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Transcrição:

183 7 Conclusão Este trabalho foi empreendido sob o pressuposto de que a tradição gramatical estende o conceito de objeto indireto stricto sensu a outros casos de dativo, representados na língua portuguesa pelo pronome lhe. Assim é que, para efeito de estudo do comportamento sintático-discursivo do pronome lhe na variedade formal do português brasileiro, foi preciso repensar o conceito de objeto indireto na tradição gramatical; daí se seguindo, em conformidade com autores como Rocha Lima (2001) e Evanildo Bechara (2002), por exemplo, a proposição segundo a qual o objeto indireto deve ser considerado como um dos complementos verbais (um actante), o qual se caracteriza, do ponto de vista formal, por ser introduzido, via de regra, pela preposição a (às vezes, para ) e por ser cliticizável em lhe. Do ponto de vista semântico, também aqui anuímos à idéia segundo a qual o objeto indireto representa o destinatário, a saber, a entidade a quem se dirige a ação do verbo. Levando em conta o tratamento dispensado por autores como os referidos acima, procuramos patentear que o pronome lhe não desempenha tão-só, como nos deixa entrever a tradição, a função de objeto indireto. Por um lado, conquanto não neguemos, sob hipótese alguma, a correlação entre objeto indireto e dativo, o lhe cumpre outras funções decorrentes do heterogêneo caso dativo. Como vimos, o lhe pode cumprir as funções de dativo de posse, dativo de interesse e de dativo ético funções que são consideradas nãoactanciais. Por outro lado, no domínio das funções actanciais, há discrepância entre o que a tradição nos legou e os fatos da língua. Como vimos, a tradição ensina-nos que o objeto indireto é introduzido pela preposição a e é cliticizável em lhe ; no entanto, o lhe figura em esquemas sintáticos cujo verbo seleciona constituintes introduzidos por preposição diferente de a (na maioria das vezes, em ). É verdadeira a relação entre preposição a e pronome lhe ; isto é, o pronome lhe cliticiza estruturas em a, em muitos casos; mas não rareiam casos em que lhe cliticiza estruturas introduzidas por preposição diferente de a. Nesses casos, parece-nos que a única relação possível entre o emprego de lhe e a categoria dativo repousa no fato de se referir a substantivo [+ humano]. Insistimos em que esses casos não podem ser tratados como casos de objeto

184 indireto, tendo em vista sempre a definição tradicional, que remonta a autores como Rocha Lima (2001) e Evanildo Bechara (2002) definição esposada por nós. Do ponto de vista semântico, os casos a que nos referimos acima constituem casos em que se nota, por vezes, substantivos cumprindo papel temático diverso do papel de destinatário. Muita vez, o lhe representa o paciente (cf. Baterlhe/ bater nele); em outros casos, desempenha papel temático ainda não bem definido. Nesse tocante, procuramos demonstrar que a generalização segundo a qual o pronome lhe figura no lugar de constituintes cujo substantivo indica o destinatário deve ser repensada, caso se pretenda desenvolver um quadro teórico mais consistente dos empregos do pronome lhe no português. Não negamos a generalização, é claro; mas reconhecemos que o lhe não se aplica tão-somente a constituintes que indicam o destinatário. Não basta, portanto, para efeito de descrição, dizer que o lhe aplica-se, normalmente, a constituintes que indicam o destinatário ; melhor será investigar os casos em que essa idéia se sustenta e os casos em que lhe substitui constituintes com função semântica diferente. Reconhecemos outrossim que a tarefa suscitada acima pode ser dificultada pela situação teórica da semântica, mormente no que toca a estudos que se ocupam com a descrição dos papéis temáticos para fins de aplicação a uma teoria gramatical; mas não deve ser negligenciada, caso se pretenda descrever precisamente o comportamento do lhe na língua portuguesa. No tangente ao âmbito dos dativos livres, procuramos demonstrar a atualização do lhe, enquanto unidade de valor circunstancial, a saber, que figura no enunciado por fatores de ordem discursiva, e não por exigência de uma palavra qualquer. É nesse âmbito que prepondera a motivação discursiva do emprego do lhe. Vimos que os dativos de interesse e ético são funções mais afins ao dativo subordinado (objeto indireto). Nem sempre é fácil distinguir o dativo de interesse do objeto indireto propriamente dito; mormente pelo fato de não ser bem definido na língua o âmbito das idéias de destinatário e beneficiário. Todavia, procuramos patentear a ocorrência do dativo de interesse na língua portuguesa, em certas condições sintático-semânticas (e, provavelmente, pragmáticas) e insistimos no emprego da preposição para como marca formal dessa função. O dativo de posse, a seu turno, apresenta características formais e semânticas bem definidas, do que se segue poder ser distinguido mais claramente

185 do objeto indireto propriamente dito. Nesse tocante, cabe dizer que a nomenclatura objeto indireto de posse só se justifica pela insistência tradicional na relação entre o objeto indireto (dativo subordinado) e a categoria dativo, já que, atentando para as condições estruturais e semânticas em que ocorre o dativo de posse, não é difícil concluir a discrepância entre o conceito tradicional de objeto indireto (isto é, termo oracional que se emprega com verbo transitivo indireto, etc.) e os casos em que haveria um objeto indireto de posse. Como vimos, o dativo de posse (ou o chamado objeto indireto de posse ) emprega-se com verbo bivalente (ou monovalente) e estabelece um vínculo qualquer entre uma pessoa e uma parte de seu corpo, ainda que possa estabelecer um vínculo entre um objeto e uma determinada característica material. O dativo ético, que não pôde ser contemplado de modo acurado neste trabalho, pode ser representado pelo pronome lhe, já em referência à segunda pessoa do discurso, já em referência à terceira pessoa do discurso. É uma função claramente discursiva pela qual se expressa, no estado-de-coisas designado, a participação do interlocutor; daí o considerá-la uma variedade do dativo de interesse. Provavelmente, haja condições estruturais e, mormente, pragmáticas, de atualização desse tipo de dativo; e supomos que uma análise satisfatória do comportamento desse dativo dependa de uma reflexão cuidadosa sobre as condições discursivo-pragmáticas em que ele ocorre. É só mediante essa reflexão que se poderá apontar diferença, caso exista, entre esse tipo de dativo e o dativo de interesse. Sugerimos que uma análise que pretenda apontar diferença entre os dois tipos de dativo pode ancorar-se na idéia, que nos parece coerente, segundo a qual o dativo de interesse faz parte do enunciado, e o dativo ético está vinculado à enunciação. Procuramos também, neste trabalho, dar conta de aspectos semânticos e sintáticos dos usos do pronome lhe de modo integrado. Para tanto, foi preciso delinear uma separação entre eles e, quando da análise dos dados, associá-los, reconhecendo que os aspectos semânticos não devem ser encarados como determinantes de funções diferentes. Contudo, é evidente que concorram com os aspectos formais para os diferentes empregos do pronome lhe. É notável a influência do traço [+ humano] como condição relevante, embora não necessária, ao emprego do pronome lhe.

186 Para examinar os empregos de lhe a que podemos chamar circunstanciais e os empregos a que podemos chamar actanciais, foi necessário postular o conceito de previsibilidade valencial que, não obstante as questões controversas que suscite, serviu-nos para fundamentar nossa proposição. Assim é que ressaltamos a necessidade de a teoria lingüística, ainda que de base funcionalista, se preocupar com a descrição da estrutura lingüística, cuja existência é inegável. Essa estrutura, todavia, decorre do uso e é por ele influenciada. Por isso, deve-se evitar a abstração do uso; mas deve-se reconhecer a existência de esquemas estruturais previstos pelo sistema lingüístico. O uso, pois, é que forma os modelos estruturais pelos quais os falantes constroem seus enunciados e é, também, responsável por reorganizá-los, readaptá-los a cada situação discursiva. Esperamos tenha-se confirmado o pressuposto de que o lhe insere-se em esquemas sintático-semânticos bem variados. Por um lado, nas ocorrências que a tradição, provavelmente, considerasse como casos de objeto indireto, se verificou essa propriedade do lhe, já que pode substituir constituintes introduzidos por preposição diferente de a e representar papel semântico diferente do papel de destinatário. Por outro lado, casos há em que o lhe é empregado junto a verbos chamados de intransitivos, na tradição gramatical, substituindo constituintes circunstanciais. São exemplos ocorrências como reboar-lhe dentro, passarlhe ao longe, surgiu-lhe em frente etc., consideradas neste trabalho. Esses casos não se relacionam propriamente ao dativo de direção; o constituinte introduzido pela preposição ou locução prepositiva tem valor situacional ; mas o pronome lhe, não retomando toda a construção situacional, não é senão um elemento dessa construção. Semanticamente, refere-se a ser humano que serve como ponto de referência da situação descrita pelo verbo, à semelhança de um locativo (cf. O estrondo reboava dentro da sala / A voz da moça reboava-lhe dentro (dele)). Querer reunir aqueles particulares e expressivos usos do lhe sob o rótulo adjunto adverbial é ignorar seus aspectos sintáticos e semânticos, impedindo que se reconheça a necessidade de rever o tratamento tradicional dispensado ao emprego desse pronome, que é mais rico e variado do que se supunha. É prática corriqueira incluir lhe entre os complementos nominais, quando empregado junto a adjetivos, em estruturas do tipo ser + adjetivo. Maximino

187 Maciel chamava o lhe, nesses casos, de objeto indireto, porque se baseava na origem dativa. Esses empregos do lhe dão-nos testemunho do dativo subordinado, que, no latim, empregava-se junto a nomes. Em português, é comum o emprego do lhe, em referência a ser humano, junto a adjetivos, tais como favorável, conveniente, etc. Considerem-se tais casos como usos actanciais do lhe ; mas não devemos inseri-los em classe pré-existente. Perfazendo este trabalho, e esperando que tenha lançado luz sobre a questão dos usos do pronome lhe na modalidade escrita formal do português, gostaríamos de acrescentar que estudos futuros que pretendam apresentar um quadro teórico mais consistente das funções do pronome lhe não podem escusar a reflexão sobre os problemas teóricos decorrentes da concepção tradicional de objeto indireto, que acarreta, entre outras coisas, a dificuldade de classificar o lhe, de acordo com a função sintático-discursiva que desempenha. No que tange à revisão do legado teórico da gramática tradicional, demos a conhecer os casos em que lhe se aplica a substantivos [- animado], quer nos textos literários, quer nos textos de teoria lingüística, a que nos ativemos. O emprego de lhe em referência a substantivo [-animado] sinaliza senão uma inovação da língua, pelo menos uma tendência marcante da língua portuguesa atual. Há registro desse emprego nos textos literários em que nos baseamos, que remontam aos séculos XIX e XX; todavia, parece-nos que se tem propalado cada vez mais no português escrito atual, levando-se em conta os exemplos colhidos da literatura lingüística. Muitos usos de lhe já eram notórios no português arcaico; portanto, são bastante antigos. Em nosso trabalho, procuramos ventilar algumas questões concernentes ao uso do lhe no português escrito, em sua variedade formal; portanto, esse recorte teórico impediu-nos de estudar a manifestação do clítico na função de objeto direto, comum na variedade coloquial falada da língua. Como se percebeu, não nos preocupamos com a (re)classificação dos empregos de lhe, já que tal tarefa deve ser imputada a outros estudos; nossa descrição pretendeu suscitar questionamentos, incentivando a produção de outros trabalhos decerto mais elucidativos - que lhe sirvam de suplemento. Isso não nos impediu, todavia, de reconhecer a multifuncionalidade de lhe e de enfatizar a necessidade de rever as concepções tradicionais acerca do comportamento gramatical e discursivo desse pronome. Qualquer proposta de classificação não se

188 pode escusar a rever tais concepções, tampouco pode ignorar a proposição da multifuncionalidade do pronome lhe, numa teoria global da interação pela linguagem.