Deixe-os na praia A maioria dos animais marinhos que aparecem no litoral gaúcho e são levados a centros de reabilitação não necessita de tratamento e pode sofrer danos durante o deslocamento Por Júlia Bertê, Kathlyn Moreira e Laura Pacheco 2
Todos os anos, é comum que veranistas e moradores das praias gaúchas se deparem ocasionalmente com animais marinhos na costa litorânea. Muitas pessoas, inclusive, têm o impulso de tentar empurrá-los de volta para a água ou transportá- -los para centros de reabilitação como o Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar) em Imbé. Na maioria dos casos, a justificativa para a retirada é a negligência dos órgãos competentes e dos próprios centros. A atitude, provocada principalmente pela vontade de ajudar e falta de conhecimento, acaba submetendo esses animais a viagens muitas vezes desnecessárias e pode comprometer sua saúde. Ignacio Moreno, professor do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que grande parte dos animais marinhos que chega ao litoral vem devido a causas naturais. Por estarmos em meio a uma zona de convergência subtropical, temos a influência de duas correntes marinhas, a das Malvinas, que se desloca do sul, e outra corrente que vem do Equador e acaba se dividindo em duas: uma vai para o Ceará e outra desce a costa, deixando as águas mais quentes e empurrando a das Malvinas". Esse aumento da temperatura do mar é o responsável para que várias espécies que não têm as praias gaúchas como habitat natural se aventurem para cá. Leão-marinho sendo marcado para monitoramento em Tramandaí Nos meses de inverno, outono e primavera, muitos animais saem das suas colônias mais ao sul do continente e vem parar aqui, já que esta é uma área muito rica em alimento. Geralmente são animais jovens, nos primeiros anos de vida, que ainda estão aprendendo a se virar sozinhos. Isso é normal no processo de aprendizagem, mas no meio do caminho eles podem acabar morrendo por causas naturais, justamente pela inexperiência. Como nosso litoral é muito extenso, diferentemente de uma enseada, é mais fácil ver as carcaças trazidas pelo mar. Por isso as pessoas se espantam com a quantidade. Morrem muitos animais de causas naturais todos os anos, e isso provoca estranheza. As pessoas dizem: pinguim morto, ai, como tá morrendo bicho agora. Não, sempre morreu. A gente tem acompanhamento de mais de 20 anos aqui do litoral pelo Gemars (Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos do Rio Grande do Sul)", conta o biólogo capa do Ceclimar, Maurício Tavares. Os motivos são diferentes, dependendo do grupo. A toninha, por exemplo, é um animal que está em extinção e quando é encontrada, geralmente foi acidentalmente capturada em alguma rede de pesca e morreu. Esta é considerada uma causa antrópica. Já as tartarugas verdes, também muito encontradas no litoral gaúcho, são animais que só saem do mar para desovar (as fêmeas). Só que o Rio Grande do Sul não é uma área de desova, e as tartarugas quem vem parar na praia ainda são jovens. O que acontece é que elas estão ingerindo lixo que é jogado no mar e que muitas vezes se mistura com a vegetação ou é confundido pelos animais. Quando tartarugas verdes aparecem na praia, já debilitadas, é porque estão com o estômago tomado por pedaços de plástico. Segundo Tavares, nas tartarugas que acabaram morrendo no Ceclimar, se encontrou canudinhos de refrigerante, embalagens de chiclete, 3
botões, pedaços de brinquedos. A gente tem recebido muitas e a maioria morre. E não é por falta de atendimento, é porque não tem mais como ajudar o animal - acrescenta ele. Também não adianta ficar tratando o bicho por meses. Não temos como reverter o quadro, o lixo fica tão compactado que obstrui o trato e não passa nem comida. Mas mesmo que conseguíssemos, seria para depois soltar a tartaruga no mar poluído e acontecer tudo de novo. Como biólogos, nós temos que resolver o problema, e não ficar fazendo paliativos. As estatísticas apontam que, em 2 anos, aumentaram em 300% os casos de lixo no estômago destes animais. Os pinguins-de-magalhães costumam aparecer nos meses de inverno. Eles fazem deslocamentos anuais, logo após a época de reprodução, vindos do extremo sul do continente. Estes animais entram em correntes marítimas mais fortes em busca de alimento e não conseguem voltar. Acabam chegando à costa brasileira muitas vezes já cansados pela viagem, feridos, fracos e até com hipotermia (redução da temperatura corporal) e acabam morrendo. Isto faz parte do processo de seleção natural, em que os humanos não devem intervir. Porém também acontecem casos em que estas aves chegam com óleo nas penas, causado por algum derramamento no mar. Este é um caso de influência humana, em que os animais devem ser levados ao centro de reabilitação para receber tratamento. O processo é desgastante. O óleo na plumagem é removido por meio de um banho. Com isso, os pinguins perdem a impermeabilização natural das penas e tem que ficar em cativeiro até que ela se refaça naturalmente. Outro animal que aparece muito frequentemente é o lobo-marinho. Os que vêm pra cá geralmente estão no primeiro ano de vida e vem de ilhas rochosas no Uruguai. O litoral do Rio Grande do Sul só tem dois pontos de parada no mar: em Rio Grande e em Torres. Toda essa extensão de centenas de quilômetros entre os dois pontos não tem nada para parar no mar. Então um bichinho desses, que está no primeiro ano de vida, pode se sentir cansado e o lugar onde ele vai parar é a praia explica Tavares. Muitas vezes o animal só está descansando, mas as pessoas vêem e querem capturar, dar comida, jogar de volta para a água. Até mesmo alimentar pode ser um problema, pois só alguém especializado sabe qual o tipo de peixe um bicho desses come e qual pode fazer mal. No inverno, às vezes aparecem seis, sete lobos-marinhos na beira das praias ao longo do litoral norte, e as pessoas ficam ligando, mas às vezes eles não têm nada. São raros os casos, talvez só 1%, em que realmente precisa tirar um lobo-marinho da praia para tratar. Além das mortes ocorridas por causas naturais, o impacto do ser humano na natureza também influencia - e muito - na morte de animais na costa litorânea. Para Ignacio Moreno, a pesca, o consumo desenfreado e a poluição são as ações antrópicas que mais colaboram para a mortalidade dos animais marinhos. Como nossa indústria pesqueira é muito forte, os navios chegam a lançar redes com mais O CECLIMAR atende e trata animais marinhos, faz monitoramento de espécimes, e realiza campanhas, além de estudos na área da biologia. Biólogos capturam para estudo pinguins mortos em Tramandaí Funcionários do CECLIMAR realizam a soltura de pinguins na praia de Tramandaí Soltura de lobo-marinho tratado no CECLIMAR Cartaz educativo do CECLIMAR sobre pinípedes 4
de 20 km de extensão. Por não serem seletivas, elas recolhem peixes menores e sem valor comercial, que serão descartados. Os consumidores também não exigem o cumprimento das leis que proíbem a pescaria em épocas de reprodução de espécies ameaçadas. "Se os clientes começassem a dizer que não vão comprar aquele peixe porque ele está ameaçado, os empresários não teriam razões para vendê-lo, mas não é isso que acontece", comenta Ignacio Moreno. O consumidor poderia pedir por um peixe que tem pesca menos prejudicial, mesmo que custasse mais caro. É muito fácil dar valor para a natureza com o dinheiro dos outros, difícil é dizer para o empresário que ele não pode ganhar complementa. O consumo desenfreado também é um fator que impulsiona a morte de animais marinhos pelo incentivo à produção de plástico e à utilização de substâncias nocivas ao meio ambiente. Segundo Moreno, ainda não chegamos ao estado de consumo consciente: "Falta ainda essa atitude de 'esse computador sai mais barato, mas está me custando um pedaço da floresta, então eu não quero'", lamenta. Moreno destaca que o impacto desses fatores na costa litorânea não é tão imediato, ele vai se acumulando ao longo dos anos: "Esse lixo que nós encontramos nas tartarugas pode ser de 10 anos atrás e continua sendo jogado. As redes são cada vez maiores pela ganância da indústria que precisa de mais peixes, sendo que existem cada vez menos. Vendo a longo prazo, vamos percebendo o quanto isso está desestruturando a cadeia trófica". Mesmo com as atitudes humanas que aumentam os danos às espécies marinhas, o pesquisador vê a situação com otimismo: "O impacto humano está cada vez maior, mas a consciência também está". Hoje em dia, com a mídia, as pessoas têm mais acesso à informação e se mobilizam para salvar algumas espécies. O homem está percebendo que não se trata só de salvar o golfinho, o pinguim, mas ele mesmo. Maurício Tavares mostra tartaruga verde que não consegue afundar na água devido ao lixo no estômago capa Alguns animais que chegam ao litoral vêm apenas para descansar ou, em casos em que já se encontram debilitados, para morrer tranquilamente evitando afogamentos. Nessa última situação, é comum que as pessoas queiram transportar o animal para um dos centros de reabilitação, mas não há mais nada a ser feito. "A maioria dos animais que recebemos no Ceclimar não necessita de tratamento. As pessoas se revoltam achando que não estamos fazendo nada para ajudar e colocam os bichos dentro do porta-malas para levar ao centro por conta própria. Só que os animais não resistem à viagem e acabam chegando mortos" relata Moreno. Trazê-los para os centros também representa um risco, já que são lugares aos quais o animal marinho não está adaptado, podendo contrair uma bactéria e transmitir aos demais quando retornar ao convívio da espécie. "Às vezes, na tentativa de salvar um indivíduo, podemos acabar dizimando uma espécie. É isso que muitos não entendem. Nós, biólogos, pensamos em termos de espécie. Um indivíduo se perde, mas se salva a espécie" explica o pesquisador. Para Tavares, se o animal pegou uma doença, não tem que ir lá injetar remédio. Ele vai se virar e se conseguir se curar ele sobrevive e volta pra colônia. Então ele vai ter uma resistência que vai passar adiante para o resto da espécie. E se não sobreviver, é algo que também faz parte da natureza. 5
Às vezes estes animais marinhos podem morrer por interferência humana, tanto na beira da praia quanto no cativeiro. As pessoas querem ajudar, mas podem estar fazendo justamente o contrário. Para evitar que isso aconteça, os profissionais do Ceclimar fazem campanhas e trabalhos para levar informações à população. As orientações dadas para quem encontrar um animal na praia são basicamente isolar o local, manter distância para não estressá-lo, não alimentar, não tentar empurrar o animal de volta para a água nem tentar transportá-lo, pois apenas profissionais podem fazer isso. E, é claro, avisar as autoridades como o Ceclimar, a Patrulha Ambiental da Brigada Militar (PATRAM) ou a Secretaria do Meio Ambiente do município. Mesmo assim, segundo Ignacio Moreno, o processo de conscientização é muito lento, e temos que modificar as ações cotidianas. Se as pessoas leigas souberem que estes animais vêm pra cá todos os anos, elas começam a auxiliar da forma certa. Elas estão preocupadas em ajudar o meio ambiente, assim como nós explica Tavares. Segundo o biólogo, a melhor forma de ajudar é praticando a coleta seletiva em casa, jogar lixo no lixo e procurar diminuir a geração de resíduos sólidos. Do litoral norte ao sul, a mesma situação O Centro de Recuperação de Animais Marinhos (CRAM) é o responsável pelo trato dos animais no litoral sul do estado, abrangendo uma área de aproximadamente 350 km, da praia de Mostardas até o Chuí. Segundo Rodolfo da Silva, veterinário do CRAM, a situação no litoral sul não é diferente do litoral norte: A gente consegue ver que há um crescente aumento na agressão aos animais que chegam até o centro. Muitos dos que precisam de tratamento é por culpa da irresponsabilidade do ser humano. A ação humana irresponsável contra o meio ambiente é uma das principais causas de morte dos animais. A ingestão de lixo jogado no mar, redes de pesca que prendem e machucam os animais e o derramamento de óleo estão entre os principais fatores para os animais irem até o centro, assim como ocorre no litoral norte. Segundo da Silva, é preciso conscientizar a população de que o simples ato de jogar lixo na praia pode trazer consequências muito grandes para a vida marinha. Pinguim-de-magalhães sujo de óleo encontrado em Rio Grande O veterinário reforça que as pessoas não devem transportar por contra própria os animais até o centro, já que acabam piorando a situação devido ao transporte inadequado e que em muitos dos casos nem precisariam de tratamento. Porém, da forma correta, é muito importante a ajuda da população para saber a localização dos animais. O aumento da população nas praias tem nos ajudado bastante para sabermos onde eles estão. É muito importante que as pessoas participem desse processo, por isso é necessária a conscientização da comunidade afirmou Rodolfo. Outro avanço importante para o tratamento dos animais no litoral foi o convênio do CRAM com a Petrobras, em que os profissionais do centro dão treinamentos por todo o país para as equipes de emergência das empresas de perfuração de petróleo, o que aumenta a chance de sobrevivência no caso de derramamento de óleo. Após a parceria também foi possível disponibilizar unidades móveis de despetrolização de fauna, que podem apoiar no tratamento dos animais afetados pelo óleo em qualquer lugar que o acidente aconteça, permitindo uma ação mais rápida e precisa. Um dos principais objetivos do centro de recuperação, além de ajudar e salvar os animais marinhos, é conscientizar a população e investir na educação das futuras gerações. Da Silva diz que a conscientização das pessoas está maior atualmente, mas ainda é muito importante lutar pelo fortalecimento das leis de fiscalização e educar a população e as empresas sobre as consequências dos seus atos MN contra o meio-ambiente. 6