Adaptação do estudante ao ensino superior e rendimento académico: Um estudo com estudantes do primeiro ano de enfermagem

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Transcrição:

revista portuguesa de pedagogia ano 41-1, 2007, 179-188 Adaptação do estudante ao ensino superior e rendimento académico: Um estudo com estudantes do primeiro ano de enfermagem Helena Cristina das Neves Mira Freitas, Nicolau de Almeida Vasconcelos Raposo 2 & Leandro S. Almeida 3 A adaptação ao ensino superior pode ser entendida como um processo multidimensional, que requer da parte do estudante um desenvolvimento de competências adaptativas a um contexto novo e às suas próprias transformações. Estas competências adaptativas podem ser desenvolvidas, ou não, pelas vivências académicas do estudante, assumindo-se que tais vivências vão interferir no seu rendimento académico. Neste estudo analisamos as vivências académicas de alunos do 1º ano de enfermagem repartidas pelas cinco dimensões: interpessoal, pessoal, vocacional, estudo e institucional. Os resultados apontam que o rendimento académico dos estudantes do primeiro ano se encontra mais associado com as classificações que os alunos trazem do ensino secundário do que com as suas vivências adaptativas ao ensino superior. Introdução O ingresso no ensino superior representa para a larga maioria dos estudantes a concretização de um projecto de carreira e de desenvolvimento pessoal. As expectativas criadas relativamente a este momento e a esta nova etapa de vida são elevadas, por parte do próprio jovem e por parte dos seus outros significativos. Neste contexto, o estudante do ensino superior confronta-se com um conjunto de desafios, inerentes à vida académica, que vão estimular a sua transição da adolescência para a vida adulta. Estes desafios inerentes ao ingresso no ensino superior iniciam-se com a adaptação ao estabelecimento de ensino superior e ao curso, nem sempre de primeira escolha vocacional dos jovens, e decorrem das relações interpessoais que vão ser estabe- 1 Docente da Escola Superior de Enfermagem Bissaya Barreto - Coimbra 2 Professor Catedrático aposentado da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra 3 Professor catedrático do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho

180 lecidas com os pares e professores, das exigências cognitivas e de estudo do nível de ensino em que entram, do grau de autonomia proporcionado pelos novos contextos de vida quotidiana, da saída de casa e consequente afastamento dos amigos e familiares, das exigências pessoais ao nível da gestão do tempo e do dinheiro, das perspectivas de carreira e de compromissos vocacionais com as aprendizagens e oportunidades de formação, entre outros. A transição e adaptação ao ensino superior é, assim, um processo complexo onde interagem tanto as variáveis pessoais como as variáveis académicas e contextuais (Almeida, Soares & Ferreira, 2000), tendo repercussões ao nível do desenvolvimento global do estudante e do seu rendimento académico (Carneiro, 1999; Almeida, Soares & Ferreira, 2000; Nico, 2000; Peixoto, 1999; Rego & Sousa, 2000; Santos, 2001). Com o advento das teorias do desenvolvimento humano nos anos 60 e 70 emergiram várias conceptualizações em torno da compreensão necessária à compreensão e apreciação das mudanças estruturais e funcionais operadas no estudante do ensino superior. Vários investigadores (Erikson, 1972; Sanford, 1962; Heath, 1965, 1977; Chickering, 1969; Perry, 1970; Kohlberg, 1971; Keniston, 1971; Chickering & Reisser, 1993), explicitaram essas mudanças desenvolvimentais. Ferreira e Hood (1990) são de opinião que as modificações que ocorrem no indivíduo durante o tempo que permanece nas instituições de ensino superior se processam nas diferentes áreas de desenvolvimento, mais concretamente a nível cognitivo e psicossocial. Especificando um pouco mais, Chickering & Reisser (1993) descrevem sete vectores do desenvolvimento do jovem-adulto: sentido de competência, integração das emoções, autonomia em direcção à interdependência, relações interpessoais, identidade, sentido de vida e integridade Por sua vez, falando no sucesso académico, também o Ministério da Educação vem comprovar a relevância desta temática. Pelo Despacho nº 6659/99, o ME solicita aos estabelecimentos de ensino superior a realização de estudos que permitam tipificar as causas de insucesso neste nível de ensino e o desenvolvimento de medidas promotoras do sucesso académico. As taxas de insucesso e de abandono no ensino superior são elevadas, embora o problema não se circunscreva ao nosso País. Na compreensão das dificuldades de aprendizagem e de rendimento académico dos estudantes, temos as mudanças e exigências deste novo contexto de ensino. Por este contexto passa toda um leque variado de novos e complexos desafios

rpp, ano 41-1, 2007 181 que levam o estudante a questionar-se sobre os domínios académico, vocacional, social, emocional, intelectual e ético da sua vida, promovendo novos padrões de desenvolvimento e de funcionamento no seu quotidiano. Ao mesmo tempo, reconhece-se que uma das áreas de maior impacto desta transição passa pela própria forma como se organiza o ensino, a aprendizagem e a avaliação nos cursos, registando-se uma significativa mudança na relação pedagógica, nos conteúdos leccionados e nos métodos de ensino utilizados (Raposo, 2003). A mudança na relação pedagógica é significativa. No ensino secundário, a relação professor/aluno, assim como entre colegas, é mais efectiva, visto o número de alunos por turma ser significativamente menor do que no ensino superior. Por outro lado, outras exigências são colocadas ao estudante no ensino superior, desde logo, que não seja um ouvinte e passivo, antes que construa conhecimento. A mudança de conteúdos também ocorre nesta transição do ensino secundário para o ensino superior. Existe grande quantidade de conteúdos, com utilização de linguagem mais rebuscada e técnica, ou com uma abordagem mais abstracta, exigindo menos memorização e mais compreensão. O estudante tem que ter uma grande preocupação de pesquisa pessoal pois os conteúdos que os manuais contêm (e apenas quando existem manuais ) não são suficientes para uma aprendizagem eficaz. A auto-aprendizagem e a auto-regulação da aprendizagem são competências cada vez mais exigidas pelo ensino superior, muito embora poucas vezes promovidas de forma explícita e intencional. O próprio sistema de avaliação, muito centrado em testes e em frequências ou exames nos finais de semestre e de ano, é pouco favorável aos hábitos instituídos de um adequado acompanhamento e feedback por parte do professor, e à experiência anterior de uma avaliação mais contínua nos ensinos básico e secundário (Raposo, 2003). O contexto de ensino superior traz, ainda, ao estudante muitas solicitações e maior autonomia, e, se este não sabe gerir de forma adequada essa sua autonomia e as múltiplas solicitações extracurriculares, poder-se-á perder no meio de tanta azáfama e fragilizar o seu rendimento académico. O professor detém aqui um importante papel, sobretudo junto dos alunos do primeiro ano. A competência científica, pedagógica e relacional dos professores, o grau de expectativas que estes colocam em relação aos seus alunos, o respeito pela diversidade de capacidades e modos de aprender, a atenção que dedicam ao estudante e, ainda, as suas competências de organização e gestão curriculares, podem concorrer para o tão desejado sucesso académico (Alarcão, 2000).

182 Facilmente se compreende, pelo que ficou exposto, que será pertinente verificar se o rendimento académico está relacionado, entre outros aspectos, com a adaptação académica do estudante ao ensino superior. No caso concreto deste estudo, tal objectivo coloca-se ao nível dos estudantes do primeiro ano do Curso de Licenciatura em Enfermagem. No fundo, a questão central deste estudo é saber se a adaptação ao ensino superior dos estudantes de Enfermagem se encontra relacionada com os níveis de rendimento académico no final do primeiro semestre. Sendo o rendimento académico fenómeno complexo e multifactorial (Baker & Siryk, 1989; Hossler, 1984; Tavares & Alarcão, 1990; Peixoto, 1999), dependendo de múltiplas variáveis pessoais e contextuais, tomaremos neste estudo dois indicadores: média das classificações nas disciplinas do primeiro semestre e ratio de disciplinas realizadas com sucesso em face das disciplinas em que o aluno se encontrava inscrito. Método Amostra A amostra do nosso estudo foi constituída por 156 estudantes, que frequentaram, pela primeira vez, o primeiro ano do curso de licenciatura em Enfermagem do ano lectivo 2003/04, numa Escola Superior de Enfermagem pública da zona Centro do País. A idade dos estudantes estava compreendida entre os 17 e 42 anos, com um valor médio de 19.1 anos (desvio-padrão de 1.23). A nota de candidatura destes alunos no curso, situou-se em 15.4 valores (notas na escala de 0 a 20 valores). Dos 156 estudantes, 125 são do sexo feminino (80.1%). Por sua vez, 83.9% dos estudantes frequentam o curso de primeira opção, assim como 64.1% e 20.5% dos estudantes frequentam a instituição de ensino superior correspondente à sua primeira e segunda opção, respectivamente. Por último, para 30.1% dos estudantes, a entrada no ensino superior não implicou a saída de casa, e, entre os que tiveram que mudar de residência, 56.4% habitam num apartamento com outros estudantes, 5.8% em casa ou apartamento com familiares e somente 3.8% habitam em residência universitária. Instrumentos O rendimento académico foi avaliado através de vários indicadores, como a média das disciplinas do primeiro semestre do primeiro ano, e a ratio entre o número de disciplinas semestrais efectuadas com aprovação e o número de disciplinas semestrais em que o estudante se encontrava inscrito. A adaptação ao ensino superior

rpp, ano 41-1, 2007 183 foi avaliada através da aplicação do Questionário de Vivências Académicas, versão reduzida (QVA-r; Almeida, Ferreira & Soares, 1999). Esta escala é formada por 60 itens, de formato tipo Likert, com cinco níveis de pontuação divididos por cinco dimensões: Pessoal, interpessoal, carreira e estudo, com 13 itens cada, e a dimensão institucional, com oito itens. Procedimentos A recolha dos dados passou pela administração colectiva e simultânea do questionário sociodemográfico e de caracterização da população, bem como do questionário de vivências académicas, em ambiente de sala de aula. Utilizou-se para o efeito um tempo lectivo cedido por um professor, no decorrer de uma aula teóricoprática, numa tentativa de chegar ao maior número possível de alunos por turma (nestas aulas, a presença é registada). A aplicação do QVA-r decorreu no início do segundo semestre, já após o choque da entrada no curso e instituição. Os dados sobre o rendimento académico dos alunos foram recolhidos a partir dos dados fornecidos directamente pelos serviços académicos, secção de alunos. A análise estatística dos resultados foi efectuada através da versão 12.0 do programa SPSS. Resultados Sendo o QVA-r um instrumento ainda pouco usado com os alunos do ensino superior politécnico e, particularmente, com os estudantes de Enfermagem, no quadro I descrevemos os resultados obtidos nas cinco subescalas do questionário. Nesta descrição, consideramos a distribuição dos resultados e o nível de consistência interna, alertando na análise para o facto de a dimensão institucional ser formada por um menor número de itens e daí a menor variabilidade dos seus resultados. Quadro I Resultados e consistência interna das sub-escalas do QVA-r Sub-escalas Nº itens Mínimo Máximo Média Desviopadrão a Cronbach QVA Carreira 13 24,0 64,0 49,2 7,54 0,85 QVA Institucional 8 18,0 40,0 32,7 3,93 0,65 QVA Pessoal 13 21,0 62,0 43,8 7,93 0,85 QVA Interpessoal 13 20,0 62,0 48,8 7,44 0,86 QVA Estudo 13 20,0 55,0 43,2 7,01 0,85

184 Os valores mínimos e máximos obtidos sugerem uma boa dispersão dos alunos nas suas pontuações para as cinco subescalas do QVAr, reflectindo as possibilidades deste mesmo questionário diferenciar as vivências académicas dos alunos em função dos seus níveis de adaptação e satisfação académicas. Por outro lado, os valores da média e do desvio-padrão garantem também essa dispersão, havendo sempre duas unidades de desvio-padrão, no mínimo, entre a média e os limites superiores e inferiores dos resultados obtidos nas cinco subescalas. Quanto à consistência interna, os coeficientes alpha de Cronbach obtidos mostram-se satisfatórios, devendo-se assinalar o índice mais baixo na dimensão institucional, precisamente aquela que é formada por um número menor de itens, sendo também verdade que estamos face a uma dimensão que inclui aspectos da instituição que nem sempre os alunos conseguem conhecer e analisar durante o seu primeiro ano de frequência da instituição. Aliás, tomando os resultados de uma análise factorial exploratória dos itens do QVA-r, verificámos que, na presente amostra, dois itens da dimensão institucional, relacionados com os serviços oferecidos pela instituição académica, saturavam, em primeiro lugar, a dimensão interpessoal do questionário, podendo isso traduzir um fraco conhecimento pelos alunos da especificidade dos mesmos serviços. Numa análise dos resultados nas cinco dimensões do QVA-r, tomando algumas variáveis pessoais dos alunos, verificou-se uma correlação com significado estatístico entre a idade e três das cinco subescalas em apreço. Assim, verifica-se uma correlação de sentido negativo (r=-.72), entre a idade e o relacionamento interpessoal (são os alunos mais novos que experienciam maior envolvimento e satisfação no relacionamento interpessoal), e correlações positivas com a dimensão carreira (r=.35) e a dimensão institucional (r=.24). Também os alunos colocados em instituição de sua primeira escolha apresentam níveis superiores de adaptação académica, sendo essa diferença estatisticamente significativa na dimensão carreira (p<.05) e na dimensão institucional (p<0.001). Valores similares foram obtidos quando consideramos os alunos em função da opção do curso que frequentam, apresentando os alunos colocados na sua primeira opção resultados mais elevados nas cinco subescalas. Esta relação ganha significado estatístico, favorável aos alunos colocados num curso de primeira opção, na dimensão carreira (p<.001). Por último, indo mais directamente ao objectivo deste estudo, ou seja, o relacionamento entre as vivências e o rendimento académico dos estudantes, procedemos à análise das correlações entre as pontuações nas cinco sub-escalas do QVA-r e

rpp, ano 41-1, 2007 185 os dois indicadores de rendimento tomados (média das classificações do primeiro semestre e o número de disciplinas aprovadas). No quadro II, apresentamos os coeficientes obtidos, indicando a média e o desvio-padrão dos resultados nos dois indicadores do rendimento académico. Quadro II Coeficientes de correlação entre dimensões do QVA-r e do rendimento académico dos estudantes Disciplinas aprovadas (M=4.4; DP=0.98) Média (1º Semestre) (M=12.6; DP=1.57) QVA - Carreira QVA Institucional QVA - Pessoal QVA - Interpessoal QVA - Estudo -.13 -.06 -.06 -.08 0.29 (p < 0.01).14 -.05.08.01 0.35 (p < 0.01) Como podemos observar, as correlações são de magnitude muito reduzida e, para a generalidade das dimensões do QVA-r, sem qualquer relevância e significado estatístico. De forma interessante, pelo conteúdo em presença, as correlações entre o rendimento académico e as pontuações dos alunos na subescalas QVA-Estudo mostram-se não só mais elevadas como estatisticamente significativas. Mesmo assim, sendo verdade que a correlação observada entre a média das classificações no 1º semestre se correlacionou com a nota de candidatura em.51 (p<.001), podemos inferir que o rendimento dos alunos está mais associado ao seu background académico prévio à entrada na Universidade do que às suas vivências académicas e processo de adaptação ao longo do primeiro semestre no ensino superior. Discussão e conclusões O processo de transição e adaptação ao ensino superior é um processo complexo. Nele estão presentes variáveis pessoais e variáveis académicas e contextuais, as quais afectam o modo como os estudantes se desenvolvem e adaptam (Almeida, Soares & Ferreira, 2000). Tomando os coeficientes obtidos a propósito da utilização do QVA-r numa amostra de estudantes não usual nos estudos feitos até ao presente com este instrumento, podemos referir que os indicadores de consistência interna e de variância dos itens se mostram apropriados, assistindo-se a coeficientes alpha de Cronbach superiores a.80 em quatro das cinco sub-escalas. Na subescala de satisfação e envolvimento institucional, o valor de alpha situou-se em.65, ou seja, inferior ao desejado, parecendo isso reflectir, quer um menor número de

186 itens nesta subescala, quer ainda a heterogeneidade de significações que podem assumir para os alunos que frequentam o primeiro ano e ainda não conhecem suficientemente a sua instituição de ensino. Apreciando os resultados nas dimensões do questionário de vivências, segundo algumas variáveis pessoais dos alunos, os valores obtidos sugerem que a dimensão carreira está relacionada com a idade, com a opção do estabelecimento de ensino, com a opção de curso e com a média de entrada, traduzindo maior envolvimento na carreira por parte dos alunos mais novos, dos alunos que escolheram o curso e a instituição que frequentam em primeira opção, e dos alunos que acederam ao ensino superior com médias mais elevadas. A dimensão institucional está relacionada com a idade, verificando-se maior envolvimento institucional por parte dos estudantes mais velhos, assim como por parte dos alunos que mencionam frequentar uma instituição de ensino de primeira opção. Os alunos mais novos apresentam índices superiores de envolvimento académico ao nível da dimensão interpessoal do questionário aplicado. Finalmente, as correlações obtidas entre os resultados dos alunos nas cinco subescalas e as medidas de rendimento académico não se mostraram relevantes. Os coeficientes mostram-se moderados e estatisticamente significativos quando se reportam à sub-escala estudo, parecendo-nos óbvia a relação. A este propósito, importa destacar ainda dois aspectos: essa correlação é mais elevada quando tomamos a média dos alunos do que o número de disciplinas feitas com sucesso, ao mesmo tempo que o rendimento no final do 1º ano se correlaciona de forma bastante acentuada com a média de candidatura dos alunos ao ensino superior. Este dado permite-nos afirmar, de algum modo, que o rendimento académico dos alunos no ensino superior, pelo menos ao nível dos alunos do 1º ano, está mais associado ao seu background académico prévio à entrada na universidade do que às suas vivências e processo de adaptação ao ensino superior. Bibliografia Alarcão, I. (2000). Para uma conceptualização dos fenómenos de insucesso/sucesso escolares no ensino superior. In J. Tavares & R. A. Santiago (Ed.), Ensino superior. (In)sucesso académico (pp. 11-23). Porto: Porto Editora. Almeida, L. S., Ferreira, J. A. & Soares, A. P. (1999). Questionário de vivências académicas. Construção e validação de uma versão reduzida (QVA-r). Revista Portuguesa de Pedagogia, 33 (3), 181-207. Almeida, L. S., Soares, A. P. C., Ferreira, A. G. (2000). Transição e adaptação à universi-

rpp, ano 41-1, 2007 187 dade. Apresentação de um questionário de vivências académicas (QVA). Psicologia, 14 (2), 189-207. Baker, R. W., & Siryk, B. (1989). Student Adaptation to College Questionnaire (SACQ). Manual. Los Angeles, CA: Western Psychological Services. Carneiro, J. C. P. (1999). Adaptação à universidade e rendimento académico em alunos do primeiro ano. Tese de mestrado não publicada. Braga: Universidade do Minho, Instituto de Psicologia e Educação. Chickering, A. W. (1969). Education and identity. San Francisco: Jossey-Bass. Chickering, A. W., & Reisser, L. (1993). Education and identity (2rd ed.). San Francisco: Jossey- Bass. Despacho nº 6659/99 de 5 de Abril de 1999. Criação de incentivos com vista à detecção precoce de insucesso escolar. Diário da República nº 79, II série, pp. 4912 e 4913. Erikson, E. H. (1972). Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar Editores. Ferreira, J. A., & Hood, A. B. (1990). Para a compreensão do desenvolvimento psicossocial do estudante universitário. Revista Portuguesa de Pedagogia, XXIV, 391-406. Heath, D. H. (1965). Explorations of maturity. New York: Appleton-Century-Crofts. Heath, D. H. (1977). Maturity and competence. A transcultural view. New York: Cardner Press. Hossler, D. (1984). Enrollement management. New York: College Entrance Examination Board. Keniston, K. (1971). Youth and dissent. New York: Harcourt, Brace & Jovanovich. Kohlberg, L. (1971). Stages of moral development. In C. M. Beck, B. S. Crittenden & E. V. Sullivan (Eds.), Moral education. Toronto: University of Toronto Press. Nico, J. B. (2000). O conforto académico do(a) caloiro(a). In A. P. Soares, A. Osório, J. V. Capela, L. S. Almeida, R. M. Vasconcelos & S. M. Caires (Eds.), Transição para o ensino superior (pp. 161-165). Braga: Universidade do Minho. Peixoto, L. M. (1999). Auto-estima, inteligência e sucesso escolar. Auto-conceito académico, aspiração-expectação académica, atitude face ao estudo e à ocupação. Braga: APPACDM. Perry, W. (1970). Forms of intellectual and ethical development in the college years. A scheme. New York: Holt, Rinehart & Winston. Raposo, N. V. (2003). As abordagens da adaptação ao ensino superior. As mudanças de contexto, de relação pedagógica, de conteúdos e de métodos. Comunicação pessoal. Coimbra: Universidade de Coimbra, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação. Rego, A., & Sousa, L. (2000). Desempenho de estudantes universitários. Um contributo empírico. Revista de Educação, IX, ( 2), 93-98. Sanford, N. (1962). The american college. New York: Atherton Press. Santos, L. T. M. (2001). Adaptação académica e rendimento escolar. Estudo com alunos universitários do 1º ano. Braga: Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia. Tavares, J., & Alarcão, I. (1990). Psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem. Coimbra: Livraria Almedina.

188 Résumé L adaptation à l enseignement supérieur peut être envisagée comme un processus multidimensionnel, qui demande de la part de l étudiant un développement de ses compétences adaptatives à un nouveau contexte et à ses propres transformations. Ces compétences adaptatives- là pouvant être développées, ou pas, par les expériences académiques de l étudiant, en assumant que de telles expériences vont intervenir dans son rendement académique. Dans cette étude, on analyse les expériences académiques des étudiants de première candidature en études d Infirmier en tenant compte des cinq dimensions suivantes: interpersonnelle, personnelle, vocationelle, étude et institutionnelle. Les résultats montrent que le rendement académique des étudiants de première candidature est plus associé aux classifications que les étudiants ont obtenues à l enseignement secondaire qu à leurs expériences adaptatives à l enseignement supérieur. Abstract Students adjustment to the higher education can be understood as a multidimensional process that requires from the student adjustable development competences to this new context and to their identity transformations. These adjustable competences can be developed, or not, by the academic experience of a student on college, but the literature assumes that these competences can interfere on students academic achievement. This study analyses the first year students academic experiences considering five dimensions: interpersonal, personal, vocational, study, and institutional. The present paper shows that the academic performance of first year students is more related to the classifications on secondary school than to their academic adjustment experiences in higher education.