PLANO DIRETOR MUNICIPAL: TRÊS QUESTÕES PARA DISCUSSÃO 1



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Transcrição:

PLANO DIRETOR MUNICIPAL: TRÊS QUESTÕES PARA DISCUSSÃO 1 Roberto Braga 2 O presente artigo tem como objetivo contribuir para a discussão de três questões que têm sido motivo de controvérsia entre os planejadores já faz algum tempo: - o que é, ou o que deve ser, um plano diretor; - por que os planos diretores não deram certo até hoje; - como elaborar um plano diretor que dê certo. Embora a nos pareça que a primeira questão encerra a resposta das demais questões, começaremos por tentar responder a segunda questão. 1. Por que os planos diretores não deram certo? A atual obrigatoriedade da elaboração de planos diretores municipais, imposta pela Constituição Federal de 1988 ( artigo 182 ), não é novidade para os municípios paulistas. Já em 1967, a então Lei Orgânica dos Municípios ( Lei n. 9.842/67, posteriormente alterada pelo Decreto Lei Complementar n. 09 de 31 de dezembro de 1969 ) determinava a obrigatoriedade da elaboração do plano diretor ( então denominado plano diretor de desenvolvimento integrado, o chamado de PDDI ) a todos os municípios paulistas, e mais ainda, estabelecendo como punição aos municípios faltosos, a proibição de auxílio financeiro pelo Estado. Sobre a experiência dos PDDI's foi realizado em 1975, pela Faculdade de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo, um estudo intitulado "Avaliação do Planejamento Municipal no Estado de São Paulo", sob a coordenação do professor Eurico Andrade Azevedo, no qual foram pesquisados 107 municípios e efetuada uma avaliação da experiência dos planos diretores. Extraímos deste estudo, as três tabelas abaixo, que nos ajudarão a compreender o fenômeno: 1 Artigo originalmente publicado em : CADERNO DO DEPARTAMENTO DE PLANEJAMENTO (Faculdade de Ciências e Tecnologia UNESP), Presidente Prudente, vol 1, n. 1, Agosto de 1995, pp. 15-20. 2 Professor Doutor do Departamento de Planejamento Territorial e Geoprocessamento da UNESP/Campus de Rio Claro.

TAB. 1 - DISPONIBILIDADE DE PLANO DIRETOR DISPONIBILIDADE QUANT. PORCENT. Tem 30 28,0% Parcialmente abandonado 06 05,6% Abandonado totalmente 35 32,7% Em elaboração 16 14,9% Não tem 20 18,7% TOTAL 107 100% TAB. 2 - MOTIVOS QUE LEVARAM À ELABORAÇÃO DO PDDI MOTIVO QUANT. PORC. Obrigação imposta pela Lei Orgânica 48 56,5% Facilitar a obtenção de Financiamentos 02 02,4% O projeto do plano diretor foi financiado 01 01,2% Pressão de organismos estaduais 03 03,5% Insistência ou facilidades pessoais 02 02,4% Racionalizar a administração municipal 20 23,5% Ordenar o crescimento urbano 07 08,2% Melhoria da qualidade de vida da população 01 01,2% Melhor planejamento da cidade 01 01,2% Total 85 100% TAB. 3 -ENTIDADES QUE ELABORARAM O PDDI ENTIDADES QUANT. PORC. Empresas privadas 38 42,2% A própria prefeitura 12 13,3% CEPAM* e a prefeitura 14 15,6% Consultores individuais 09 10,0% Faculdades 05 05,5% Outros 11 12,2% Ignorado 01 1,1% Total 90 100% * CEPAM - Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal Fundação Prefeito Faria Lima Podemos observar, na tabela 1, que após seis anos de obrigatoriedade, de um total de 107 municípios pesquisados, 78 % dos mesmos não tinham, ou já haviam abandonado o plano diretor, apenas 28 % tinham seu plano diretor disponível ( o que não quer dizer, necessariamente, que o mesmo tenha sido implementado eficazmente ).

A tabela 2, onde são colocados os motivos que levaram à elaboração do plano diretor, nos dá um forte indício das causas do problema. Mais da metade dos municípios pesquisados só elaboraram seu plano diretor devido à obrigatoriedade legal imposta. Se somarmos este a outros motivos alheios ao planejamento municipal, teremos um total de 65,9 % contra apenas 34,1 % dos municípios que elaboraram o plano diretor, pensando no mesmo como um instrumento de planejamento e de melhoria da qualidade de vida no município. A tabela três nos mostra outro indicador importante. Apenas 13,3 % das municipalidades tiveram competência técnica e administrativa para elaborarem sozinhas seus planos diretores. A maioria (52,2 %) valeu-se de empresas ou consultores individuais, o restante dependeu de órgãos públicos, universidades ou outras alternativas não autônomas. Os dados expostos acima nos dão um quadro bastante esclarecedor dos motivos do fracasso dos PDDI's paulistas, dos quais podemos considerar dois como os principais: 1) A obrigatoriedade da elaboração do plano diretor não conscientizou os agentes públicos municipais da importância do planejamento enquanto um processo mais eficiente de gestão, os quais encararam o plano apenas como uma exigência burocrática e inútil ou como um instrumento útil apenas para facilitar a obtenção de financiamentos públicos. 2) A elaboração da maioria dos planos diretores por órgãos ou empresas estranhas à administração pública local, o que tende a acarretar os seguintes problemas que inviabilizam sua implementação: a) os planos ficam interessantes tecnicamente mas inviáveis politicamente; b) os planos não ficam bons nem tecnicamente nem politicamente pois os elaboradores não conhecem a realidade local e; c) o plano diretor torna-se um corpo estranho à administração local que não participou de sua elaboração e, portanto, não o encara como um instrumento legítimo, não tendo assim interesse na sua implementação. O fracasso dos PDDI's deveu-se, resumindo, à uma má concepção de planejamento por parte das autoridades legislativas, que resolveram instituí-lo por decreto e também de uma conseqüente não compreensão de seu significado pelas prefeituras. Tal significado discutiremos no próximo tópico

2. O que é e o que deve ser o plano diretor. Formalmente, o plano diretor é uma lei municipal, obrigatória para os municípios com cidade de população superior a 20.000 habitantes e que deve ser o instrumento básico da política municipal de desenvolvimento e expansão urbana, a qual tem como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes ( Constituição Federal, artigo 182). É apenas isto o que estabelece a lei, e é a partir daí que teceremos nossos comentários. O plano diretor é um instrumento eminentemente político, cujo objetivo deverá ser o de dar transparência e democratizar a política urbana. Queremos frisar estes três aspectos do plano diretor. Primeiro, a sua característica política. Geralmente o plano diretor é vendido como um produto eminentemente técnico, de difícil elaboração e entendimento por leigos, devendo, sua elaboração estar a cargo de especialistas em urbanismo e demais ciências esotéricas na qual a participação do agente político é encarada como uma excrescência, algo a ser evitado a todo custo, a bem da racionalidade do plano. Tal concepção tecnocrática do planejamento, até bem pouco tempo hegemônica, deve ser afastada. A técnica tem um papel fundamental no planejamento, mas não é tudo. Se um plano for muito bom tecnicamente, mas inviável politicamente, não será executado; o mesmo se dá ao inverso, as propostas de um plano podem ser muito justas politicamente, mas se não tiverem nenhuma viabilidade técnica de serem implementadas, não passam de demagogia barata. É necessário que haja um equilíbrio entre os aspectos técnicos e políticos do planejamento, lembrando sempre que, em última instância, planejar é fazer política ( no sentido forte do termo, é claro ). Segundo, o aspecto da transparência. Este é o aspecto que reputamos como o mais importante. O principal objetivo do plano diretor é o de dar transparência à política urbana, na medida em que esta é explicitada num documento público, em uma lei. Tornar públicas as diretrizes e prioridades do crescimento urbano, de forma transparente, para a crítica e avaliação dos agentes sociais, esta é a principal virtude de um bom plano diretor. Diretrizes e prioridades para o crescimento e expansão urbana, sempre houveram, com plano ou sem plano, a diferença é que com um plano, estas devem ficar mais claras. O plano diretor deve ter o papel de um livro de regras no jogo da cidadania, que até hoje tem obedecido à lei do mais forte. O terceiro aspecto, o da democratização, é fundamental, pois só ele garante a transparência necessária das regras do jogo. A democratização do processo de elaboração do plano diretor é garantida, ao menos em tese, pela própria constituição federal, que torna a obrigatória a participação das entidades representativas da sociedade no processo de planejamento municipal (artigo 29, inciso X ).

Colocada a questão política do plano diretor, vamos aos aspectos técnicos. Tem havido muita mistificação em torno do plano diretor, que tem uma significação ideológica bastante clara. Primeiro, ao tornar o plano diretor uma peça técnica, elide a participação da sociedade civil e, pior ainda, justifica, pela aparente neutralidade científica, tomadas de decisões que vão favorecer determinadas camadas da sociedade em detrimento de outra. Um bom exemplo desse mecanismo perverso se dá nas normas de uso e ocupação do solo que promovem uma verdadeira segregação social no espaço urbano, afastando as populações mais pobres das áreas nobres da cidade com índices e padrões de uso e ocupação restritivos. Outra mistificação tecnocrática, refere-se à necessidade de extensos e exaustivos estudos técnicos, precedentes à elaboração das diretrizes do plano diretor Tais estudos técnicos, muitas vezes pouco têm de técnicos, e, via de regra, pouco influenciam as diretrizes do Plano, que geralmente já estão decididas antes deste começar a ser elaborado. Os estudos técnicos são necessários sim, mas somente na medida em que dão subsídios e/ou avaliam a viabilidade técnica das propostas discutidas politicamente. Poderíamos afirmar sem medo de sermos injustos que, em geral, mais de 50% do tempo, e dinheiro, gastos na elaboração de planos diretores, são empregados em levantamentos e estudos que têm um efeito muito mais cosmético do que prático na determinação das diretrizes do plano. Gostaríamos de salientar que além de representar um desperdício de tempo e dinheiro, este emaranhado de tabelas, gráficos e mapas inúteis, tem geralmente o efeito de dificultar o entendimento por parte dos leigos, das propostas, dificultando a participação mais efetiva da sociedade, comprometendo assim a transparência e democratização do plano. Vemos assim que por mais tecnicista que possa parecer o plano, ele esconde, na verdade, intenções políticas muito concretas. Mas e o conteúdo do Plano diretor? do que especificamente deve ele tratar? Vejamos o que diz a Constituição: Segundo a Constituição Federal, a política de desenvolvimento e de expansão urbana, da qual o plano diretor é o instrumento básico, deve expressar as exigências fundamentais de ordenação da cidade ( art. 182 ). Pois bem, na política de desenvolvimento urbano o texto constitucional, inclui a habitação, o saneamento básico e os transportes urbanos ( art. 21, XX ), e a mencionada ordenação da cidade é definida no artigo 30, inciso VIII como o "planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano". Deste modo deve o plano diretor, minimamente, dispor sobre os seguintes tópicos : uso do solo urbano, expansão urbana, parcelamento do solo urbano, habitação, saneamento básico e transportes urbanos. Além destes, a Carta Magna define ainda, mais um objeto a ser tratado pelo plano diretor, a delimitação das áreas urbanas onde o poder público municipal poderá exigir dos proprietários de

solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, a promoção do adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente de : parcelamento ou edificação compulsórios; imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo e desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública ( artigo 182, par. 4 o ). Como vemos, o conteúdo constitucional do plano diretor tem um caráter eminentemente urbanístico, o que seria ponto pacífico se a sua obrigatoriedade da elaboração fosse limitada apenas aos municípios metropolitanos. No entanto, a maioria absoluta dos municípios obrigados a elaborarem seu plano diretor, possui características muito mais rurais do que urbanas. Transporte urbano é assunto de suma importância em Belo Horizonte, Recife ou São Paulo, mas em municípios como Jacupiranga, no Vale do Ribeira, o transporte na zona rural é muito mais crítico. O mesmo se dá com o controle do uso do solo urbano, que é um tema candente em São Bernardo do Campo, mas tem muito pouco sentido em Sandovalina, na região do Pontal do Paranapanema. Considerando, provavelmente, tais questões, a Constituição do Estado de São Paulo determinou a obrigatoriedade da inclusão da zona rural na abrangência territorial do plano diretor. Embora alguns especialistas em direito urbanístico considerem que a Carta Estadual extrapolou em suas atribuições ( MUKAI, 1990:154 e LEITE, 1991:273) pois não poderia determinar o conteúdo ou forma dos planos diretores municipais, não é vedado aos municípios, se assim o julgarem necessário, que incluam a zona rural como objeto do plano diretor. Legalismos a parte, o fato é que para a maioria dos municípios paulistas, de pequeno e médio porte, de economia predominantemente agropecuária ou agro-industrial, a desconsideração do meio rural seria uma falha capaz de inviabilizar a aplicabilidade do plano diretor. O bom senso recomenda, portanto, que, na medida em que a realidade local assim determine, o plano diretor deve considerar a zona rural, e não há lei que proíba isso, conforme coloca LEITE ( 1991:273) :...não se pode assegurar que o plano diretor só deve considerar a zona urbana, a cidade, já que o desenvolvimento desta depende daquela, ou seja, a zona rural. Assim, o Município pode e deve considerar todo o seu território para promover o seu desenvolvimento urbano... O que o município não pode é promover uma política agrária e instituir um zoneamento rural. No mesmo sentido, nos afirma GODOY (1990:218): No caso específico do plano diretor, por exemplo, é inquestionável o direito da administração municipal dispor da área rural para decidir sobre reserva de mananciais, a fim de garantir o abastecimento de água, sobre bota fora de lixo domiciliar coletado, sobre áreas de lazer e sobre chácaras de recreio, para ficarmos nos casos mais evidentes. Desta forma, a competência municipal do uso e ocupação do solo rural, fora da específica destinação agro-pecuária, permite condições de incluir, no plano diretor, a área conveniente à atividade decorrente da vida da cidade.

Esclarecida tais questões, surge uma outra sempre levantada em qualquer discussão entre planejadores: o plano deve ser de detalhe ou de diretrizes gerais? qual o nível de abordagem das questões arroladas acima? O plano diretor, como o próprio nome indica, é um plano de diretrizes e, como tal, deve estabelecer diretrizes, metas e programas de atuação do poder público nas diversas áreas atinentes à sua atribuição. Os projetos e leis ordinárias decorrentes de tais diretrizes serão elaborados a posteriori. É importante observar, no entanto, que tais diretrizes devem de fato dirigir a política urbana, e para tanto devem ser claras, objetivas e detalhadas para que não se tornem apenas uma carta de boas intenções, genéricas e de pouco significado prático. Quanto mais claras e objetivas forem as diretrizes do plano diretor, tanto melhor para a sua implementação. É bom frisar, porém que : se o plano vai ser mais ou menos detalhista, deve depender única e exclusivamente das condições objetivas de elaboração do plano diretor encontradas em cada município. O que podemos concluir sobre o conteúdo do plano diretor é que sendo ele obrigatório para municípios de características demográficas, socioeconômicas, geográficas e políticas tão diferenciados, não deve haver um conteúdo específico padronizado, devendo este ser determinado de acordo com as características socioeconômicas, políticas e geográficas do município, dentro dos critérios básicos estabelecidos constitucionalmente, ou seja: estabelecer as diretrizes básicas da política de desenvolvimento e expansão urbana, compreendida dentro dos seguintes tópicos: uso do solo urbano, expansão urbana, parcelamento do solo urbano, saneamento básico, habitação e transportes urbanos, podendo ou devendo, ainda, tratar dos problemas atinentes à zona rural. 3. Como elaborar um plano diretor que dê certo. Seria uma pretensão descabida se pretendêssemos mostrar a fórmula mágica do plano diretor infalível. Na verdade o segredo é este: não há fórmula mágica. No entanto, resguardada esta observação, teceremos os nossos comentários e sugestões. Em primeiro lugar, o plano diretor deve ser elaborado pela própria municipalidade. Nunca deverá ser encomendado a uma empresa ou órgão público ou privado. No máximo poderá haver uma parceria, ou assessoria para assuntos técnicos específicos, mas os agentes da administração

local deverão participar efetivamente de todas as etapas de elaboração, pois só assim terão plenas condições e interesse em implementar o plano diretor. Salientamos aqui que, ao contrário do que se imagina, não é necessária muita assessoria técnica para a elaboração de um plano diretor. Qualquer prefeitura ( ou pelo menos a maioria delas ) é capaz de, com um mínimo de ajuda, elaborar um plano diretor na medida de suas necessidades. O Plano diretor deve ser do tamanho do município, nem maior, nem menor. Municípios pequenos em geral possuem um corpo técnico pequeno, mas os problemas urbanos também são ( salvo exceções ) de menor complexidade. De que adianta um pequeno município do interior contratar uma empresa de planejamento da Capital para elaborar um plano diretor que nem o prefeito nem os vereadores serão capazes de entender? O que afirmamos acima não quer dizer que se possa prescindir da competência técnica para a elaboração do plano diretor. O que queremos dizer é que os temas básicos tratados em um plano diretor ( controle do uso do solo, expansão urbana, parcelamento do solo, habitação, transportes e saneamento básico ) são assuntos comezinhos a qualquer municipalidade, em maior ou menor grau. A diferença é que quando tais temas são discutidos em um plano diretor, devem ser pensados de maneira integrada e numa perspectiva de médio e longo prazo e dentro de uma escala de prioridades. As dificuldades de ordem técnica, como a escolha de uma opção mais viável economicamente ou de uma que cause menores problemas de impacto socioambiental, podem ser superadas com o apoio técnico de órgãos públicos, como as universidades 3 e o CEPAM, ou mesmo de consultores privados idôneos. As dificuldades mais difíceis de serem superadas, no entanto, são de ordem mais política, pois é necessário romper com as práticas clientelistas e imediatistas (eleitoreiras) que caracterizam, infelizmente, o processo de tomada de decisão em todos os setores da administração pública. Em segundo lugar, deverá haver uma participação efetiva da comunidade, através de suas entidades representativas na elaboração do plano diretor. A forma mais aconselhável de participação de tais entidades é através de um Conselho de Planejamento, no qual terão assento representantes de entidades de classe, universidades, associações de moradores, representantes do poder público e outros. Um bom exemplo deste tipo é o conselho Municipal de Planejamento de Presidente Prudente, criado por lei municipal 4 em 1992 que é constituído por representantes do 3 neste sentido, a UNESP vem realizando um trabalho bastante interessante através do Projeto Parceria de assessoria técnica a diversas prefeituras do interior paulista. 4 da qual tivemos a oportunidade de colaborar na elaboração.

Poder Executivo e Legislativo local, da Universidade Pública Estadual, do Instituto dos Arquitetos do Brasil, da Associação dos Engenheiros, da Ordem dos Advogados do Brasil, da Intersindical de Presidente Prudente, da Associação Comercial e Industrial, da Associação de Moradores e do Movimento Popular dos Sem-Teto. Os representantes são nomeados pelo prefeito por um mandato de dois anos, sem direito a remuneração, mas considerado serviço de relevante interesse público. O conselho de planejamento tem como prerrogativas: convocar membros da administração pública direta ou indireta para prestar esclarecimentos sobre projetos ou atos administrativos ao nível de suas competências e convocar audiências públicas para a discussão de projetos de impacto social. Como se pode notar o Conselho Municipal de Planejamento de Presidente Prudente não se resume à elaboração do plano diretor mas à discussão da política urbana municipal como um todo e permanentemente. O Conselho Municipal de Planejamento de Presidente Prudente vem funcionando com relativo sucesso e poderia servir de exemplo a outros municípios. Para finalizar, gostaríamos de frisar que como condição fundamental, sem a qual qualquer outra é inútil, que é a necessidade de que a administração municipal tenha interesse legítimo em elaborar o plano diretor, ou seja que o veja como um instrumento, dentro de um processo de planejamento democrático mais amplo, que possibilite um aprimoramento da gestão territorial do município e não somente como uma imposição legal ou um modismo. Com algumas doses de interesse público, criatividade e profissionalismo, é possível se chegar a um bom plano diretor. Bibliografia AZEVEDO, Eurico Andrade. Avaliação do Planejamento Municipal no Estado de São Paulo. São Carlos, Faculdade de Engenharia, 1976. BRAGA, Roberto. Aspectos da Ordenação Territorial nas Leis Orgânicas Municipais do Estado de São Paulo. dissert. de mestrado, São Paulo, FFLCH-USP, 1993. BRASIL. República Federativa. Constituição Federal de 05 de outubro de1988. MUKAI, Toshio. Plano diretor nas Constituições, Federal e Estaduais e nas Leis Orgânicas Municipais, In. Revista de Direito Público, São Paulo, 1990, ano 23, n.94. LEITE, Lesley Gasparini. Plano diretor: obrigatório por força da Lei Orgânica Municipal, In Revista de direito Público, São Paulo, 1991, ano 24, n. 97. GODOY, Mayr. A Lei Orgânica do Município Comentada, São Paulo, LEUD, 1990.