PROJETO TERRA: BREVE NOTÍCIA Juraci Dórea O sertão é, para o Projeto Terra, a referência primeira. Trata-se de uma região árida, castigada por longas estiagens, onde o cotidiano das pessoas, muitas vezes, limita-se ao doloroso exercício da sobrevivência. Ainda assim, é um lugar que, por seu passado histórico e por seu rico imaginário popular, revela-se como uma das mais importantes facetas da cultura brasileira. O escritor Euclides da Cunha, que no final do século passado percorreu o território como correspondente de guerra, registra, já naquela época, as agruras dos sertões: Na plenitude das secas são positivamente o deserto. Mas quando estas não se prolongam ao ponto de originarem penosíssimos êxodos, o homem luta como as árvores, com as reservas armazenadas nos dias de abastança e, neste combate feroz, anônimo, terrivelmente obscuro, afogado nas solidões das chapadas, a natureza não o abandona de todo. Ampara-o muito além das horas de desesperança, que acompanham o esgotamento das últimas cacimbas 1. Esse amparo, no entanto, pouco significa, diante de condições ambientais tão adversas. No fundo, a vulnerabilidade, que decorre do clima rigoroso da região, incide de forma dramática sobre a vida do sertanejo, fazendo-a oscilar entre breves períodos de fartura e fases em que homens, mulheres e crianças ficam reduzidos à miséria quase absoluta. Do ponto de vista físico, o sertão não tem limites muito precisos. Por isso, qualquer tentativa de abordá-lo passa por obrigatório recuo no tempo, uma vez que suas origens remontam ao processo de colonização do Nordeste brasileiro. Num primeiro momento, essa colonização foi de caráter agrário e estava associada às áreas costeiras, ao massapê e à cultura da cana-de-açúcar. Em seguida, passou a ser de natureza pastoril e a estender-se para o interior, para as zonas chamadas de terra adentro 2, enfim, para o sertão. Foi, sem dúvida, o boi que provocou a descoberta do sertão, assinalando os 1 CUNHA, Euclides da, Os Sertões: campanha de Canudos, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S. A., 1989, p.37. 2 BRUNO, Ernani Silva, História do Brasil Geral e Regional, vol. III, São Paulo: Editora Cultrix Ltda, 1957, p. 53.
pontos cardeais da província com o rastro do seu passo vagaroso e constante 3, explica o escritor e poeta baiano Eurico Alves, no ensaio Fidalgos e Vaqueiros. De fato, na trilha das boiadas e dos currais surgiram, a partir de meados do século XVII, numerosos povoados, alargando o mapa da região e, em especial, configurando a nova ordem socieconômica do Brasil Colônia. Convém lembrar que existem ainda hoje diferenças consideráveis entre o Nordeste do litoral que nasceu da monocultura do açúcar e, consequentemente, teve em suas raízes fortes influências afro-européias, e o Nordeste sertanejo, que surgiu da civilização do couro, isto é, da labuta pioneira de vaqueiros e fazendeiros em busca de bons pastos para o rebanho. O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre observa que dentro da unidade essencial, que nos une, há diferenças às vezes profundas 4. E mais: O Nordeste do massapê, da argila, do humus gorduroso é o que pode haver de mais diferente do outro, de terra dura, de areia seca 5. Geralmente associado a imagens desoladoras, secas e a agressivos mandacarus, o sertão, no entanto, tem o poder de cativar as pessoas. Não é à toa. Apesar dos problemas que o envolvem, sempre foi considerado, por seus valores históricos e culturais e mesmo pela poesia bruta de sua paisagem, como um lugar emblemático. Além disso, o isolamento da região, que deixa a maioria de seus habitantes à margem da vida moderna, como se fossem personagens suspensas no tempo, tem, paradoxalmente, contribuído para preservar relevantes aspectos de nossa brasilidade nordestina. São caminhos e contradições que emergem da contundente realidade sertaneja. Ou, como escreveu Guimarães Rosa: Ah, mas, no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo! 6 É assim o sertão. Como um misterioso caderno de notas, seu território é feito de perguntas, desafios, solidão. Solidão que parece estar em todas as coisas, nas pedras, nos matos, nas noites de lua e até no coração dos homens. E são tantos os sertões, embora muito próximos, quase indivisíveis. Há, por exemplo, o do cinema de Glauber Rocha. Há o das canções de Elomar. Há o das letras, representado por nomes como João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, João 3 BOAVENTURA, Eurico Alves, Fidalgos e Vaqueiros, Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1989, p. 22. 4 FREYRE, Gilberto, Nordeste, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1961, p. 6. 5 Id., ibid. 6 ROSA, João Guimarães, Grande Sertão: Veredas, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1968, p. 217.
Guimarães Rosa e Ariano Suassuna. E há, também, o do fogo e da guerra de Canudos, de Euclides da Cunha. Já o sertão do Projeto Terra é aquele que se inicia em Feira de Santana ( primeira cancela para o sertão baiano 7, no dizer do crítico de arte Ivo Vellame), cidade situada a 108 quilômetros da capital do Estado e que alcança lugares distantes como Euclides da Cunha, Monte Santo, Canudos e Raso da Catarina. Nessa região, cenário de minha infância e de minhas leituras, povoada por roceiros, vaqueiros, poetas populares, cantadores e, no passado, por beatos e cangaceiros, sempre encontrei as referências para o meu trabalho. Em 1981, por exemplo, comecei a desenvolver a série Terra. Composta por obras bidimensionais, em couro curtido e madeira, era inspirada numa cena ainda hoje comum na caatinga: os couros de boi espichados sobre varas e deixados ao tempo. Ao participar, no ano seguinte, de um concurso instituído pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, encaminhei uma proposta que, embora utilizando estruturas tridimensionais, dava seguimento a essa idéia. Intitulada de Projeto Terra, colocava em foco certas questões da arte contemporânea e optava por uma mudança radical no que diz respeito ao processo de veiculação das obras: elas não seriam mostradas em museus ou galerias de arte, mas no próprio espaço do sertão. A proposta foi uma das seis vencedoras do concurso e, em junho de 1982, comecei a construção da primeira escultura. O local escolhido foi um velho pasto da Tapera, fazenda localizada a poucos quilômetros de Feira de Santana. Em finais de 1983, o Projeto Terra recebeu nova bolsa de trabalho, agora concedida pelo Instituto Nacional de Artes Plásticas, órgão da Funarte, através do Concurso Ivan Serpa, realizado naquele ano com o objetivo de apoiar a produção de artistas plásticos contemporâneos. Com essa bolsa, o Projeto ampliou sua área de atuação, alcançando novos municípios do sertão baiano. Passou também a contar com dois momentos: um envolvendo esculturas e outro, pinturas. As esculturas, quase sempre de grandes dimensões, eram construídas em madeira e couro curtido. Apresentavam, como ainda hoje, conotação plástica abstrata, mas, nem por isso, afastavam-se das referências materiais e culturais da região. Já as pinturas executadas em carvão sobre madeira, e mostradas em exposições itinerantes pelo sertão, ou mesmo realizadas diretamente sobre as paredes 7 VELLAME, Ivo. In: DÓREA, Juraci, Terra 2, Salvador: Edições Cordel, 1988 (orelha).
das toscas casas da região, a exemplo do Mural da Casa de Edwirges (1984) também tinham como ponto de partida a cultura popular sertaneja. Nesse particular, as ilustrações dos folhetos de cordel, publicações singelas, que ainda hoje podem ser encontradas nas feiras do Nordeste. A recriação dessa faceta da nossa cultura está nas séries Histórias do Sertão e Fantasia Sertaneja e mereceu do crítico Eduardo Evangelista o seguinte comentário: Juraci Dórea apropria-se desse cabedal e o transmuda, pela sensibilidade, em novas configurações, recontando as estórias das gentes sertanejas com traços singulares, como verdadeiro protagonista da experiência estética, de modo radical e imprevisível 8. Em ambas as situações, a idéia era retirar a obra de arte do circuito urbano, ou seja, dos museus e das galerias de arte, e colocá-la ao alcance de um novo público, o homem do campo, que na maioria das vezes não havia freqüentado escolas e que dificilmente teria a oportunidade de conhecer as manifestações da arte atual. Isso invertia, de certa maneira, o mecanismo tradicional de circulação da obra de arte, delineando novas possibilidades para um itinerário que sempre se limitou às grandes cidades. Assim, ao invés de exposições nos espaços culturais urbanos, as obras passaram a ser mostradas em feiras livres, encruzilhadas, caminhos de boiadas, descampados, margens de rios e açudes, no meio da caatinga, enfim, no próprio sertão. Analisando a proposta, diz o crítico de arte brasileiro Frederico Morais: fazendo uma arte autenticamente regional, mas sem cair nos vícios de um folclorismo ou populismo para consumo erudito, Juraci Dórea vai dando sua versão de questões tão atuais e complexas como arte mural, arte pública, museu ao ar livre, participação do público e até mesmo da chamada arte conceitual 9. Todas as etapas do projeto vêm sendo documentadas, através de fotografias, vídeos e, sempre que possível, de gravações que registram o conceito que os sertanejos têm da arte. Trata-se de um material que, além do valor sociológico, tem permitido ao Projeto Terra participar de mostras de arte, no Brasil e no exterior, dentre as quais: Concurso de Projetos, Salvador (1983); Bolsa Ivan Serpa I, Rio de Janeiro (1986); 19ª 8 EVANGELISTA, Eduardo, catálogo da exposição Pintura e Escultura do Nordeste do Brasil, Espaço Oikos, Lisboa, l996. 9 MORAIS, Frederico, Na arte de Dórea, sertão vira sertão, O Globo, Rio de Janeiro, 8.7.1985, cad. 02, p. 3.
Bienal de São Paulo (1987); 43ª Bienal de Veneza (1988); 3ª Bienal de Havana (1989); e Pintura e Escultura do Nordeste do Brasil, Lisboa (1996). A partir da década de 90, sem que isso tenha sido uma atitude premeditada, as esculturas começaram a ganhar espaço no Projeto Terra. Por motivos práticos (entre eles a proximidade de Feira de Santana), a maioria delas passa, então, a ser realizada na região de São Gonçalo dos Campos e, em especial, na fazenda Tapera. Nessa fase, as ações do Projeto são menos numerosas que nos anos 80, limitando-se praticamente a uma ou duas intervenções por ano. Por outro lado, convém observar que o amplo acervo documental que circunda o Projeto Terra, e que, num primeiro plano, remete à proposta artística propriamente dita, vem se caracterizando também como sugestivo recorte da realidade sertaneja. Sistematizado e publicado aos poucos, esse material surpreende-nos, a cada dia, pelas múltiplas possibilidades de leituras, ultrapassando assim a mera expressividade plástica e deixando-se permear por novos conteúdos e novas percepções.