estas teriam por fun~o ell.inar (ou contornar) 0 obstaculo que a e xistencia das metajinguase terminologias (cientificas, tecnicas, po Iftieas ), funcionando nos discursos-origem, opoe ao grande publt co, curioso por novidades produzidas pelos pesquisadores. 0 que su-=poe na vulgariza~o uma atividade metalingufstica, particularmente apl icada ao tratamento dessas metal fnguas e terminologias, e, ao mes mo tempo, produtora de efeitos variados". (p. 03) -.11 Para os IingUistas, a existencia e 0 funclonamento dos discur- 50S de wlgariza~ao remetem i ptoblematica da parafrase e da tradu- ~o, pondo ambas em jogo, de modo crucial a metal inguagem (no senti do de atividade metalingufstica)". (p. 0%)1 Por esses trechos percebe-se bem como a LingftIstica per~ tua um racioclnio logocentrista que remonta a Platao (conforme lembra Derrida nas suas multiplas desconstrucoes), que se expressa numa serie de dicotomias imbricadas entre si, dentre as quais: ciencia/vulgarizacao, enunciacao/re-enunciacao, discurso de origem/discurso segundo, especialistas (cientistas)/gra~ de publico, atividade (lingftlstica)/metalingftlstica, que, por sua vez, agiria sobre as metalinguagens e terminologias ditas cientlficas, perpetuado pelo conceito de vul.garizacao como tra
du~io e parafrase. A defini~ao de divulga~ao como discurso segundo, deriv~ do, pressupoe evidentemente urn discurso primeiro - origem, fonte daquele, 0 que, de urn lado, traz a ilusao do conceitode ori ginalidade, simplificando, assim, 0 conceito de autoria que re tomaremos mais adiante; de outro, carrega consigo 0 conceito de hierarquia: em nossa cultura, e consensualmente mais importante 0 termo primitivo, aquele que da origem e, portanto, explica 0 segundo, que desse modo se subordina ao primeiro, como 0 filho a mae que 0 gerou. Observe-se que os termos vulgarizacao - divulgacao contendo ambos 0 vocibulo volgo - que sign.! fica (cf~ Aurelio) 0 povo, a plebe; adv. na lingua vulgar~ ~ pular, comum - carregam em si a ideia de desprestigio, secund~ ridade, c6m relacao a cientifico", que traria, por oposicao,a ideia de primaridade, prestigio, proprio da ciencia, que, por sua vez, detem os pre-conceitos de sabedoria, conhecimento.. Continuando a percorrer a piramide construida pelo raciocinio dicotomico, surge atrelada a anterior a categoria de lei tor e, conseqdentemente, embora de forma velada, a de au~r, a qual voltaremos mais adiante. De um lado, temos os especialistas (cientistas) capazes de "compreender" 0 texto original, d~ tentores, junto com 0 autor (afinal pertencem a mesma comunida de), das "metalinguagens e terminologias especificas" (cf. MO~ tureux, texto citado), capacidade essa que os torna diferentes, e lhes da poder; de outro, 0 grande publico, que, embora "curioso por novidades produzidas pelos pesquisadores", e visto c~ mo sendo incapaz de ter acesso direto a informacao cientifica, sem que esta seja veiculada ("traduzida") numa linguagem simplificada, popular. Sabe-se que, alem da linguagem, passa pelo filtro do divulgador (hoje nao raro 0 proprio cientista, 0 S6
profissional da ciencia normal ou 0 redator de jornal ou revi~ ta), a.propria informacao - teoria ou pesquisa: so se divulga 0 que se cre a priori compreenslvel e de interesse publico; nos jornais e revistas menos especializadas sac os resultados das pesquisas com repercussao social importante que sac priorizados. Ao cientista - leitor ou autor - e dado 0 privilegio do pe~ samento e do conhecimento; ao grande publico, as trevas da ignorancia; aquele, a aurea libertadora do intelecto, as asas da concreto, as amarras da intuicao, da sensibilidade, da subjet! vidade, do terror e da inseguranca diante do inacesslvel, do desconhecido; aquele, a missao divina de buscar a verdade; a e~ te, a expectativa mistica e passiva dessa verdade. A ambos, a dormindo no esquecimento de que a ciencia nada mais e do que uma poderosa constru~o humana. A esse respeito Nietzche (1911) se "Hi epocas enl que 0 homemracional e 0 homemintuitlvo ficam lado a lado, UlIlCOllIllledo da intui~o. 0 outro escarnecendo da abstra~o:es te ultimo e tao Irraciona I quanto 0 prlmeiro e inartfstico. Ambos&" sejam ter doaifnlo sobre a vida: este sabendo. atraves deculdado pre vio. pruoencia. regularidade. enfrentar as principals necessidades: aquele. como 'heroi euforico'. nao venda aquelas necessldades e tomando somente a vida disfar~ada em aparencia e em beleza como real'~ (op. eit.: 38). Par fim, postular a existencia de diferentes leitores para 0 discurso da ciencia e para 0 discurso da divulgacao sign! fica defender como verdade inquestionavel a inacessibilidade da ciencia, privilegio de uma minoria detentora do conhecimentoe, portanto, do poder. Por detras disso, permanece 0 pre-conceito e a categorizacao homogeneizante que abafa as diferencas e reduz tudo a uma unica verdade e ao rigor da abstracao.
Assim, retomando a ideia de que 0 grande publico so teria acesso ao texto derivado e que este funcionaria como -re-enunciacao- parafrastica., coloca-se a questao do significado. Falar de parafrase significa postular a possibilidade de alteracao da forma sem mudanca de significado: 0 texto segundo (vulgarizacao) seria a reformulacao, a traducao do texto original portador de um significado unico. Este permenece, entao, no te!. to resguardado por uma linguagem literal, objetiva. A fonna (si~ nificante) e concedido 0 poder magico de transformar informacoes inacesslveis em compreenslveis para 0 publico em geral. Tal transformacao seria evidentemente -autorizada- pelo texto de origem. Na mesma direcao aponta a concepcao de uma atividade meta lingoistica atribulda a divulgacao, atividade essa que expl! citaria, numa roupagem popular, 0 significado das metalinguagens tecnicas e cientlficas, na pressuposicao, ainda uma vez, de que existiria uma linguagem primeira sobre a qual outras p deriam se expressar. Nao e a toa que, em nenhum momenta, os tr~ chos transcritos no inlcio desta comunicacao, fazem referencia ao sujeito enunciador. t a primazia do texto sobre 0 sujeito, do significante sobre 0 significado - imutavel, inalteravel, u nico. Nessa defesa do texto, enquanto objeto, unidade de sentido que nao abre espaco para as diferentes leituras, como se c~ loca a questao da autoria? Afinal, nao se diz comumente que ler e buscar no texto as ideias do autor, 0 sentido que 0 autor quis lhe dar? Mas quem e 0 autor do texto cientlfico e da divui~~ cao? Comecemos por responder a ultima pergunta: de forma simplista, poder-se-ia dizer que 0 autor do texto cientifico e 0
proprio pesquisador, a quem se atribui uma experiencia ou a foe mulacao de uma teoria (paradigma); 0 autor do texto de vulgar! zacao seria, entao, 0 redator do jornal ou revista. De forma ainda mais generica, poder-se-ia dizer que 0 autor equivale a- quele a quem se atribui a responsabilidade da obra ou do texto. Mas 0 que vem a ser obra ou texto do autor? Da mesma forma que Foucault (1969) questiona 0 conceito de obra -equivaleria ela a todos os textos que alguem escreve? mas por que, entao, nao se incluem al os rascunhos, as anotacoes.? - poder-se-ia <pe~ tionar 0 conceito de texto, que se constitui, afinal, de uma i!! finidade de outros textos (e, partanto, de outros sujeitos) -- opinioes, conceitos, pesquisas anteriores, obras lidas, exper! encias alheias. Ao pesquisador poder-se-ia de fate imputar a originalidade da pesquisa? Afinal, se concorda~com Khun, e ao trabalho incessante da ciencia normal que se devem as chama das revolucoes cientlficas, e as mudancas nos e dos paradigmas e nao ao surgimento de genios, que, par inspiracao divina, de~ -cobririam, des-vendariam misterios do universo 0 que dizer entao da divulgacao cientlfica? Seria passivel imputar ao reda tor a respansabilidade pela experiencia cientlfica, ou a ele ca beria apenas a escolha das informacoes (e nao 0 proprio conte~ do) e a "trans-cricao" em linguagem jornallstica, que ele julga acesslvel ao publico a que se destina, do conteudo cientlfi co, sem alteracoes na sua "essencia"? A ultima alternativa e a mais consensual e, ao mesmo tempo, a mais ingenua, pois, dentre outras coisas, pastula a existencia isolada do significante e do significado. E ainda, par que razao os textos jornall~ ticos sobre a ciencia abundariam de transcricoes entre aspas da fala do pesquisador ou de uma "autoridade" no assunto, nao fos se na tentativa ilusoria de dirimir a responsabilidade do reda
tor e atribuir a outre.. (ao pesquisador) 0 sentido que enuncia? Babe-se por quantas disputas e responsive 1, na ciencia, 0 conceito de autoria, que, afinal, concede privilegios e poderes aquele que e reconhecido como Autor. Tal constatacao parece vir ao encontro do pensamento de Foucault (1969) que considera que mesmo a teoria do significado que postula a morte do autor, 0 seu apagamento em proveito do texto, perpetua sua figura como ser transcendental la imagem de Deus que, embora invislvel, pee siste eternamente na sua obra de criacao). A atitude de uma cee ta corrente lingtllstica em buscar no texto as marcas da enuncia cao (embora se distinga autor de enunciador) pressupoe a crenca na existencia de um sujeito consciente, fonte do sentido, e na transparencia da linguagem, atraves da qual se perpetuam 0- bra e autor. Be partinms do principio de que 0 Autor e aquele que cria pela primeira vez e de que 0 texto cientlfico permanece como 0 texto primeiro, objetivo, gerador de outros textos a partir de uma atividade metalingtlistica, teremos de aceitar como verdade dada a priori a unicidade do sentido ou a existencia de um lei tor a quem e dada autoridade suficiente, plena e transcendental, que 0 torna capaz de filtrar e fixar 0 sentido do texto primeiro na sua transposicao para uma linguagem simplificada. Mas poderiamos ainda nos iludir quanto a permanencia do texto como objeto imutavel, capaz de transparecer tambem a aparente objetividade da ciencia, sem cairmos nas ciladas do Logocentri!. mo, que, em nome da Razao, anula as diferencas e reduz tudo e todos a uma classificacao dicotomica homogeneizante? Reprimir ou suprimir as diferencas, a heterogeneidade que constitui sujeito e texto, significa em ultima instancia postular a morte do sujeito, a morte da leitura e a permanencia do Logos, da ra
o que Derrida propoe, e que serve bem a compreensao do di~ curso que nos interessa de perto neste trabalho, e a ruptura do "0 sistema cia escritura em geral nao e exterior ao sistema da lingua em geral, a nao ser que se admita que a divisao entre 0 exterior do interior, passe no interior do interior ou no exterior do exterior, chegando a imanencia cia lingua a ser essencialmente exposta a inter Venj;aO de for,as aparentemente estranhas a seu sistema". (Oerrida~ 1967b: 18) "Trata-se /./ de por em evidenc ia a soli dar iedade s isternatica e his torica de'conceitos e gestos de pensamento que, frequentemente, se acredita poder separar inocentemente. 0 signo e a divindade tern 0 mesmo local e a mesma data de nascimento. A epoca do signo e essencialmente teologica. Ela nao terminara talvez nunca. Contudo, sua clausura historica esta determinada". (op. cit., p. 16)2 o que Mortureux afirma sobre a vulgarizacao pressupoe,poe tanto, uma teoria do significado segundo a qual 0 sentido est~ ria de forma imanente e transcendental, nos limites do lingdi~ tico, esquecendo-se de que 0 significado se constitui do sign! ficante, e este, daquele, assim como a lingia se constitui da fala e esta, daquela, tal como se da wa alianca da fala e do ser numa palavra unica, no nome proprio (Derrida, 1967: 29). Acreditamos que 0 que diz Derrida (op. cit.) sobrea secu~ daridade da escritura com relacao a fala sintetiza hem 0 que dissemos da vulgarizacao com relacao a ciencia: " deixando de lado a fe ou certeza teologica, a experiencia de se cundaridade nao diz respeito a esse Tedobramento estranho pelo quat o sent ido const itu ido - escr ito - se da como lido, previa ou simu Itaneamente, onde 0 outro se encontra a velar e tornar irredutivelo ir e vir, 0 trabalho entre a escritura e a leitura? 0 sentido nio exls te.- antes.- deeois. 0 que se chama Deus que afeta de secundart dade toda a navegaj;ao humana nao seria essa passagem: a reciprocida de diferida entre a leitura e a escritura? Testemunho absoluto, ter ciario como transparencia do sentido no dialogo em que 0 que se co~
me~a a eserever ja e lido, 0 que se eome~ a dlzer ja e resposta. Ao mesmo tempo Crlatura e Pal do logos. Clreularlclade e tradiclonallcla de do logos. Estranho labor de eonversao e de aventura onde a gra~a so e eoneedlcla ao ausente". (op, elt.: 22)' (1) TraduCao minha. (2) Os grifos sac do proprio autor. (3) Traducao e grifos meus. DERRIDA, J. (1967). L'Ecriture et la Difference. Paris. Ed. du Seuil. (1967b). De la Grammatologie. Trad. Bras.: Gramatologia. Edit. USP/Perspectiva, 1973. FOUCAULT, M. (1969). "Qu'est-ce qu'un Auteur?". Littoral, n9 9, Paris, Editions Eres, 1983. MORTUREUX, M-Fr. (1982). "Introduction". Langue Francaise, 53, Paris, Larousse. NIETZCHE (1911). "Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral" (1873). Os Pensadores: Nietzche, vol. I: 29-38. Nova CuI tural.