O PRINCÍPIO DE DIFERENÇA: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA DE JOHN RAWLS



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Transcrição:

1 O PRINCÍPIO DE DIFERENÇA: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA DE JOHN RAWLS Antenor Demeterco Neto* Sumário: Introdução. As interpretações preliminares. O princípio de diferença. A estrutura básica da sociedade. Conclusões. Bibliografia. INTRODUÇÃO Em Uma teoria de justiça John Rawls desenvolveu uma concepção geral de justiça que, em suas palavras, pode ser descrita da seguinte forma: Todos os valores sociais liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais do auto-respeito devem ser distribuídos de forma igual, a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores seja vantajosa para todos (2008, p. 75). Da análise dessa concepção geral pode-se concluir que a distribuição de benefícios sociais passou a preencher todo o vão traçado pela virtude da justiça, não sendo mais a justiça distributiva um mero elemento em busca de espaço na teoria de justiça (Fleischacker, 2006, p. 162). No entanto, a concepção geral de Rawls ainda não se refere a uma proposição completa de justiça, uma vez que os valores sociais ou bens primários passíveis de distribuição podem estar em confronto (Kymlicka, 2006, p. 67). Em Local justice Jon Elster classifica os bens a serem considerados por uma teoria de justiça distributiva em: a) os susceptíveis de distribuição pelas instituições sociais, como renda e riqueza, oportunidades e poderes, direitos e liberdades; b) os não susceptíveis de distribuição direta pelas instituições sociais, mas que são influenciados pela distribuição dos primeiros, como o conhecimento e o auto- * Advogado militante nas áreas do Direito Empresarial Público e do Direito Eleitoral e Partidário. Doutorando em Direito Econômico e Sócio-Ambiental pela PUC-PR. Mestre em Organizações e Desenvolvimento pela UNIFAE Centro Universitário. MBA em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas. Pós-graduado em Direito Tributário Contemporâneo pela Faculdade de Direito de Curitiba. Sócio da De Figueiredo Demeterco Sociedade de Advogados.

2 respeito; e, por último, c) os não influenciáveis pela distribuição de quaisquer bens, como as capacidades físicas e mentais dos seres humanos (Vita, 1999, p. 41). O raciocínio desenvolvido por Rawls reflete diretamente nos dois primeiros tipos de bens da classificação elsteriana, os quais são denominados de bens primários, e cujo direito a uma parcela se justifica simplesmente pelo fato das pessoas estarem empenhadas em alcançar uma existência digna, o que não seria possível sem a disposição desses recursos. Essa concepção geral de justiça proposta por Rawls, cuja idéia central é a de que os bens primários devem ser igualmente distribuídos a não ser que as desigualdades beneficiem aos mais desfavorecidos, depende de uma estrutura básica da sociedade que garanta a existência de dois princípios de justiça que devem ser interpretados de acordo com regras de prioridades lexicais, a saber: Primeiro princípio Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para todos. Segundo princípio As desigualdades sociais e econômicas devem ser dispostas de modo a que tanto: (a) se estabeleçam para o máximo benefício possível dos menos favorecidos que seja compatível com as restrições do princípio de poupança justa, como (b) estejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades. Primeira regra de prioridade (a prioridade da liberdade) Os princípios da justiça devem ser dispostos em ordem lexical e, portanto, só se podem restringir as liberdades básicas em nome da própria liberdade. Existem dois casos: (a) uma liberdade menos extensa deve fortalecer o sistema total de liberdades partilhado por todos; (b) uma liberdade desigual deve ser aceitável para aqueles que têm menor liberdade. Segunda regra de prioridade (a prioridade da justiça sobre a eficiência e o bem-estar) O segundo princípio de justiça precede lexicalmente o princípio de eficiência e o princípio da maximização da soma de vantagens; e a igualdade eqüitativa de oportunidades precede o princípio de diferença. Há dois casos: (a) a desigualdade de oportunidades deve aumentar as oportunidades daqueles que têm menos oportunidades; (b) uma taxa elevada de poupança deve, pesando-se tudo, mitigar o ônus daqueles que carregam esse fardo (2008, p. 376).

3 Esses dois princípios de justiça, afirma Fleischacker, analisados de uma forma geral, constituem uma definição contemporânea muito clara de justiça distributiva, a qual não existia antes de Rawls (2006, p. 166). Destaca ainda Fleischacker que: Os dois princípios de Rawls, em contraste, juntamente com a argumentação a seu favor, fornecem uma explicação compreensiva de (1) quais bens devem ser distribuídos, (2) que necessidades esses bens satisfazem, (3) por que se devem favorecer as necessidades sobre a contribuição, e (4) como se deve equilibrar a distribuição com a liberdade (de tal modo que a distribuição de liberdade tenha prioridade sobre toda distribuição de bens econômicos e sociais) (2006, p. 167). A efetivação desses dois princípios de justiça pela estrutura básica da sociedade estabelece o fundamento social do auto-respeito, que, para concepção rawlsiana, é o mais relevante dos bens primários. O objetivo desse artigo é discorrer acerca do primeiro componente do segundo princípio da teoria de justiça de Rawls, denominado de princípio de diferença, e cuja justificação inicial, explica Álvaro de Vita, está no fato de que é razoável que os mais favorecidos: (...) abram mão de parte dos benefícios que obteriam explorando as contingências naturais e sociais que os favorecem, porque fazendo isso mostram, nos arranjos básicos da sociedade, o respeito que têm pelos que se encontram na extremidade inferior. E somente quando os arranjos institucionais básicos dão um suporte efetivo para o auto-respeito daqueles que têm mais a perder com esses arranjos, podem os mais privilegiados esperar a cooperação voluntária dos mais destituídos (1999, p. 42). AS INTERPRETAÇÕES PRELIMINARES Para se entender melhor o processo de construção teórica do princípio de diferença, é preciso, antes de tudo, analisar o cotejo que Rawls faz dos três diferentes princípios ou sistemas em que se considera possível a efetiva distribuição de recursos sociais e econômicos, quais sejam: a) de liberdade natural; b) de igualdade liberal; e c) de igualdade democrática (2008, p. 79). Para o princípio de liberdade natural, uma estrutura básica justa da sociedade deverá aliar economia de mercado e igualdade formal de oportunidades. Para tanto, além das instituições de mercado, são imprescindíveis instituições que

4 garantam o acesso de todos às posições sociais mais favorecidas (Rawls, 2008, p. 80). A crítica que se faz ao princípio de liberdade natural é que tal sistema não impede que a distribuição de recursos seja afetada por uma preliminar distribuição de benefícios definida por condições naturais, sociais e culturais alheias à preferência individual: (...), como não há empenho para preservar uma igualdade, ou similaridade, de condições sociais, exceto à medida que isso for necessário para preservar as instituições de base necessárias, a distribuição inicial de recursos em qualquer período de tempo sofrerá forte influência de contingências naturais e sociais. (...). Intuitivamente, a injustiça mais evidente do sistema de liberdade natural é permitir que as parcelas distributivas recebam uma influência indevida desses fatores tão arbitrários de um ponto de vista moral (2008, p. 87). Já o princípio de igualdade liberal, na tentativa de corrigir a falha apontada no sistema de liberdade natural, não se limita em assegurar apenas uma igualdade formal de oportunidades, mas sim em demonstrar a imprescindibilidade de uma estrutura básica apta a neutralizar as contingências naturais, sociais e culturais que determinam os anseios que cada um possui de desenvolver e se utilizar de suas habilidades pessoais (Rawls, 2008, p. 87-88). Sua justificação é bem explicada por Vita: (...). Para os que têm sentimentos igualitários, a desigualdade social fundada em diferenças de talento e qualificação é ainda mais odiosa do que as desigualdades de renda e de riqueza consideradas em si mesmas. O talento e a qualificação, diversamente da propriedade dos meios de produção ou de bens imobiliários, são recursos que cada um carrega dentro de si mesmo em seu cérebro. Por isso, torna-se mais fácil e natural aos mais qualificados sustentar que, se eles se apoderam de quinhões distributivos maiores, isso se deve a atributos que são irredutivelmente individuais e, possivelmente, até mesmo inatos (1999, p. 45). No entanto, para Rawls, apesar de melhor que a liberdade natural, o sistema de igualdade liberal é insuficiente, pois ainda permite que a distribuição de renda e riqueza sofra certa influência de uma preliminar distribuição natural de habilidades individuais. Pois, não obstante ser conduzida por uma estrutura básica da sociedade, a distribuição dos recursos sociais continua a ser, de fato, determinada por uma loteria natural, o que é moralmente arbitrário e inaceitável. Além do que, a efetiva igualdade liberal de oportunidades só será possível quando não mais prevalecer na sociedade qualquer forma de célula familiar (2008, p. 89).

5 Ou seja, a igualdade liberal de oportunidades tende a aumentar não apenas a renda, mas também a parcela de recursos sociais das pessoas cujas habilidades pessoais são mais valorizadas pelo mercado (Rawls, 2008, p. 87-88). Novamente reporta-se a Vita para fundamentar melhor o argumento: Se uma igualdade eqüitativa de oportunidades fosse plenamente realizável, seria possível atribuir as desigualdades remanescentes às decisões e escolhas individuais ao mérito e ao esforço de cada um, o que, pelo critério da arbitrariedade moral, as tornaria não objetáveis do ponto de vista da justiça social. Uma igualdade desse cunho inteiramente à prova de objeções morais, no entanto, é inatingível porque, como vimos na discussão acima, não há como neutralizar os efeitos das contingências sociais sobre as condições em que os talentos são exercidos. Mesmo a seleção de que aptidões serão recompensadas, e em que medida, deve ser considerada uma contingência social. (...). Não há mérito individual ou contribuição individual que possa ser estimado fazendo-se abstração de contingências sociais e arranjos institucionais já dados; por isso, pretender justificar estes tomando aquele por fundamento constitui uma inversão que uma teoria aceitável da justiça não pode admitir (1999, p. 47). Esse debate acerca da noção de que a preliminar distribuição natural de habilidades pessoais deve ser encarada como moralmente arbitrária e que, por isso, não é um fator justo de distribuição dos recursos sociais, desemboca na pedra fundamental do terceiro e último princípio, o de igualdade democrática. Portanto, é necessário ultrapassar o princípio de igualdade liberal e alcançar o princípio de igualdade democrática. O sistema de igualdade democrática encara o moralmente arbitrário de uma maneira completamente diferente do princípio de igualdade liberal. O que está em jogo não é mais igualar as circunstâncias naturais, sociais e culturais para que cada um possa desenvolver suas habilidades pessoais, mas sim estabelecer um novo paradigma moral apto a justificar a reclamação dos recursos sociais gerados pela atividade desses talentos e aptidões individuais. A igualdade democrática requer que os mais favorecidos pelas circunstâncias naturais, sociais e culturais sejam capazes de concordar que suas habilidades pessoais, não obstante dignas de respeito, não constituem um paradigma moral capaz de justificar a reclamação de uma parcela maior dos recursos sociais decorrentes desse privilégio.

6 Segundo Thomas Nagel em Equality and partiality, na defesa do princípio de igualdade democrática existe um argumento de ordem moral e não individual. Já na oposição ao raciocínio rawlsiano acerca do moralmente arbitrário não se encontra uma concepção de justiça, mas sim uma noção de meritocracia pessoal propagada nas democracias ocidentais (Vita, 1999, p. 48). O sistema de igualdade democrática, como dito anteriormente, requer que os mais favorecidos pelas circunstâncias naturais, sociais e culturais concordem em não se utilizar das vantagens que essas condições lhes propiciam, a não ser que a utilização dessas mesmas vantagens também acarrete em incrementos nas parcelas dos recursos sociais destinadas aos desfavorecidos. Segundo Rawls, alcança-se a noção de igualdade democrática mediante uma comparação ordenada do sistema de igualdade liberal com o princípio de diferença. E a solução da concepção rawlsiana para atacar o moralmente arbitrário do ponto de vista do sistema de igualdade democrática, é justamente o princípio de diferença (2008, p. 91). O PRINCÍPIO DE DIFERENÇA Antes de adentrar em específico na análise do princípio de diferença, é importante esclarecer uma confusão terminológica muito comum na doutrina acerca desse tema. Muitos autores, em especial os economistas, se referem ao princípio de diferença como critério maximin, no entanto, como o próprio Rawls esclarece, esta não é a expressão mais correta: Talvez os economistas prefiram referir-se ao princípio de diferença como critério maximin, mas evitei esse nome por diversos motivos. O critério maximin costuma ser entendido como uma regra de escolha em situações de grande incerteza ( 26), ao passo que o princípio de diferença é um princípio de justiça. Não é recomendável usar o mesmo nome para duas coisas tão diferentes. O princípio de diferença é um critério muito especial: aplica-se primariamente à estrutura básica da sociedade por meio de indivíduos representativos cujas expectativas devem ser estimadas por intermédio de uma lista de bens primários ( 15). Além disso, chamar o princípio de diferença de critério maximin sugere, erroneamente, que a principal argumentação em defesa desse princípio, da perspectiva da situação original, provém de uma suposição de aversão ao risco muito alta (2008, p. 101). Feito este esclarecimento, passa-se à definição do princípio de diferença, para o qual, nas palavras de Rawls, as desigualdades sociais e econômicas devem ser dispostas de modo a que (...): se estabeleçam para o máximo benefício possível dos menos

7 favorecidos que seja compatível com as restrições do princípio de poupança justa (...) (2008, p. 376). Ou seja, as desigualdades sócio-econômicas só serão aceitáveis caso acarretem benefícios aos mais desfavorecidos na ordem de distribuição das parcelas dos recursos sociais. A idéia central, conforme o próprio Rawls descreve, é que: Presumindo-se a estrutura de instituições exigidas pela liberdade igual e pela igualdade eqüitativa de oportunidades, as expectativas mais elevadas dos que estão em melhor situação serão justas se, e somente se, fizerem parte de um esquema que eleve as expectativas dos membros mais desfavorecidos da sociedade. A idéia intuitiva é que a ordem social não deve instituir e garantir as perspectivas mais atraentes dos que estão em melhor situação, a não ser que isso seja vantajoso também para os menos afortunados (2008, p. 91). Sintetizando a idéia central da justificação do princípio de diferença, todos os elementos responsáveis, de uma forma geral, por um poder de resultados mais eficiente são moralmente arbitrários, o que sugere que o que não for uma distribuição igualitária de bens primários não é passível de justificação. Por mais que a situação de uma das pessoas melhore, do ponto de vista do princípio de diferença não há ganho algum, a não ser que a outra pessoa também ganhe (Rawls, 2008, p. 91). Como visto anteriormente o termo critério maximin só deve ser empregado para se referir à regra da escolha em situações de incerteza. A costumeira utilização equivocada do critério maximin como princípio de diferença, acaba por impedir o entendimento do real alcance deste. E os que incorrem neste erro acabam sugerindo que é melhor que a estrutura básica da sociedade possibilite uma maior parcela sem restrições, mesmo que não perfeitamente igual, dos recursos sociais para todos, do que uma igualdade de resultados garantida em detrimento das esperanças coletivas. No entanto, tal reflexão acaba por abrir o caminho para a transposição da sustentação em favor da mera igualdade na distribuição de bens primários para a do princípio de diferença, pois a importância neste último reside em verificar se a parcela de bens atribuída a cada um basta para a perseguição de seus objetivos de vida, e para, conseqüentemente, criar, um sentido de auto-respeito, que é o bem primário mais importante para a concepção rawlsiana.

8 Existe ainda outra maneira pela qual o princípio de diferença acaba encorpando o desenvolvimento do auto-respeito nos mais desfavorecidos. Como visto, os que se encontram em posições privilegiadas, ao não se utilizarem em benefício exclusivamente próprio das circunstâncias naturais, sociais e culturais que lhes favorecem, demonstram respeito pelos menos afortunados e, assim, auxiliam para que estes criem o seu sentido de auto-respeito. Dessa forma, os desafortunados acabam tendo consciência da renúncia feita pelos que estão acima deles na escala distributiva, mas, principalmente, consciência de que essa renúncia não foi feita por pena, mas sim pela disposição de convivência conjunta baseada em princípios de justiça. Por último, é importante analisar rapidamente o princípio de poupança justa, o qual trata do problema da justiça entre as gerações e constitui a restrição que complementa o enunciado do princípio de diferença. É natural, reconhece Rawls, que as gerações se perpetuem no tempo e que as vantagens econômicas sigam um único rumo (2008, p. 359). Porém, A geração atual não pode fazer o que bem lhe aprouver, mas é obrigada, por princípios que seriam escolhidos na posição original, a definir a justiça entre pessoas que vivem em épocas diferentes. Além disso, os homens têm um dever natural de apoiar e promover instituições justas e, para isso, é preciso aprimorar a civilização até certo nível (Rawls, 2008, p. 365). Ou seja, as gerações atuais devem definir o quanto devem poupar para as futuras gerações tomando como base o que acham justo reclamar das gerações anteriores. Para realizar a devida combinação do princípio de poupança justa com os seus dois princípios de justiça, Rawls esclarece que: (...) presume-se que esse princípio é definido do ponto de vista dos menos favorecidos de cada geração. (...). Encarregam-se, na verdade, de limitar a aplicação do princípio de diferença. Em qualquer geração, suas expectativas devem ser maximizadas obedecendo-se à condição de fazer a poupança que seria objeto de acordo. Assim, o enunciado completo do princípio de diferença contém o princípio de poupança como restrição. (...). É claro que não é preciso que a poupança dos mesmos favorecidos seja feita por meio de sua participação ativa no processo de investimento. Essa participação consiste em eles darem sua aprovação aos arranjos econômicos e de outros tipos necessários à acumulação adequada. A poupança é realizada aceitando-se com base em um julgamento político aquelas políticas concebidas para melhorar o padrão de vida de gerações posteriores dos

9 menos favorecidos, renunciando-se assim aos ganhos imediatos que estejam disponíveis. Ao se apoiarem esses arranjos, pode-se fazer a poupança necessária; e nenhum indivíduo representativo dos menos favorecidos em qualquer geração pode se queixar de que a outra não cumpriu a sua parte (2008, p. 364-365). Concluindo, é possível dizer que o princípio de diferença, combinado com a restrição do princípio de poupança justa, atua sobre as desigualdades sócioeconômicas, as quais continuariam a existir apesar da garantia de distribuição igualitária de bens primários a todos. A ESTRUTURA BÁSICA DA SOCIEDADE Como visto anteriormente, a existência dos dois princípios de justiça propostos por Rawls, entre eles o que açambarca o princípio de diferença tratado neste artigo, depende de uma estrutura básica da sociedade. O principal problema da justiça distributiva é a escolha de um sistema social. Os princípios de justiça se aplicam à estrutura básica e regulam o modo como suas instituições mais importantes se combinam em um único sistema. Ora, como já vimos, a idéia da justiça como eqüidade é usar a noção de justiça procedimental pura para lidar com as contingências de situações específicas. Deve-se estruturar o sistema social de modo que a distribuição resultante seja justa, independentemente do que venha a acontecer (Rawls, 2008, p. 342). A estrutura básica da sociedade que mais se aproxima, ainda que não perfeitamente, da realização da noção rawlsiana de justiça distributiva seria a do regime de democracia de cidadãos-proprietários, um modelo de arranjo de mercado apresentado por James E. Meade em Efficiency, equality and the ownership of property (Rawls, 2008, p. 341). A idéia central desse regime é a de que, além da distribuição de renda, a estrutura básica da sociedade promova políticas igualitárias com a finalidade de distribuir equitativamente a propriedade entre todos. O objetivo principal da estrutura básica de uma democracia de cidadãosproprietários é o de distribuir irrestritamente o capital sem interferir em demasia nos agente econômicos e na iniciativa privada. O perfeito seria que todos, além da renda obtida no mercado, tivessem uma renda proveniente da propriedade. Para tanto seria preciso tributar a riqueza em excesso e a renda proveniente da propriedade privada do capital.

10 O imposto sobre a herança e sobre a renda com taxas progressivas (quando necessário) e a definição legal dos direitos de propriedade devem assegurar as instituições da liberdade igual em uma democracia de cidadãos-proprietários, assim como o valor eqüitativo dos direitos estabelecidos por elas. Os impostos proporcionais sobre o consumo (ou sobre a renda) devem fornecer a receita para os bens públicos, para o setor de transferências e para a instituição da igualdade eqüitativa de oportunidades na educação, e assim por diante, de modo que implantem o segundo princípio (Rawls, 2008, p. 348). Em outras palavras, o arranjo institucional sócio-econômico proposto por Meade e aceito por Rawls, é descrito por Vita da seguinte forma: (...). O arranjo institucional socioeconômico de sua Agathotopia consiste em um tripé formado: pelas instituições tributárias, para promover a dispersão da propriedade e da riqueza produtiva; pela introdução de incentivos fiscais que encorajem a substituição, em uma parte considerável do setor privado, da empresa capitalista existente nos moldes atuais que funciona mediante a contratação de trabalhadores em troca de um salário fixo por uma forma institucional que ele denomina parceria do capital com o trabalho ; e pela gradual introdução de uma renda básica incondicional em substituição aos benefícios condicionais do welfare state (1999, p. 52). Portanto, Rawls entende que uma estrutura básica da sociedade como a que foi aqui descrita bastaria para espalhar a propriedade sobre os meios de produção e recursos naturais, bem como para assegurar uma suficiente parcela social mínima a todos (2008, p. 349). CONCLUSÕES O ponto de partida da concepção rawlsiana, e que também leva à construção da proposta teórica do princípio de diferença, é a idéia de que só serão admitidas as desigualdades sócio-econômicas que gerem vantagens aos menos favorecidos. Por isso, é notório que o princípio de diferença exige, principalmente dos mais privilegiados pelas circunstâncias naturais, sociais e culturais, uma carga obrigacional de ordem motivacional muito grande. O ideal do princípio de diferença desenvolvido por Rawls acredita que os mais favorecidos seriam capazes de, com suas habilidades pessoais, darem o máximo de si no mercado e, ao mesmo tempo, acharem que os recursos sociais produzidos por seus próprios talentos e aptidões são moralmente arbitrários e, por isso, não devem ser retidos e sim distribuídos.

11 Diante disso, não é fácil acreditar que um arranjo institucional, qualquer que seja, possa efetivar a realização do princípio de diferença sem antes promover a aceitação da idéia em caráter individual. O ser humano e seu velho componente egoístico continuam a ser os principais obstáculos a quaisquer princípios igualitários. BIBLIOGRAFIA FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma introdução. Trad. Luís Carlos Borges. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. RAWLS, John. Justiça e democracia. Trad. Irene A. Paternot. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.. Uma teoria da justiça. Trad. Jussara Simões. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. 1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.. Uma concepção liberal-igualitária de justiça distributiva. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: ANPOCS, v. 14, n. 39, p. 41-59, fev./1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v14n39/1721.pdf.>