SENHORA E RAINHA: A IMAGEM DA VIRGEM MARIA NA HISTÓRIA DO OCIDENTE CRISTÃO ENTRE OS SÉCULOS XIII E XV. FERONATO, Virginia (UEL) VISALLI, Angelita Marques (UEL) INTRODUÇÃO Este estudo nasceu do desejo de encontrar significado histórico para as representações da Virgem Maria como rainha. Para tanto optamos por focá-lo em imagens da Virgem como Rainha, no Ocidente Cristão entre os séculos XIII e XV por acreditar que os elementos simbólicos que aparecem nesse período aproximam-se dos estão presentes nos cerimoniais de coroação da Virgem que são realizados no seio da Igreja Católica. Essa cerimônia devocional ganhou popularidade após a proclamação do dogma da Assunção em 1950 e da instituição da festa de Maria Rainha, em 22 de agosto de 1954. Entretanto, as representações marianas em majestade datam do início da era cristã com especial atenção à Igreja do Oriente. É bastante provável que Maria tenha sido venerada como patrona de Constantinopla desde 588, durante o império de Maurício. Lá ela recebeu o título de Mãe de Deus (Theotokos) e substituiu as antigas divindades de origem grega, como Tyche e Rhea. Ali também, provavelmente, nasceu a realeza mariana bastante ligada às imperatrizes bizantinas. 1
É necessário salientar que essa representação simbólica da Virgem como rainha passou pelos processos de inculturação que acompanhou o estabelecimento da fé cristã no Império Romano. Em Constantinopla, capital do Oriente, a família real recriou os símbolos cristãos com base no que tinha em mais alta consideração - o império, mesclando devoção e poder, por isso, Jesus é o rei e sua mãe a rainha. No Medievo, desde a queda de Roma e o estabelecimento dos reinos bárbaros, os conflitos eram constantes, portanto, era normal que a institucionalização dogmática e doutrinal também atravessasse conflitos 1. Isso permitiu inúmeras formas de espiritualidade mariana. Espiritualidade que às vezes nasceu de questionamentos eclesiais, outras vezes de questionamentos monárquicos e inúmeras vezes de devoções populares. Mediante esse quadro, um estudo sob a ótica sócio-política, torna-se importante. No Ocidente, o culto mariano tem seu crescente após o governo de Carlos Magno, quando foi representada como rainha e protetora de vários reinos em formação. A imagem sacra não era vista pelo cristão medieval como uma ilustração, mas alcançava valores diversos em seu universo cultural. Poderia ser um instrumento de leitura bíblica para os analfabetos, uma arma na guerra, a cura na doença, agente de milagres e objetos de culto. Imagens eram encomendadas como ex-votos por alguma graça alcançada e, por vezes, transformadas em objetos de doutrinação. Os trabalhos com fontes imagéticas, que estaremos utilizando nessa pesquisa, vêm fazendo inúmeros progressos dentro da História. O surgimento de novas abordagens tem sugerido um leque amplo de novidades. 1 Vauchez, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed, 1995. p 149. 2
Peter Burke diz que a História lança mão cada vez mais de uma gama mais abrangente de evidências, na qual as imagens têm seu lugar ao lado dos textos literários e testemunhos orais. 2 Daniel Russo 3, que trabalhou na tentativa de sintetizar as representações mariais no Ocidente, aponta três grandes momentos destas: O momento Românico que se concentra na afirmação de Maria como Rainha do céu e da Igreja nascente; caracteriza-se pela inspiração oriental e tem seu esplendor nos séculos V e VI. O momento imperial com predominância carolíngia bastante ligada ao momento em que a sagração dos reis torna-se obrigatória; entre os séculos XI e XII surgem as ordens de coroamento onde a sagração da rainha também é discutida. O momento gregoriano, nos séculos XIII e XIV, quando embasadas nas reformas religiosas de Gregório, tem-se o intuito de fortalecer a independência da Igreja frente os poderes seculares. Russo também salienta que: A iconografia marial e seus pertences junto as representações da arte cristã, aparecem sempre situadas no centro de uma história político-religiosa intensa, onde se misturam, de maneira inextrincável, na defesa da fé, aquela da ortodoxia, a consagração de uma legitimidade pela adoção de um grande modelo prestigioso, ou o reconhecimento simbólico de uma área de poder, de um território: em último caso, a expansão estereotipada do personagem marial conta mais que as elaborações originais. Ao analisar o culto da virgem sobre o reinado de Carlos, o Calvo Dominique Iogna-prat 4 afirma que: 2 BURKE, Peter. Testemunha ocular. Col. Imagem e História. Trad. Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru: Edusc, 2001. p.12 3 RUSSO,Daniel. Lês représentations mariales dans l art d Occident in IOGNA-PRAT, Dominique; PALAZZO, Eric e RUSSO Daniel. Marie: lê culte de la Vierge dans la société médiévale. Paris, Beauchesne, 1996. p.175-176. 3
[...] tal é o apoio político do culto mariano que explica que um soberano cristão se preocupa em mesclar sua imagem a da Virgem, rainha e poderosa mediatriz [...]. Boff 5 nos lembra que a Virgem Rainha do Ocidente tem uma fundamentação bíblica, teológica e patrística muito mais que política e social, entretanto será possível perceber que a conotação ideológica e política é, por vezes, aclamada na afirmação dos reinos cristãos que a chamam Regina, Domina e Imperatrix. E por último e não menos importante, cabe aqui uma consideração sobre o recorte temporal. O período que vai do século XIII ao século XV é caracterizado como grande período de transformações nas estruturas políticas, religiosas e sócio-culturais do medievo: a Igreja deseja mostrar seu poder e construir um Império Católico, a burguesia crescente, principalmente nas cidades italianas, deseja tomar parte da vida política e o fortalecimento do poder real precisa de uma justificativa religiosa. Isso explica também a escolha dessas quatro representações artísticas, pois estão ligadas a essas transformações. O mosaico de Jacopo Torriti, em Santa Maria Maior, foi encomendado pelo Papa Nicolau IV em uma das muitas reformas que sofreu a basílica que é considerada o palácio mariano, a casa da rainha 6. A Majestade de Giotto e a Coroação da Virgem de Fra Angélico são produzidas na Florença pré renascentista. E o Diptico de Winth coloca não menos que Ricardo II em adoração a Virgem Rainh JUSTIFICATIVA 4 IOGNA-PRAT, Dominique. La vierge et les ordines de coruronnament des reines au ix siècle in IOGNA-PRAT, Dominique; PALAZZO, Eric e RUSSO Daniel. Marie: lê culte de la Vierge dans la société médiévale. Paris, Beauchesne, 1996. p.67 5 BOFF, C. op cit. p.174 6 MEAOLO, Gaetano. Dedicação de Santa Maria Maior in Dicionário Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995. p.375. 4
A religiosidade medieval tem merecido inúmeros estudos historiográficos por ser uma característica marcante do período. Análises culturais e sociais sobre as representações do divino no imaginário popular ocupam espaço significativo. No campo da teologia, tanto na Igreja Católica como em correntes protestantes, sobram estudos sobre o papel de Maria na economia da salvação e de como essa imagem é assimilada em diversas culturas no cotidiano. Entretanto, a História tem um grande caminho a percorrer tendo-a como objeto. Símbolo feminino do cristianismo seu papel histórico tem encontrado imensas lacunas, como é o caso do final da era romana no Ocidente e da Idade Moderna, períodos carentes de estudo 7. No medievo a devoção Mariana é vista como intermediária entre céu e terra. Jacques Le Goff, é o grande defensor da idéia de que Maria é a figura da espiritualidade medieval 8 e por isso o tema ocupa espaço considerável nesse recorte temporal. Daniel Russo também levanta a mesma problemática quando realiza suas pesquisas sobre iconografia mariana classificando-a como um terreno fragmentado principalmente no que tange a cronologia. Visalli argumenta: A importância do papel do personagem Maria na história do cristianismo e particularmente, na construção da sociedade cristã medieval não possui ainda o devido respaldo em termos de estudos históricos. 7 PELIKAN, Jeroslav. Maria através dos séculos: seu papel na história e da cultura. Trad. Vera Camargo Guarnieri. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.19. 15 LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média Conversas com Jean Pouthier. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 16 BOFF, Clodovis M. OSM. Mariologia social: o significado da virgem para a Sociedade. São Paulo: Paulus, 2006. p.195. 17 RUSSO,Daniel. Lês représentations mariales dans l art d Occident in IOGNA-PRAT, Dominique; PALAZZO, Eric e RUSSO Daniel. Marie: lê culte de la Vierge dans la société médiévale. Paris, Beauchesne, 1996. p.175. 18 VISALLI, Angelita Marques. Cantando até que a morte nos salve: estudo sobre laudas italianas do século XII e XIV. Tese. São Paulo: USP, 2004. p. 203-204. 5
E demonstra estranheza ao fato por considerar que: [...] a devoção (mariana) sempre esteve presente, suas imagens se perpetuaram nos santuários, as instituições a ela dedicadas resistem ao tempo, e outras são erigidas, fundadas, ou seja, tratamos de um personagem que não se ausentou da vida religiosa dos cristãos, ainda que em determinadas épocas sua importância tenha diminuído [...] por que demoramos tanto a voltar nossos olhos ao seu estudo? Entretanto considerando-se todas as dificuldades e limitações que advêm do tema mariano faz-se necessário uma rigorosa seleção de fontes. Por isso a opção pelo estudo de representações da Virgem em majestade. E por quê em Majestade? Acreditamos que essa representação está bastante ligada às relações de poder e que ao mesmo tempo que ocupa caráter devocional, exaltando a mãe de Cristo como Rainha, demonstra a quais propósitos terrenos elas podem dar suporte. Objetivo Geral: Compreender as representações e devoções de Maria Rainha na Baixa Idade Média (séculos XIII ao XV). Objetivos Específicos: Analisar o desenvolvimento das representações iconográficas de Maria Rainha, relacionando-as com a posição teológica e dogmática e investigando os diversos significados que são a ela atribuídos no desenvolvimento de sua devoção. Desenvolver estudo sobre quatro representações iconográficas compreendendo-as em seus contextos de produção específicos analisando a partir delas os elementos presentes nos cerimoniais de coroação da Virgem. 6
Compreender o desenvolvimento das representações simbólicas da Virgem Rainha no quadro do fortalecimento do poder entre os séculos XIII e XV; Metodologia Por não ser estática a metodologia histórica abarcou correntes diversas e chegou a que denominamos de História Cultural. Peter Burke, ao argumentar sobre esse conceito, diz que ele é uma reação à tentativas de estudar o passado que deixaram de fora algo ao mesmo tempo difícil e importante de se entender 9 (Burke, 2004). A História Cultural, ainda que em desenvolvimento, e ainda sofrendo muitas críticas oferece, ao nosso ver, uma perspectiva maior de abordagem do objeto de estudo a que nos propomos, visto que por dialogar melhor com outras disciplinas científicas, amplia possibilidades de interpretação. A imagem possui neste trabalho o estatuto de fonte e não mera ilustração, necessitando de suporte metodológico específicos. Optamos pelos sugeridos por Annie Duprat 10. Em sua obra essa historiadora sugere que as imagens sejam analisadas considerando-se por primeiro o interesse que tem o produtor da obra e sua relação com o artista contratado. O período recortado é considerado por alguns historiadores da arte como pré-renascentista o que nos proporciona vislumbrar o crescimento do mecenato, assim como das transformações econômicas que o ocidente vinha sofrendo. Nesse contexto, que interesses tinham os mecenas que encomendaram as obras que tomaremos como fonte? O que desejavam exaltar com elas? Quanto ao artista, ele atendeu a esses interesses? Usou de sua liberdade criacionista e expôs na obra também seus valores? 9 BURKE, Peter. Testemunha ocular. Col. Imagem e História. Trad. Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru: Edusc, 2001. p.12 10 DUPRAT, Annie. Images et Histoire Outils e métodhes d analyse des documents iconographiques. Paris: Edition Belin, 2007. 7
As imagens são criadas para propósitos próprios, por isso seus custos, sua dimensão e os materiais empregados nela são funções da destinação de cada obra (Schimitt, ano p.604). Sendo assim, as imagens não se mantêm na imparcialidade elas são pensadas para um público específico e também atendem a interesses diversos. Podem servir como um adereço, mas podem querer evocar memória. As imagens em questão são consideradas sacras o que já mostram como a sua primeira intenção a aproximação com o divino, mas abarcam consigo um sentido utilitário que pode ser devocional, votivo e em algumas, terem o claro propósito de reforçar uma ideologia política-religiosa. 11 Outro cuidado metodológico sugerido por Duprat é com relação à interpretação da obra: o que se vê é realmente o que se quer mostrar? Para uma interpretação adequada faz-se necessário inserir a obra em seu contexto social, cultural e político bem como nas circunstâncias nas quais a imagem foi produzida, o local onde se pretendia exibi-la, as alegorias que traz em seu bojo, o simbolismo que deseja exprimir. Burke comunga desse mesmo procedimento e acrescenta que nessa visão resumida de enfoques mais ou menos novos para a imagem, há lugar para a história social e cultural (BURKE, 2004 p. 225). REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Brasília: Editora UNB, 1993. BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. Trad. Vera Maria Pereira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. BÍBLIA APÓCRIFA, col. Morte e assunção de Maria: Trânsito de Maria e Livro do Descanso. Petrópolis: Vozes, 2001. BÍBLIA DE JERUZALEM. Edição para estudos teológicos, Trad. São Paulo: Paulus, 1973. 11 SCHIMITT, Jean-Claude. Imagens in Dicionário temático do Ocidente Medieval. P. 590-591. 8
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